Em 1980, todas as noites, na abertura da novela Água viva, da TV Globo, Baby Consuelo cantava “Menino do Rio”, a ode de Caetano Veloso ao mítico surfista Petit (José Artur Machado, 1957-1989). Nas imagens, rapazes e moças eram mostrados na então selvagem praia da Macumba praticando o esporte da moda na época: o windsurf. “Eu não apareço, mas minha vela está nas imagens que encerram”, conta Guilherme Zattar, diretor do Multishow, em sua sala de frente para a lagoa da Tijuca, na sede da Globosat. Morando “a dez minutinhos” dali, na Barra, ele comemora a qualidade de vida que isso lhe proporciona há dois anos e meio, desde que a empresa se mudou do Rio Comprido, na zona norte, para o atual endereço. Aos 52 anos, casado com Claudia e pai de João Pedro, 22, Ana Carolina, 20, e Maria Eduarda, 11, Guilherme festeja também um ano de um projeto que idealizou. Evolução de um trabalho começado em 1996, ainda nos tempos de SporTV, o canal Off tem ganhado a admiração do mercado por ser um passo gigantesco em relação à abordagem habitual com que são exibidos os esportes de ação. Sua grade mistura natureza e viagem em documentários e reality-shows. Com imagens quase sempre espetaculares. “Você viu a série sobre o Taiti que o Rosaldo [Cavalcanti, veterano do jornalismo de surf] fez? Surf visto de dentro da água, sem aquela coisa de câmera no capacete. O Off é assim, pra você assistir e falar: ‘Puta que pariu, que porra é essa?!’”, empolga-se o executivo. Carioca criado no Leblon, estudou no tradicional Colégio Santo Inácio, em Botafogo, mas sempre foi atraído pela vida no oeste da cidade: moleque, a mãe o levava na Brasília marrom, junto com o irmão, para surfar no Quebra Mar. Aos 18, escondido dos pais, aprendeu a voar de asa-delta e dividiu os céus de São Conrado com a geração de Pepê. Na carreira, também subiu com leveza, movido pela autoconfiança e pelo autocontrole adquiridos no caratê. Inspirado pelo pai, executivo da área petrolífera, formou-se engenheiro químico pela UFRJ, mas se deixou levar pelos ventos do marketing depois que a Ipiranga o mandou a Paris por seis meses. “Era a época da Elf, que tinha patrocinado a Tyrrell, do Jackie Stewart, e, depois, a Renault”, lembra. Enquanto galgava posições na Souza Cruz, conseguiu manter até os 35 anos, como hobby, a atividade de professor da arte marcial. “Treinava das seis às sete horas. Depois dava aula para a molecada. Era a minha válvula de escape.” O trabalho na multinacional obrigou Zattar a fumar e a aprender a diferenciar sabores, tal qual um sommelier de cigarros. Mas também lhe proporcionou experiências inesquecíveis. Entre 1988 e 1993, como gerente de marketing, promoveu festivais como o Hollywood Rock e o Free Jazz. “Em nove anos na empresa, tive oito funções. Foi a minha universidade”, conta, sem conflitos. De lá foi fisgado pelo Banco Nacional, onde implantou cartões de afinidade, até que, em 1996, recebeu um convite de Alberto Pecegueiro, outro surfista carioca que se destacava no crowd corporativo. Sem saber nada de TV, Guilherme começou apitando apenas no marketing do recém-surgido SporTV (até 1995, tinha o nome Top Sports). Logo, porém, foi promovido a diretor da parte editorial também: esporte era a sua praia. “Dos 18 aos 24 anos, época de faculdade, eu dirigia até Torres (RS) e voltava pro Rio. Sempre com amigos, passava três meses surfando" Guilherme nunca ligou para competições e lembra que não foi muito bom em nenhum esporte – no futebol, só batia; no surf, nunca passou do nível “direitinho”; no wind, não se arriscava em mar com ondas. Mas uma experiência de juventude o inspirou a dar forma a programas de esportes de ação no SporTV. “Dos 18 aos 24 anos, época de faculdade, eu dirigia até Torres [no Rio Grande do Sul] e voltava pro Rio. Sempre com amigos, passava três meses surfando – cheguei a levar a prancha de windsurf. Alugávamos casas de pescadores pelo litoral de Santa Catarina: foi um verão em São Chico, um em Laguna, outro em Floripa, um em Garopaba, outro na Guarda, outro na Ilha do Mel...” Embratel e Big Brother Dono de uma casa em um condomínio em Búzios, ele diz que só consegue ir lá quatro vezes por ano. E suas férias recentes pouco lembram os antigos rolés. “Viajo para passear, geralmente por Europa e EUA.” O velho espírito é mantido com passeios de bicicleta pela orla da Barra ou bandas curtas, de carro. “De vez em quando vou até Guaratiba. Paro, fico vendo o mar e volto, sem fazer nada. Minha mulher faz troça de mim.” Daryan Dornelles Em seu escritório atual na Globosat, no encontro com a Trip O sucesso profissional impõe sacrifícios a alguns meninos do Rio. Em 2001, Guilherme voou do SporTV para a indústria fonográfica, seduzido pela ideia de trabalhar com música. De vice-presidente de marketing da BMG Brasil, passou dez meses no canal Discovery, que o obrigou a morar em São Paulo. E de lá foi içado à vice-presidência da Embratel, desafio que lhe exigiu conhecer todo um novo setor – além do frio na barriga de “herdar” na empresa uma receita de 5 bilhões de reais. Após três anos e meio, em 2009 veio mais um almoço com Pecegueiro e o convite para assumir a direção do Multishow. Junto com a proposta, uma cartinha da direção, severa: “O Multishow estava em 11º lugar de audiência e eu tinha que botá-lo entre os dez mais vistos. Queriam um plano em 90 dias. Mostrei um, mas na real esse plano nunca vai ficar pronto. É um trabalho que nunca acaba, tem que reinventar o tempo todo”. O objetivo de audiência foi alcançado e, em 2010, veio o lançamento do Multishow HD, rebatizado há três meses de Bis. “Meu trabalho quadruplicou. São três canais – Multishow, Bis e Off – e mais o Big Brother versão TV assinatura.” O atual modelo de terceirização também exige. “Lidamos com 40 produtoras diferentes. Quarenta! É muita cabeça diferente, mas a gente vai aprendendo assim. Fico ligado quase 24 x 7, mas tem o prazer, a criação, o desafio que se renova.” Guilherme Zattar detesta academia, mas tem um plano de atividade física para este verão que vai além das caminhadas regulares na praia e ocasionais ondinhas de longboard. Ganhou dos filhos uma prancha de stand up paddle que ainda não teve a chance de estrear. E usa um verbo de menino: “O João Pedro se apossou e está viciado nela. Mas agora vou começar a brincar também”. Como você começou a praticar esportes e quando achou a sua praia? "Tive que aprender a fumar! Na Souza Cruz eu precisava distinguir no cigarro as notas, os aromas, o que era madeira, como era cada gosto, como se faz com vinho" E como você se tornou piloto de asa-delta? O que o esporte lhe ensinou que teve mais valor na sua carreira como executivo? Trabalhar para uma empresa de cigarros gerou uma crise de consciência para você, como esportista? Você chegou a se viciar em cigarro? Acervo Pessoal no colo do avô Semi Zattar, com um ano de idade Você batalhou para trabalhar com música nos eventos patrocinados pela empresa, como o Hollywood Rock e o Free Jazz? O Nirvana esculhambou a indústria tabagista quando veio ao Brasil em 1993. Kurt Cobain falou sobre câncer no palco e Chris Novoselic criticou a Souza Cruz durante as entrevistas... Como você compararia o show business daquela época, quando o Brasil começava a atrair atrações internacionais, com o momento atual? Você tinha contato com o Alberto Pecegueiro (diretor da Globosat), também surfista, antes de ser chamado por ele para trabalhar no SporTV, em 1996? “Antes do show, o Kurt Cobain tinha tomado sei lá o que e foi pra janela do hotel querer voar” O meio televisivo é refratário a profissionais vindos de outras áreas. Como resolveu a questão de não ser um “homem de televisão”? Você acabou reencontrando o Luis Oscar Niemeyer em 2001, quando foi trabalhar na gravadora BMG. “De repente, o cara me deu 5 bilhões de receita. Eu ia às reuniões e não entendia nada. Aprendi passando as noites em claro, estudando” Você chegou quando a indústria começou a ruir, não? Acervo Pessoal Formando da turma de 1977 do Colégio Santo Inácio Como foi a experiência na Embratel, depois de ter trabalhado com música e esporte? Não lhe pareceu um mundo mais estéril? Como surgiu o projeto do canal Off, com viagens, natureza e esportes de aventura? Que balanço faz deste primeiro ano do Off? “Um dos nossos objetivos é poder viver sem o Big Brother. Mas passa ano, sai ano, a audiência segue lá. Acho que ele terá vida longa” O Multishow exibe conteúdos de Big Brother. Como vê a longevidade do programa, que após 12 edições ainda garante ótima receita? A cobertura que o canal fez do Rock in Rio e de outros festivais foi alvo de críticas. Alguma novidade para 2013? Existe a queixa no mercado de que o Multishow paga pouco pelas produções independentes que veicula. O que você diz disso? Os programas eróticos do Multishow também são criticados. Como lida com isso? “O Sexytime continua se baseando em programas gringos, às vezes de qualidade duvidosa. Mas sempre com ótimas audiências” A ABTA, Associação Brasileira de TVs por Assinatura, estima que um terço dos assinantes do país seja da classe C. Como se adequar a esse consumidor? Como se faz isso na prática? Como percebeu que o humor poderia ganhar esse peso no conteúdo voltado para os jovens? Criado entre o Leblon e a Barra da Tijuca nos anos 70 - entre um jibe em seu windsurf e um salto de asa-delta escondido dos pais - Guilherme Zattar foi moldado pela cultura de praia até se transformar num dos grandes executivos brasileiros, na linha de frente de empresas como Organizações Globo,Embratel e BMG e de festivais como Hollywood Rock e Free Jazz. Na Globosat criou o Sportv e em sua segunda passagem pela diretoria da casa, foi responsável por reerguer o canal Multishow e comemora o primeiro aniversário do Canal Off, um bem-sucedido projeto de tv que devolve à praia um pouco do que recebeu dela
Na minha época, pra se enturmar na escola, menino tinha que jogar futebol. E eu jogava muito mal [risos]. Era zagueiro e, como não era habilidoso, batia pra cacete. Com 12 anos me interessei pelo surf. Eu e meu irmão Claudio conseguimos quebrar o preconceito de que surfista era tudo maconheiro e, lá por 1974, convencemos nosso pai a trazer dos EUA duas pranchas Gordon & Smith. Foi muito engraçado o meu primeiro dia: fui para o Quebra Mar [na Barra da Tijuca] e tava meio grande, ondas de um metro e meio. E eu entrei, nem remar eu sabia direito. Quando passei a rebentação, pensei: “O que eu faço agora?”. Pouquíssimos tinham uma prancha daquelas, os surfistas ficaram me olhando – “Pô, quem é esse cara?” – e eu não sabia fazer porra nenhuma. Foi a maior vergonha, saí à francesa e desci para a “piscininha” que tem do lado do Quebra Mar. Ali fiquei aprendendo um mês, até conseguir ficar em pé. Morava no Leblon, minha mãe nos levava até a Barra em uma Brasília marrom. Aí fiquei surfando, mas surfando assim... bem mal [risos]! Mas adorava, era um alívio, diversão para o fim de semana, horas vagas. Com 13 anos, comecei a aprender caratê na academia Shotokan, em frente à minha casa, com o mestre Inoki [Hiroyasu Inoki, respeitado japonês radicado no Brasil desde 1956]. Treinei por mais de duas décadas. Foi minha grande paixão esportiva.
Eu devia ter 18 anos, estava na festa de uma amiga, filha de um tenente coronel da Aeronáutica que foi um dos pioneiros do voo livre no Brasil. O irmão dela me desafiou: “Cara, quer aprender? Consegue acordar amanhã às cinco horas? Temos que estar às seis e meia em Curicica [Jacarepaguá, região oeste do Rio], porque o vento só bate de frente a essa hora, e dá pra ficar até umas oito e meia”. O lugar era chamado de Morro do Assalto, porque a galera ia lá aprender a voar e acabava assaltada. Mas o cara garantiu que estava tranquilo. Aí eu fui. Aprendi numa Zephir – o nome era asa-delta porque aquilo era um triângulo. Não sei como nego conseguia voar naquela porra... O tal Morro do Assalto era um morrinho, você só aprendia a correr. Na Grota Funda, não: lá fiz meu primeiro voo de verdade, 150 metros de altura. Tirei a carteira de voo livre e comprei uma asa bacana, Condor, em sociedade com meu amigo João Carlos Rios. Tudo escondido dos meus pais. Saía com a prancha e dizia que ia surfar. Até que um dia, com uns 20 anos, meu irmão tinha tirado fotos minhas decolando e eu botei no para-sol da Brasília, que eu dividia com a minha mãe. Puta merda! Um dia ela parou num sinal e, na freada, caíram todas as fotos. Meu pai depois me deu um esporro, disse que minha mãe ia morrer do coração. Fiquei com peso na consciência e parei, para não aborrecer meus pais. E porque já havia começado a me interessar por windsurf. Lembra da Windglider, aquela prancha grande? Comprei uma daquelas com meu irmão e fomos aprender em frente ao Novo Leblon [na Barra da Tijuca]. Meu irmão virou campeão brasileiro, eu só me divertia. Gostava dos esportes mais pelo contato com a natureza, o espírito de aventura. Caratê eu lutava direitinho. Tinha paixão, via aquilo como arte.
O que mais levei, para a vida inteira, foi o autocontrole. Quem me conhece me acha supercalmo, falam até que sou zen. Eu não sou zen porcaria nenhuma! Sou superansioso. Mas eu sempre me contenho. O autocontrole é tudo. Tanto que eu nunca briguei. Na rua, já fui provocado, mas me contive. O caratê me deu autocontrole e autoconfiança. O Inoki ensinava a filosofia oriental, me fez ver o caratê como arte e eu fui fundo na leitura dos livros, é uma coisa muito importante na minha vida. Meu filho João Pedro, 22 anos, é faixa verde.
Não era fácil. Eu tive que aprender a fumar! No meu primeiro cargo na Souza Cruz, assessor de desenvolvimento de produto, eu precisava distinguir no cigarro as notas, os aromas, o que era madeira, como era cada gosto, como se faz com vinho. Eu era responsável pelo painel de fumantes. Eram pessoas pagas para avaliar cigarros todo santo dia. A sorte é que fiquei só um ano nessa função. Aí fui pro marketing. Foram nove anos na Souza Cruz, foi minha universidade.
Não, jamais gostei de fumar. E também não havia a obrigação. Funcionário da Souza Cruz ganhava três pacotes de cigarro por mês. Eu pegava a minha cota e dava tudo para o porteiro do meu prédio.
Foi na sorte. Caí na área de comunicação e depois me tornei o gerente responsável por esses festivais e pelo Carlton Dance. Cheguei a fazer também dois Hollywood Surf, entre 1987 e 1989, e eventos de motocross, vela e até jet ski. Naquela época, podia-se fazer propaganda e os comerciais eram espetaculares, imagens de esportes que ninguém via no Brasil. Quando lançava um filme de Hollywood, a música virava hit no rádio. A Souza Cruz, apesar de lidar com um produto controverso, ditava tendências. Até que, quando me tornei responsável pela seleção de estagiários, dei uma palestra na PUC do Rio e me deparei com a pergunta: “Você não sente vergonha de vender um produto que mata?”. Era um garoto, nunca vou esquecer. Respondi: “Olha, eu não fumo, nem sou obrigado a fumar. A indústria adverte que o cigarro faz mal. É a tal história: você gostaria de ser proibido de fumar? Você opta”. Até hoje defendo isso. Não adianta proibir: o cara decide se quer correr o risco ou não. Liberdade de escolha.
Foi a maior encrenca, mas por outro motivo. Antes do show, o Cobain tinha tomado sei lá o que e foi pra janela do hotel querer voar. O coitado do Luis Oscar Niemeyer, que era o diretor de produção, teve que ser chamado às quatro da manhã para resolver o problema. Imagina se o cara pula?
Lá atrás, era um sonho, porque a Souza Cruz tinha grana, bancava todo o evento. A produção era totalmente dirigida pela Souza Cruz, não era um evento que a empresa comprava. A gente tinha verba, trazia quem a gente queria, escolhia tudo. Eu assumi o Hollywood Rock em 1988 e fiquei até 1993, quando saí para trabalhar no Banco Nacional. A Souza Cruz era a única subsidiária da BAT [British American Tobacco] no mundo que fazia eventos de rock. Eu morria de medo era de acontecer alguma coisa que fugisse do controle. Em uma edição, chegou a ter tiro na praça da Apoteose, no Rio – por sorte, uma coisa pouco grave –, mas o medo era no dia seguinte estar estampado nos jornais “Tiroteio no Hollywood Rock”.
Ele tem dois anos a mais que eu. Éramos sócios do mesmo clube na infância, o Ingá, em Teresópolis, mas meu primeiro contato foi quando eu era da Souza Cruz e ele cuidava das revistas femininas da editora Abril. Meses depois, eu trabalhava no Banco Nacional e ele, já na Globosat, me ligou para falar sobre uma vaga no SporTV. Eu disse: “Mas eu não entendo nada de TV”. Ele disse: “Tudo bem, quero um cara de negócios, para cuidar da marca, da relação com o mercado”. No SporTV foi amor, paixão. Com seis meses, o Pecegueiro me promoveu a diretor-geral e comecei a cuidar da parte editorial.
Tive rejeição, claro. Mas o Pecegueiro comprou minhas brigas. O SporTV News, por exemplo, era um jornal gravado. A gente começou a produzir ao vivo, diário, com o que tinha em casa. Foi a primeira grande mudança. A segunda foi aumentar as transmissões dos jogos: entravam cinco minutos antes e acabavam logo depois do apito final. Eu sou da época de levar o rádio para o Maracanã e escutar os comentários de João Saldanha, Mário Vianna. Não tinha graça se não ouvisse essa turma depois. Fizemos uma adaptação da “grande jornada esportiva” do AM, com pré-jogo e pós-jogo. Meia hora antes e meia hora depois. Com isso, o jogo crescia para três horas. E criamos o Zona de impacto, o embrião do que é o canal Off, para o que na época chamavam de esportes radicais. Eu fui aprendendo. Trabalhei muito no começo com o Bocão, que tinha um programa chamado Rip. Ele foi o grande precursor dessa história e já estava lá dentro. Falei: “Pô, Bocão, me ajuda”.
Ele me ligou dizendo que queria um vice-presidente de marketing. Aquilo me causou um negócio na cabeça. “Música! Deve ser do cacete!” Eu adorava trabalhar na Globosat, mas resolvi conhecer um mundo novo. Assinei um contrato por quatro anos.
O mundo estava despencando. Depois de um ano, falei: “Caramba, não é o que eu imaginava”. Marketing de gravadora naquela época, claramente, era uma coisa para fazer a engrenagem funcionar, pagar o jabá e tocar no rádio. Como o contrato me prendia, fui ver as coisas boas, que não eram poucas. Nesses quatro anos, conheci do bom e do melhor da música do mundo. Ia a convenções em Nova Orleans, Paris, Londres... Vi um show dos Strokes antes de sair o álbum: eles se apresentaram para executivos da gravadora em um lugar pra 200 pessoas em Nova York. Vi a Avril Lavigne, molequinha, 16 anos. Alicia Keys, vi numa dessas casas pra cem pessoas. Isso não tem preço. No fim das contas, me adaptei, contratei um cara para cuidar das rádios e jabás e vivi quatro anos bem legais.
Eu estava morando em São Paulo sem família, porque os filhos estavam numa fase de colégio que impossibilitava a mudança de cidade. Então adorei voltar para o Rio e trabalhar como diretor de comunicação, algo que eu dominava. O problema é, que três meses depois, o presidente me chamou e disse que iria mandar dois VPs embora e que gostaria que eu assumisse uma área grande. Era metade da Embratel! Putz, eu não entendia nada de telecomunicações. E o cara acreditou em mim. Sofri no começo, ia às reuniões e não entendia o que estavam falando. Aprendi passando noites em claro, estudando. De repente o cara me entregou 5 bilhões de reais de receita. Se eu não desse certo, a empresa quebrava. Não cheguei a lidar direto com o Carlos Slim, mas fui algumas vezes ao México. E também participava do conselho da NET. No quarto ano de Embratel fui almoçar com o Pecegueiro, que estava fazendo uma reformulação na Globosat e perguntou se eu tinha interesse em voltar. Eu eu falei: “Porra, muito!” [risos]
Há dois anos, veio a missão de lançar novos canais. Discutiu-se muito que canais seriam esses. E eu vim com a proposta: não é canal de esportes, não é canal de aventura, não é canal de natureza. É um canal que reúne as três coisas. Fizemos uma pesquisa e o nome Off veio com esse conceito de fuga. O cara está estressadíssimo, liga no Off e, com aquelas imagens bonitas, música bacana, vai relaxar, viajar, desligar dos problemas.
A gente não tem audiência aferida. Mas a repercussão tem sido espetacular. Temos muito a explorar, uns 20 anos para desenvolver e crescer. E já tivemos de mudar muita coisa. Inicialmente era para ser um canal todo em HD e só com 20% da grade com produções nacionais. Comecei fazendo acordos com grandes distribuidores estrangeiros, como a Red Bull, trazendo gente como Jack McCoy [mestre americano dos filmes de surf]. Entre os brasileiros, pensei primeiro em Carlos Burle [big rider], e Cani [Luigi Cani, paraquedista]... Rejeitei a turma antiga do Zona de impacto. Eu precisava de olhares novos.
Um dos nossos objetivos é poder viver sem o Big Brother. É um projeto em que pegamos carona. Mas, passa ano, sai ano, a audiência segue lá, acho que ele terá vida longa. A Globo tem competência pra caramba pra reinventar o programa e ainda tem cartas na manga, como fazer uma edição com artistas. O Big Brother ocupa só três meses do nosso ano.
A gente está tentando melhorar. O conteúdo principal, que é o show, rende audiência, independentemente de ser apresentado por Didi, Erika Mader ou Beto Lee. Mas estamos buscando escalar repórteres com afinidade com os eventos.O Beto é um cara que tem bagagem enorme no rock, não vou botar o cara para entrevistar o Luan Santana.
Sim, o Multishow paga pouco no primeiro contrato. Porque é um teste, é uma aposta. Depois que o programa dá certo, a gente investe mais. Em vez de exigir piloto e tal, a gente chama o cara e diz: “Vamos bancar os seus custos e fazer o programa com a minha área artística lhe ensinando como fazer barato”. Alguns não veem como vantajoso. Mas a resposta que eu posso dar é: 40 produtoras diferentes trabalham com Multishow, Off e Bis. Dessas, quase todas estão com a gente há três anos. Claro, se o programa não deu certo, a pessoa pode ter perdido dinheiro. Quem está comigo na quarta temporada não está insatisfeito. O pessoal da Conspiração não está insatisfeito. Mas quem não deu certo às vezes vai ao jornal para reclamar.
O conteúdo erótico está no Multishow desde o princípio, há 20 anos. O canal foi criado pelo Boni, com o Boninho como primeiro diretor. Foi ele quem criou o TVZ, programa de clipes, e o Sexytime, dois dos maiores sucessos do canal. O Sexytime continua se baseando em programas gringos, às vezes de qualidade duvidosa. Mas sempre com ótima audiência. A audiência dos programas que temos, sem sexo explícito, é elevada. E, quando fomos pesquisar, o jovem falou claramente que deseja, sim, assistir a conteúdo erótico. A gente coloca a advertência, o assinante pode usar o parental control. É que nem o papo sobre cigarro: não é proibido, vê quem quer.
Eu acho que é mais, viu? Dos 16 milhões de assinantes do Brasil, pelo menos metade já é dessa classe média nova. Quando saí do SporTV, em 2001, tínhamos 1,6 milhão de assinantes e os programas eram voltados para as classes A e B. Agora estamos falando para mais de 60 milhões de pessoas, é Brasil mesmo, uma amostra bacana da população. Claro que o conteúdo tem que ser mais atraente para a classe C, mas sem ferir as partes A e B. Esse é o grande desafio.
A estratégia está nos pilares. O humor é um deles e temos pessoas como o Paulo Gustavo [do programa 220 volts], que fala pra classe C muito bem. Assim como a Natália Klein [de Adorável psicose]. A gente também tem atrações de humor mais elitizadas, como Olívias na TV, mas vamos tentar tornar o programa mais popular. O Multishow está buscando talentos e roteiros capazes de falar de A a C, como o Fábio Porchat. Outro desses pilares, a parte de viagem e aventura, também fala bem para a classe C. É um público que está começando a viajar, conhece pouco do mundo e através dos programas já começa a sonhar. E música tem apelo universal. Quando cheguei ao Multishow, era proibido falar em sertanejo. Pagode era palavrão. As maiores audiências do canal em 2012 foram o show de despedida do Exaltasamba, em fevereiro, primeiro lugar disparado na TV por assinatura, e o do Luan Santana. O Foo Fighters, do Lollapalooza, também foi primeiro lugar. Mas é importante trazer o pagode e o sertanejo, que também atraem público A e B. O Brasil está se misturando: essa história de “junto e misturado” é real.
Lá fora existem canais voltados só para a comédia, aqui não temos isso. Identifiquei essa oportunidade. Humor é difícil pra caramba, tem que desenvolver e pesquisar bem. Mas eu vi que tinha muita gente boa e jovem no mercado. Fui ver um show do Paulo Gustavo e saí com o maxilar doendo de tanto rir. A Natália Klein também é engraçadíssima. Perdi o Bruno Mazzeo, que foi pra TV Globo, fiquei sem um astro. Então fomos renovando: agora temos Fábio Porchat, temos O fantástico mundo de Gregório – que era para ser A vida de merda de Gregório Duvivier, mas não deu [risos]. Estou atrás de mais talentos. Humor dá audiência e eu preciso que o Multishow esteja entre as dez maiores audiências do Brasil. É o dever, a meta.
Guilherme Zattar
Drauzio Varella
Nas aulas de catecismo que o preparavam para a primeira comunhão, o menino ouviu que não deveria jamais morder uma hóstia: aquilo era o corpo de Cristo, e o risco era acabar com a boca cheia de sangue. No dia da comunhão, não ousou desobedecer – imagine sujar o terninho de linho branco? Mas a pulga não lhe saiu de trás da orelha até o dia em que veio a chance de comprovar se a estranha ameaça era verdadeira. Foi na missa de bodas de prata dos tios. Livre do papel de protagonista, o garoto mordeu com gosto a pastilha de farinha e água e esperou. Nada. A missa seguiu. O evento, aos 10 anos, foi definitivo para Drauzio Varella. Ali, apesar da pouca idade, ele entendeu que a crença em fenômenos sobrenaturais e, mais que isso, o conceito de um ser supremo, que exige fé inabalável e não admite dúvida, não lhe serviam. Por mais que a ideia de um protetor invisível desse segurança aos mortais, ele tinha questionamentos demais. Só poderia virar o que virou: cientista. E ateu. Antonio Drauzio Varella nasceu há 70 anos, completados em janeiro, no Brás, na zona leste de São Paulo. A mãe, Lydia, morreu aos 32 anos de uma doença degenerativa, deixando Maria Helena, Drauzio e Fernando (então com 7, 4 e 2 anos) sob os cuidados do pai, o contador José Varella. Pepe, filho de um espanhol da Galícia, desdobrou-se entre dois empregos para garantir os estudos dos filhos até chegarem à universidade, na época algo improvável para os nascidos naquele pedaço da cidade. Drauzio honrou os esforços do pai: foi o segundo colocado no vestibular da Faculdade de Medicina da USP, onde ingressou em 1962 e fez companheiros como João Carlos di Genio, com quem fundaria, em 1965, o cursinho Objetivo, hoje um império em educação privada. São amigos até hoje. Os anos como professor lhe deram dinheiro o bastante para terminar a faculdade e começar na medicina sem precisar pular de um hospital para o outro para conseguir sobreviver. Foi em 1985, já com vasta experiência no setor de imunologia do Hospital do Câncer, em São Paulo, que Drauzio participou, na Suécia, de um congresso sobre a aids. Na volta, conseguiu publicar no jornal O Estado de S. Paulo um artigo sobre a terrível novidade. Era a estreia em comunicação, área em que se tornaria celebridade. Foi no papel de maior especialista do país em aids que o médico teve o primeiro contato com a Trip: em entrevista ao programa de rádio Trip FM (então veiculado pela 89 FM, em São Paulo), em 1994, Drauzio falou com a peculiar franqueza sobre a doença que ainda era fortemente associada a homossexuais e usuários de drogas injetáveis. O mesmo tom, direto, sem rodeios, pontuou a série de pílulas informativas sobre a doença que ele passou a apresentar na mesma rádio. “Cai fora da seringa, cara. Se você não consegue encarar a vida de cara limpa, fuma, cheira, faz supositório. Mas não injeta na veia” dizia um de seus textos desconcertantes na rádio. Gabriel RInaldi Drauzio Varella Anos antes, em 1989, a gravação de um vídeo educativo sobre a transmissão do HIV o levou pela primeira vez à Casa de Detenção de São Paulo. Drauzio era fascinado por cadeias desde os tempos em que frequentava o extinto cinema Universo, cujo teto retrátil deixava ainda mais emocionantes as sessões de Força bruta, com Burt Lancaster. Pouco depois, virou médico voluntário da Casa, o superlotado complexo de pavilhões onde 111 presos foram mortos pela polícia em 1992 e que acabaria implodido dez anos depois. O doutor Drauzio não estava na cadeia no dia, mas seu contundente relato do massacre é o ponto alto de Estação Carandiru, livro lançado pela editora Companhia das Letras em 1999 em que conta suas histórias como médico dos detentos. Além do best-seller, transformado em filme pelo amigo Hector Babenco, Drauzio publicou outros oito livros pela editora. O mais recente, Carcereiros, marca sua volta ao tema de estreia – a penitenciária onde atuou por mais de 20 anos, mas agora sob a ótica dos agentes que lá trabalhavam. A escrita lhe deu alegrias e reconhecimento. Além dos livros, Drauzio publica semanalmente artigos na Folha de S.Paulo em que não se furta a tocar em temas espinhosos – do aborto à proibição da camisinha pela Igreja católica, da aids às pesquisas com células-tronco. Em termos midiáticos, no entanto, nada se compara ao alcance conseguido a partir de outubro de 2000, quando o médico fez sua primeira aparição no Fantástico, da TV Globo. De lá para cá, virou o médico mais pop do Brasil ao apresentar séries sobre variadas questões da saúde pública: obesidade, gravidez, transplantes, diabetes, planejamento familiar. Em 2011, com a série “Brasil sem cigarro”, virou o mais famoso porta-voz do antitabagismo. Fumante por 19 anos – hábito que começou na adolescência, quando não sabia o que fazer com as mãos nas festinhas, e terminou quando se deu conta do grau de dependência a que chegara –, Drauzio perdeu o irmão caçula para um câncer de pulmão, aos 45 anos. Mas nenhuma experiência com a morte, seja de pessoas queridas, seja dos pacientes que perdeu no exercício da profissão, foi tão reveladora quanto a vivida na própria pele: Drauzio quase morreu em 2004. De volta de uma das inúmeras viagens que fazia (e continua fazendo) pelo rio Cuieiras – um afluente do rio Negro, a quatro horas de barco de Manaus, onde coordena pesquisas botânicas e de bioprospecção (o trabalho, feito em parceria com a Universidade Paulista, a Unip, consiste em testar extratos de plantas em células malignas e bactérias muito resistentes, em busca de novos medicamentos), Drauzio acordou um dia com quase 40 graus de febre, calafrios e forte dor nas costas. Era febre amarela. A “sensação do ridículo” por ter negligenciado uma vacina básica – logo ele, que vive de apontar para o público os perigos dessa vida – foi só um dos aspectos que ele relataria ao escapar da quase morte, aos 61 anos, em mais um livro, O médico doente. Dormindo em média seis horas por noite (“às vezes, com cinco já dá pra aguentar”), Drauzio divide a apertada agenda entre as gravações de TV, o atendimento a detentas da penitenciária feminina de São Paulo, os textos para o site (drauziovarella.com.br, que ele afirma ter mais de 3 milhões de acessos mensais), as viagens à Amazônia, a participação em maratonas mundo afora. Mas ainda é a prática da medicina sua principal ocupação. Cancerologista renomado, divide-se entre o Hospital Sírio-Libanês e um consultório localizado logo em frente. É uma convivência intensa com doentes muitas vezes terminais, algo que o fez compreender que a função do médico não é exatamente a de curar (coisa que, em muitos dos casos que trata, é impossível), e sim tornar melhor a vida dos pacientes. Casado há 31 anos com a atriz Regina Braga, pai da editora e tradutora Mariana, 39 anos, e da médica Letícia, 36, avô de Manoela, 8, e de Helena, 2, Drauzio se dedica a tantas coisas simultaneamente por gostar da diversidade da vida. Com todos os perigos que ela tem. Você acaba de completar 70 anos. Esse número tem um peso? E foi aos 50 que você começou a correr maratona, não é? De onde veio essa decisão? A corrida lhe deu a prova de juventude de que precisava? “Não dá pra ter saudade de quando se tinha 15 anos, dá? eu não tenho saudade nem de quando eu tinha 50” Continua participando de provas? Um tema inevitável nesta edição é segurança pública. Desde que lançou Estação Carandiru, em 1999, você é requisitado para falar do assunto. Você gosta disso? Mas o trabalho em presídios lhe dá uma visão que poucos têm do sistema. Por que exatamente você escreveu Estação Carandiru? E o que o fez lançar Carcereiros só agora, 13 anos depois? “Se o código penal mudasse, se acabasse a história de a droga ser ilegal, esvaziaria a penitenciária feminina onde eu trabalho” O que pensa sobre a onda de assassinatos que vem acontecendo em São Paulo? Existe a guerra, apontada por especialistas, entre polícia militar e PCC? Você já declarou que o PCC teve origem no massacre do Carandiru. Por quê? Que razões você apontaria? Arquivo pessoal Registros das viagens à Amazônia, onde desde 1992 faz pesquisas de biotecnologia E aí vai parar na cadeia. Você defende penas alternativas para esses casos? Tem esperança de que essa discussão ganhe força? A saída é regulamentar a venda, como se faz com cigarro e bebida? Existe o argumento de que, se liberado, o consumo vai aumentar. Você tem alguma ligação com a Comissão Global das Drogas, da qual faz parte o Fernando Henrique Cardoso? Muito antes da sua conhecida cruzada antitabagista, você fumou por 19 anos. E outras drogas, você usou? Você perdeu a mãe aos 4 anos. Tem lembranças dela? E seu pai, como era? “Imagina um médico interessado em saúde pública ganhar espaço num programa que está há não sei quantos anos no ar? E ainda dizerem ‘faz o que você quiser’. Eu fui, né?” Ele já morreu? E da adolescência, as lembranças também são boas? Desde quando você é careca? Esse, é um fator de insegurança comum entre os homens. Foi pra você? Você diz que jamais cogitou ser outra coisa que não fosse médico. De onde veio a certeza? Foi na época da faculdade que você e João Carlos di Genio fundaram o Objetivo, hoje um grupo gigante na área de educação. Como foi essa história? Arquivo pessoal Drauzio em gravação do Fantástico Por que esse nome? E como vocês resolveram? Por quanto tempo você ficou na sociedade? A coisa de escrever, como surgiu? E a entrada na TV Globo, como foi? Esse alcance que você tem com a TV nunca o fez pensar em abandonar a clínica médica? Como especialista em câncer, você já perdeu muitos pacientes. Como lida com isso? A relação com os doentes e com a possibilidade de morrerem sob seus cuidados mudou com o tempo? Essa conversa é mais fácil para você hoje? “Estudante, experimentei maconha, mas não gosto da sensação de perda do controle. Toda vez que bebo um pouco a mais me sinto mal” E quando quem estava à beira da morte era você, por causa da febre amarela? Você teve medo? Você é ateu. Nem quando quase morreu houve a tentação de buscar uma explicação religiosa, esotérica para a vida? Comparando com sua infância e outros períodos da vida, você acha que vive num lugar mais seguro ou inseguro hoje? Falando em aids, como anda a política brasileira para a doença? Você crê que em 15 anos podemos chegar ao fim da epidemia, como aposta Luiz Loures (brasileiro que dirige a Unaids, na ONU)? Desde 1992 você vai à Amazônia regularmente, para pesquisas de biotecnologia. Como vê a discussão sobre biopirataria e o temor de que estrangeiros roubem a riqueza da floresta? Você já deixou de fazer algo na vida por insegurança? Você conheceu sua mulher (a atriz Regina Braga) em um curso de teatro. Você queria ser ator? E a professora era a Regina? Não faz muito tempo que Regina declarou que é bissexual. Na verdade, declarou que “somos todos bissexuais e deveríamos discutir sexualidade mais abertamente”. O que você achou? Com a experiência de quem lida há mais de 40 anos com pacientes com câncer e aids e há mais de 20 com homens e mulheres encarcerados em presídios, Drauzio Varella, o médico mais popular do país, se tornou especialista involuntário em dois dos fantasmas que mais tememos: a violência e a morte
Tem um peso. É uma idade de respeito, né? Você definitivamente não é mais jovem. Com 60 também não, mas aos 70 você entra de fato na categoria dos mais velhos. Sempre fui o mais novo por onde eu andei – o mais novo da classe, o mais novo entre os médicos. Agora sou sempre o mais velho [risos]. Mas não tenho problema com a idade. Tem problema quem pulou etapas, não realizou o que tinha que realizar. Eu fui vivendo o que tinha que viver e acho que fui ficando melhor. Não dá para ter saudade de quando se tinha 15 anos, dá? Eu não tenho saudade nem de quando eu tinha 50.
Um dia encontrei um ex-colega de escola que, no meio da conversa, perguntou minha idade. Quando eu falei 49, ele disse: “Xi, ano que vem, 50, é o começo da decadência”. Aquela frase ficou na minha cabeça. Eu estava me sentindo tão bem, tão produtivo. Para provar que não estava ficando velho, resolvi correr a maratona de Nova York. Me preparei e fiz a prova inteira. Aí comecei a correr todos os anos.
Sim. Quando você corre 42 quilômetros, se sente jovem. Fisicamente mesmo. O grande problema da idade é a decrepitude física, sentir que o corpo cria problemas, pressão alta, diabetes, o ritual dos comprimidos. Mas, se não tem isso, não há limitações. Claro, você não tem a virilidade de antes, mas também já não quer a vida sexual que teve quando jovem. Você entra num processo mais harmonioso, com uma visão mais abrangente. E começa a se concentrar no que é importante.
Sim, a última que corri foi em Berlim. Fiz em quatro horas e 12 minutos. Meu melhor tempo até hoje foi três horas e 38, em Nova York. O problema é que maratona exige tempo para treinar e isso eu não tenho.
Não. Me incomoda muito. Porque não sou autoridade nessa área. Leio os jornais, alguns trabalhos sobre violência, conheço um pouco da ciência básica da área, mas não tenho formação pra discutir em profundidade. Conversa comigo sobre câncer de mama: sei tudo o que está acontecendo, me sinto preparado para discutir. Sobre violência, não.
É, mas me incomoda. Quando o Luiz Schwarcz [da Companhia das Letras] decidiu lançar o Carandiru com tiragem de 10 mil exemplares, achei que ia ser um fracasso. Dias depois do lançamento, eu pego três jornais para ler no café da manhã e me vejo na primeira página dos três. Todos usando o livro para falar da Detenção. Aquilo me assustou. Eu só queria contar a história de um médico. Não queria representar o que não sou, uma pessoa que conhece cadeias.
A Casa de Detenção era um lugar curioso, uma craca encrustada na cidade de São Paulo. Você passava pela [avenida] Cruzeiro do Sul e via os homens atrás das grades, as pernas pra fora. Era algo muito forte e, ao mesmo tempo, era como se aquilo não existisse: quando o metrô parava na estação Carandiru, de frente para essas janelas, muita gente virava o rosto para o outro lado. Era uma história muito interessante pra contar. Minha ideia era fazer uma coluna policial em jornal, mas, à medida que reunia os textos, percebi que ninguém entenderia as histórias sem uma descrição detalhada daquele lugar. Aí vi que daria um livro.
Fiquei amigo de muitos dos agentes penitenciários da Detenção e, quando ela foi fechada, fizemos um pacto de nos reunirmos a cada três semanas, em algum bar, o que estamos cumprindo. Num desses encontros ouvi a história do Hulk, que conto no livro [o personagem tortura um preso em uma cela e, logo depois, salva a vida de outro, que tentava o suicídio]. Essa história caracteriza tanto a vida desses homens! A gente tende a classificar as pessoas em boas, más, bandidos, mocinhos, mas a verdade é que não é assim. Há uma zona intermediária que temos dificuldade de caracterizar. Passei a achar interessante a ideia de ter um livro mostrando o lado de cá daquela história que eu tinha contado 13 anos antes. Os homens de Carcereiros também estão presos, mas num semiaberto ao contrário: eles passam o dia na cadeia e, à noite, vão dormir em casa.
Quando existe uma facção criminosa que tem poder, os conflitos são inevitáveis. E acontecem uns surtos: alguém faz alguma coisa que passa do ponto suportável pelo outro lado e aí começa o mata-mata. Mas é difícil saber exatamente até que ponto as mortes fazem parte da guerra. Muitas vão parar nessa conta sem que se tenha certeza da ligação.
Os presos se organizaram pra evitar novos massacres. E as organizações ganharam tal força que passaram a mandar nos presídios. O crime organizado, a meu ver, é uma consequência darwiniana inevitável: prevalece o mais forte. A fase do crime desorganizado, quando os bandidos tinham nome – na minha infância eu ouvia falar de Sete Dedos, Promessinha, Meneghetti –, passou. Hoje é o crime desfigurado, impessoal, em que, quando um é eliminado, outro imediatamente toma seu lugar. Esse é o grande problema. Mas eu ainda acho o crime organizado... [faz uma pausa] É difícil dizer isso, mas é melhor do que o crime desorganizado.
Porque tem regras. O fim do crack e a diminuição dos homicídios e tentativas de fuga dentro do sistema prisional, por exemplo, se devem a essa disciplina imposta. Claro, é terrível que haja populações da cidade sob o comando deles. É uma ditadura. Mas fico pensando: será que não foi sempre assim, dois ou três bandidos criavam uma situação de tirania, num bairro inteiro, e a gente nem tomava conhecimento? A violência urbana é complexa. Ninguém explica com nenhum fator isolado, nem mesmo a pobreza. Não é ela, isoladamente, a razão da violência.
O problema mais sério do Brasil é a falta de acesso a planejamento familiar pelas mulheres pobres. É o maior tipo de violência que se comete contra a mulher brasileira. Nós, das classes média e alta, temos filhos quando queremos. E, se a gravidez é indesejada, paga-se por um aborto. Vamos ser francos, aborto é livre no Brasil, né? Agora, essas meninas da periferia têm o primeiro filho aos 13, 14 anos. Aos 16 estão grávidas de novo; aos 19, outra vez. Na cadeia feminina, quando vejo uma menina de 25 anos sem filhos, ou é infértil ou é gay. Do contrário, já tem dois, três, cinco filhos. São avós aos 30 anos. Então imagine a menina que engravida aos 14 anos, sem ajuda do pai da criança, e tem que trabalhar. Quem vai cuidar da criança? A solução: vender drogas.
Penitenciária feminina é isso. Se o código penal mudasse, se acabasse a história de droga ser ilegal, esvaziaria a penitenciária onde eu trabalho hoje. Lá você pergunta “qual seu artigo?” e a resposta de quase todas é “33” [porte de drogas]. Ou “35”, que é associação para o tráfico e gera as penas maiores, de oito, nove anos. Eu queria entender por que os juízes fazem essa diferenciação. Existe tráfico sem associação? Você compra de alguém e vende para alguém! Tem muita menina presa por levar droga pra dentro de cadeia em dia de visita. Lavrado o flagrante, ela já fica presa à espera do julgamento. Nem volta pra casa, as crianças ficaram sozinhas. Ela pega quatro anos de cadeia e vai cumprir, sei lá, um ano e tanto.
Claro, não é possível pegar uma menina que colocou droga dentro da vagina para levar pro namorado e prendê-la por anos! O que representa isso pro tráfico? E o que a sociedade ganha ao jogar essa menina na cadeia? Não estou dizendo que não haja traficantes, malandras. Mas muitas vezes é uma garota levada pela emoção, porque o namorado, o marido pediu. Aí ela vai presa e o cara arranja outra que faça a mesma coisa. Não era o caso de punir esse cara lá dentro? Ele poderia ficar um ano sem visita. Ela poderia ser proibida de entrar em cadeias. Seria mais eficaz e não criaríamos um problema social desse nível: crianças que vão ficar abandonadas, meninas que entram de bobeira e saem da cadeia conectadas com o crime. É o que nós causamos com essa imbecilidade. Essa questão tem que ser rediscutida no país.
Depende de todos nós. A discussão hoje é rasa, parece que só existem duas posições: ser a favor da repressão ou a favor da liberação. É quase como “você é contra ou a favor da droga?”. Há posições intermediárias. Este exemplo de Portugal, não é interessante? Criaram as Comissões de Dissuasão da Toxicodependência, há um trabalho de aproximação, de prevenção. Claro, a solução para um país de 10 milhões de habitantes não será a mesma para um de 200 milhões, mas temos que encontrar nosso caminho. Se um cara maior de idade, com dinheiro, vai a uma favela comprar droga, por que o lado de lá, que é o comerciante, não venderia?
Sim, é criar regra. Veja a questão do cigarro: hoje temos 15% de adultos fumantes, menos do que nos Estados Unidos. Por quê? Porque proibimos propaganda, fizemos campanhas mostrando que faz mal, que é dependência química. Não um charme, como se dizia. É dependência. Com as outras drogas vai ter que ser feita coisa parecida, específica para cada uma. O menino que fuma baseado na festinha não está na mesma situação do que fuma crack na sarjeta.
Eu acho que isso vai ser inevitável, mas é o preço a se pagar. Não é assim com o álcool? Milhões de pessoas que bebem, milhões que exageram na bebida e a sociedade segue em frente? Vamos criando uma cultura. Só porque a bebida é liberada vamos todos nos embebedar a qualquer hora do dia? Não. Será que a gente ia sair daqui e cheirar cocaína só por estar disponível?
Não, com a vida que levo não tenho condição de estar em nenhuma comissão [risos]. Mas é muito interessante o Fernando Henrique fazer esse trabalho. Um homem na idade dele poderia passar ao largo desse assunto. Poderia dar tantas desculpas. Acho admirável a coragem de propor uma discussão.
Ainda estudante experimentei maconha, mas não gosto da sensação de perda do controle. Mesmo álcool, toda vez que bebo um pouco a mais fico me sentindo mal, achando que fui prolixo, chato. Drogas mais pesadas, como cocaína, nunca experimentei. Na época da Detenção eu via tanta gente fumando crack que pensei: “Preciso experimentar, dar só uma tragada, para saber do que se trata”. Aí um traficante, que tinha conseguido parar com o crack, me disse: “Não faça isso que o senhor vai ficar viciado”. Tive curiosidade, mas não tive coragem. E hoje tenho muito menos.
Muitas. Ela ficou doente quando nasceu meu irmão mais novo e morreu quando ele tinha 2 anos e pouco. Teve uma doença autoimune e foi ficando cada vez mais fraca. Eu assisti à morte dela, em casa. Vi da porta do quarto o momento em que ela, que mal conseguia respirar, parou definitivamente. Mas também tenho ótimas recordações desse tempo. Jogava bola, vivia na rua. Eu era feliz e, ao contrário do Ataulfo Alves, eu sabia.
Era um homem muito forte. Minha mãe morreu aos 32 anos e ele, na mesma idade, ficou com três filhos pra criar. Tinha dois empregos: durante o dia era contador, depois tesoureiro, e das 19 à meia-noite tinha um trabalho na polícia, na seção de arquivos. Só descansava no domingo, quando cuidava das plantas, cozinhava. E sempre dizia que os filhos tinham que ir pra universidade. Num bairro operário como era o Brás, logo depois da Segunda Guerra Mundial, os meninos de 14 anos iam trabalhar nas fábricas. Mas ele dizia que os filhos dele não seriam assim.
Sim, aos 80 anos.
Eu tive uma adolescência legal, mas houve uma fase dura, dos 10 aos 15, mais ou menos, quando eu ainda era muito dependente da estrutura familiar. Meu pai se casou seis anos depois que minha mãe morreu e a vida com a minha madrasta não foi tranquila. Mas aí, com 15 anos, eu comecei a sair de casa, ia pra casa dos primos e só voltava pro almoço de domingo, porque meu pai fazia questão.
Ah, é um problema. Entrei na faculdade e já comecei a ficar careca. Meu pai, meus tios, a família paterna toda ficou careca. Quando você é moleque enchem muito com isso, o tempo inteiro fazem piadinha. Mas, quando comecei a dar aula, com 18 anos, e todos os alunos eram mais velhos que eu, foi bom ir perdendo cabelo. Ganhei um ar mais sério, professoral. Acho que me ajudou [risos].
Não tenho ideia. Tenho um tio médico, o primeiro que conseguiu estudar na família, mas não tem muita relação. Não sei por que, mas me lembro que desde pequenininho dizia que ia ser médico.
Eu entrei na faculdade em 1962, o Di Genio tinha entrado em 1960. Éramos bons alunos e o dono de um cursinho da época, o 9 de Julho, nos convidou para dar aulas de física. Eu precisava trabalhar, então eu fazia faculdade durante o dia e tinha esse emprego à noite. A gente foi muito bem nas aulas. Começamos a ter alunos particulares, ganhávamos bem. No terceiro ano, 1965, tivemos a ideia: como os cursinhos encerravam as aulas em dezembro e o vestibular era em fevereiro, inventamos um curso de férias. Alugamos uma sala na praça Carlos Gomes, na Liberdade, e publicamos um anúncio no Jornal da Tarde chamando para as inscrições. Era preciso dar um nome pro curso e eu sugeri Objetivo. O Di Genio adorou.
Porque era objetivo mesmo [risos]! Era pra quem estava prestes a fazer vestibular. Alugamos um mimeógrafo e passamos uma noite na casa dele rodando o material. No dia seguinte fui pra praça Carlos Gomes e vi a fila dando volta no quarteirão. Contei por alto umas 250 pessoas, só que a classe comportava 50. Liguei pro Di Genio, desesperado. Ele nem hesitou: “Matricula todo mundo”.
Alugamos mais salas, chamamos mais colegas para dar as aulas. Acho que chegamos a 800 alunos. O dono do 9 de Julho propôs que a gente desse esse curso lá com ele. Só que a gente estava ganhando dez vezes mais. Uns 5 mil não sei o que, sei lá qual era a moeda vigente, mas hoje seriam uns 50 mil para cada um, um dinheirão. Saímos os dois do outro cursinho.
Ah, nem chegou a ser uma sociedade... o Di Genio estava se formando naquele ano e decidiu continuar tocando o negócio. Mas eu queria ser médico. Fiquei com uma participação por um tempo e com esse dinheiro consegui começar na medicina. Tive mais tempo para estudar e me preparar, sem precisar ficar pulando de um lugar para outro como médico, que era o caminho natural para um iniciante.
Sempre gostei de escrever. Muito antes de publicar eu já reunia escritos. Isso virou uma parte importantíssima da minha vida. Quando chega o momento em que você acha que um texto ficou bom, melhor do que você imaginava que era capaz de fazer, vem uma sensação de felicidade! É essa a palavra. Felicidade, em geral, é uma coisa que você obtém quando existem condições: gente querida por perto, uma relação afetiva, um filho, um ambiente, uma paisagem... Mas a escrita também pode trazer isso. E é uma felicidade que você obtém sozinho, com seu computador, às vezes virado pra uma parede branca.
Dez anos atrás o Fantástico tinha comprado a série da BBC sobre o corpo humano e eles acharam que tinha que ter um médico brasileiro na versão daqui. Aí o Geneton Moraes Neto [editor do programa] me procurou. Avisei que só faria se eu pudesse criar o texto. E eles toparam. Um ano depois, o Ali Kamel [hoje diretor-geral de jornalismo e esporte da emissora] leu um artigo meu na Folha, sobre lavar as mãos, essa coisa básica. Ele me ligou e falou: “Você precisa voltar, essas coisas precisam ser ditas na televisão”. Eu voltei. Imagina um médico interessado em saúde pública ganhar espaço num programa que está há não sei quantos anos no ar. E ainda dizerem “faz o que você quiser”. Eu fui, né?
Se eu não estivesse fazendo clínica, minha vida seria muito mais tranquila. Eu poderia escrever mais, fazer melhor a televisão... Um amigo meu diz que não tem cabimento dedicar tanto tempo a atender poucas pessoas quando posso atingir milhões que jamais teriam acesso a essas informações. Ele tem razão. Mas eu não consigo me imaginar não examinando doentes, não pegando nas pessoas pra descobrir o que elas têm, acordar de manhã e não ter nenhum doente pra ver. Na medicina, os anos trazem uma visão incrível. O cara tá contando a história e você já entende o que ele tem. Então eu chego nessa fase, de maturidade total, e vou deixar de fazer?
Mudou muito. Quando a gente é jovem, não encara isso com tanta profundidade. Pra começar, quando você é mais jovem, encara a morte como um fracasso como médico. Então você foge um pouco desse tema, desse momento de olhar nos olhos e dizer “olha, a situação está realmente grave, nenhum tratamento vai te tirar dessa condição e o que posso fazer é te dar conforto”.
Não. É difícil até hoje. Mas você passa a considerar que, se a morte é inevitável, a sua função não é curar os doentes, mas ajudá-los a passar por essa fase tão dura. Como faz, que medicamento pode usar, quando é hora de tratar, quando é hora de não fazer nada. A arte da medicina, sua grandiosidade, está em conciliar o conhecimento técnico com as necessidades da pessoa – que pode inclusive decidir que não quer tomar um remédio que tem efeitos ruins. Há pouco tempo, uma moça recém-casada me disse que o tamoxifeno [droga usada no tratamento de câncer de mama] estava acabando com a vida sexual dela. E não iria mais tomar. Fico pensando: eu também não ia querer. Vai aumentar o risco? Vai. Mas viver é arriscado mesmo.
Engraçado, não foi medo. [Faz uma pausa] Eu olhava meus exames – não era eu quem decidia o tratamento, claro, mas eu queria ver os números – e tinha certeza de que iria morrer. À medida que enfraquecia, fui ficando tão desligado de tudo... A morte, quando chega devagar, te prepara pro final. Você não luta contra o que é inexorável. Não há possibilidade de dizer “não, eu não quero”. E a ligação com as pessoas se esgarça. Tenho duas filhas com as quais possuo uma ligação fortíssima, mas ali percebi que eu não tinha mais nada a ver com elas. Você acaba do jeito que veio ao mundo: sozinho.
Em nenhum momento me passou pela cabeça. Buscar conforto espiritual em seres divinos ou paraísos transcendentais é tão absurdo como pedir presente para o Papai Noel. Para mim, a crença religiosa e a existência de outra vida não fazem sentido.
Acho muito melhor o mundo de hoje. Pagamos um preço pelo progresso – não dá pra criar filho solto na rua, e é uma pena –, mas já houve coisas tão piores. Violência política, ditadura, por exemplo. Uma perseguição dirigida a universitários, imagine! Vivemos uma situação incrivelmente melhor hoje, inclusive na medicina. O atendimento pode ser de baixa qualidade, mas ele existe para a população. Não existia na minha infância. Em alguns setores, ele é de altíssimo padrão. Para a aids, por exemplo. Ou o programa de vacinações brasileiro, o maior programa de vacinação gratuita do mundo. Ou o programa de transplantes.
Antes da existência de uma vacina de alta eficácia, considero pensamento mágico imaginar que a epidemia de aids chegue ao fim em qualquer país. Veja o caso da sífilis, doença curável com duas injeções de penicilina, antibiótico de baixíssimo custo. Está aí até hoje. Combater doença sexualmente transmissível não é fácil. Agora, acho que o Brasil, que inovou na distribuição gratuita de antivirais no tratamento de grandes massas de pessoas infectadas pelo HIV, talvez seja um dos países com mais condições de reduzir ao mínimo o número de infectados.
Acho uma besteira. Se nem se sabe qual o poder de cada planta, o que vão roubar? Até conhecer as propriedades de uma única espécie, é um trabalho imenso. Nos Estados Unidos quem faz isso é o governo, as empresas não têm interesse em investir. No Brasil, essa politização espantou todos os cientistas que pretendiam estudar aqui. Porque eles não querem ser acusados. É gente que trabalha sério, tem a vida dedicada à pesquisa, não dá pra confundir com bandido. Nem os botânicos vêm mais. Só que a botânica amazônica ficou conhecida por causa de grandes botânicos de fora que estiveram aqui. Essa postura politizada estragou tudo.
Deixei de mergulhar. Como eu quase me afoguei quando era criança – um primo mais velho me tirou do riacho quando eu estava quase morrendo –, fiquei com um problema com água, facilmente me assusto. Tanto que eu entro no mar só até o joelho.
Não. Eu tinha terminado meu primeiro casamento, que durou 11 anos. E o homem na separação fica numa situação que, em geral, é pouco discutida. Você se separa da mulher e com isso se separa dos seus filhos. Eu tinha uma relação tão próxima com as meninas, de trocar, dividir. Foi muito duro ser afastado. Eu chorava na cama à noite, sozinho. Pensava: “Preciso sair disso, encontrar alguma coisa que me faça bem”. Aí um dia vi uma notícia sobre um curso de teatro que estava começando no MAM [Museu de Arte Moderna] e fui até lá. Cheguei, a porta estava fechada. Toquei a campainha e não apareceu ninguém. Toquei de novo e nada, então fui voltando pro carro. Aí um zelador do prédio me chamou. Expliquei que eu estava procurando o curso das 8 horas e ele falou: “Ah, já começou”. Era às 7 horas, o jornal estava errado. Me despedi e fui embora, pela segunda vez. Aí ele me chamou de novo e falou: “Espera, vou falar com a professora”.
Sim, ele apareceu de volta com ela, falando: “Olha, começou às 7 horas, mas faltou uma pessoa, então tem uma vaga. Entra, senta e não fala nada que eles estão fazendo um exercício”. Diz ela que eu me apaixonei ali, porque nunca uma mulher tinha me dito “entra e cala a boca!” [risos]. Foram três meses de curso, semanal. Ela deu as quatro primeiras aulas e, quando terminou essa parte dela, eu logo a convidei pra comer um sanduíche. Ela também estava separada, com dois filhos. Foi uma coisa que deu certo de cara. Já faz 31 anos e a vida só melhorou desde que estamos juntos.
Ela fala o que ela quer, quem sou eu pra me meter? A gente tende a caracterizar a sexualidade em padrões muito rígidos. Muita gente só aceita a heterossexualidade. Outros, mais civilizados, aceitam a homossexualidade também. E a verdade é que em matéria de sexo há uma gama tão grande de variações. Você tem extremos e no meio deles cabe tudo, não é? Acho que a Regina quis dizer a mesma coisa nessa entrevista: que ela reconhece nela um outro lado, um lado que se atrai pelo feminino. Bom, eu vivo com ela há 31 anos, sem interrupções. Pode ser que um dia eu descubra que ela tem uma amante, mas até hoje não vi nada... Sei lá, dizem que o marido é o último a saber [risos].
Léo Jaime
Thelma Vilas Boas Com 120 quilos desigualmente distribuídos por 1,77 metro, e equilibrados com 18 anos de psicanálise, o ex-roqueiro irreverente Leo Jaime amargou o ostracismo e uma doença séria, mas manteve a verve e se reinventou para muitos lados. Aqui, o ator de Malhação e expert autodidata em relacionamento homem-mulher fala de fome e de fartura, e dispara: “preconceito estético é uma coisa nazista” No show de Leo Jaime, quando a corda de um instrumento arrebenta, o cantor aproveita a substituição para animar o povo, e não se poupa da própria ironia: “Barriga tanquinho é para os fracos! Eu tenho uma lavadora turbo automática com 12 programas!”. Ou então: “Aqui não tem nada P, é tudo GG”. Perto de completar 53 anos (em abril), o cantor nascido em Goiânia é um raro caso de talento polivalente e reconhecido: apresentador, ator, cronista, roteirista, comentarista esportivo, bailarino (quem já o viu no palco, em musicais, sabe), consultor de redes sociais (já deu até palestra no Senado ensinando a lidar com “opiniões contrárias na internet”), pitaqueiro especializado em relacionamento homem-mulher e craque em conversas fiadas em geral. Tudo isso em 120 quilos desigualmente distribuídos por 1,77 metro, mas equilibrados com 18 anos de terapia (“dez com um analista freudiano legítimo, ortodoxo, no divã; cinco de terapia corporal e três de uma outra terapia, mista”). A adiposidade que se concentra no abdome, no pescoço e nas bochechas é consequência de uma doença rara, o pan- hipopituitarismo. A glândula pituitária de Leo não produz hormônios, e a ausência de um deles, o GH (sigla para growth hormone, hormônio do crescimento), leva ao acúmulo de gordura intravisceral, que, além de perigosa para a saúde, tem um efeito estético execrado pela sociedade atual: a barriga. Isso não o impede de fazer bonito ao lado da lindona Fernanda Lima no programa Amor & sexo, da Globo, nem de se destacar entre jovens sarados no elenco da novela teen Malhação, da mesma emissora, vivendo um roqueiro veterano. No canal a cabo GNT, comanda o reality-show Detox do amor, e há pouquíssimo tempo, iluminava as mesas do Saia justa com frases como “quem repara demais na celulite das moças acaba preferindo bunda de rapaz”. Nos anos 80, magro, Leo Jaime posava de sunga no encarte de seu primeiro LP (o impagavalmente intitulado Phodas “C”) e aparecia de cueca em videoclipes. Dominava rádios FM com até cinco músicas no top 10, namorava cobiçadas modelos, lotava ginásios por todo o Brasil e atuava em filmes pop como As sete vampiras e Rock estrela. Nada mau para o garoto que saiu de casa cedo e até hoje reluta em falar sobre a família na qual diz ter nascido “acidentalmente”. “Sou o terceiro filho de um casal muito jovem, meus pais tinham 21 anos. Não tive uma infância feliz, não tive adolescência feliz”, resume, com desconforto. Leo deixou Brasília aos 17 anos, com “uma mão na frente e outra atrás” (como bem define seu sucesso “O pobre”), disposto a ser ator de teatro. O plano inicial era se juntar à trupe de Zé Celso Martinez Correa, em São Paulo, mas uma oportunidade na companhia do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928-1992) o fixou no Rio de Janeiro. Em meio a empregos variados, como vendedor de roupas em loja, barman e iluminador de teatro, conheceu Cazuza quando nenhum dos dois nem sequer sonhava em viver de música – “não era uma opção real”. Enquanto se dividia entre duas bandas – Nota Vermelha e João Penca e seus Miquinhos Amestrados –, esnobou uma vaga no Barão Vermelho e indicou o amigo. Gravada por Eduardo Dusek, junto com os Miquinhos Amestrados, uma de suas canções, “Rock da cachorra” – aquela do refrão “troque seu cachorro por uma criança pobre” –, foi importante para consolidar a nova geração do rock projetada com “Você não soube me amar”, da Blitz. “Os livros sobre a música desse período se esqueceram dessa história”, observa. Na virada para os anos 90, em crise com a própria imagem de “roqueiro emergente”, tentou uma mudança para um lado mais adulto e suave. Acabou amargando longo ostracismo. “Chega o momento em que vem o dilema: se faço uma coisa nova, estou abandonando meu público e perdendo a essência; se sigo a mesma linha, sou um artista esgotado, que só se repete. Ou seja: se quiserem que você esteja errado, você vai estar errado, não importa o que faça”, lembra. Quando, em 1992, começou a sofrer as consequências da doença, já tinha razoável bagagem como colunista. No jornal O Globo, havia escrito sobre música, futebol e TV. Em revistas como Capricho e Desfile, aventurou-se por temas de comportamento. O clique, porém, veio com um convite para assinar textos em O Dia. “Escreve sobre relacionamento, porque tem pouco homem que fala disso e as mulheres querem saber o que os homens pensam”, pediu-lhe o editor Joaquim Ferreira dos Santos. “Foi essa sacada dele que me fez perceber todo um caminho profissional”, credita Leo. Seu "Rock da cachorra", de 1981, ajudou a calibrar o espírito irreverente da primeira safra do rock carioca Em 2000, voltou a conhecer o sucesso nos palcos, dançando e cantando no musical Vitor ou Vitoria. “Por causa da peça, decidi morar em São Paulo. Como ator, não poderia imaginar nada melhor: um ano em cartaz ao lado de Marília Pera, com a melhor bilheteria possível. Imaginei: ‘Pronto, vou ficar aqui. Vai ter muito trabalho pra mim’. E não teve.” Veio um contrato com a Abril Music, que evaporou junto com o resto do champanhe das taças da festa de assinatura. “O disco não saiu e eu acabei ‘pendurado na brocha’, morando numa cidade onde eu não tinha sequer banda. Mas São Paulo foi fundamental para a retomada da minha carreira musical. Voltei às origens: fui tocar em bar.” Foram três anos de boas experiências no Na Mata Café, no Itaim, com a retomada de contato com colegas da geração do rock e um encontro que deu em casamento. Há oito anos, não larga da psicóloga Daniela Lux, de cujo ventre saiu David, 5 anos e meio, a concretização do sonho maior do cantor. “Ser pai é minha verdadeira vocação.” Os três moram hoje no Rio, no Jardim Botânico, sem babá, com energias concentradas na vida familiar. A rotina de gravações não permite que Leo viaje muito, mas ele tem rodado o Brasil com o show Festa, centrado em canções dançantes, dele e de outros autores. Depois da recente parceria com Rita Lee (“Tchau”, feita para Malhação) e da faixa nova, “Fui”, incluída no recente relançamento de Todo amor (seu disco de intérprete, de 1995), ele planeja lançar, finalmente, o primeiro DVD em 30 anos de carreira. Depois, outro show, intimista, abrindo a gaveta de inéditas, e um novo projeto de talk show. “Eu tenho muito para comemorar.” Comentou-se nas redes sociais que os participantes do Big Brother, muito jovens, não conheciam suas músicas. Talvez não soubessem cantar uma ou outra, mas, no geral, conheciam. Quem viu toda a apresentação percebeu isso. De todo modo, tem um gap mesmo entre quem me conhecia antes e o público de agora. Fiquei muito tempo sem gravar, passei muito tempo sem sequer mostrar música para as pessoas da indústria. Parecia que eu não teria outra oportunidade. Você lançou um disco como intérprete em 1995, depois de cinco anos na geladeira de uma gravadora. E só voltou a lançar disco solo em 2008. A atuação multimídia de certa forma compensava as frustrações com a carreira musical? Quando fui trabalhar em novela, em 1988, depois de muitos hits de rádio, e, depois, quando comecei a escrever no jornal O Globo, entenderam que eu estava dando as costas para o sucesso. Mas eu só estava sendo fiel a mim mesmo. Estava com vontade de escrever e atuar, de ser a pessoa que sou hoje. Precisava de um ano sabático, para pensar para onde ir, o que seria impossível naquela maratona de shows, filmes etc. Estou em paz com o que fiz antes. Mas naquela hora o lugar que tinham pra mim, de roqueiro irreverente, era um sapato apertado para o cara que eu tinha me tornado. Eu precisava fazer outras coisas. "A mensagem era esta: 'Não queremos sua música, você está gordo, decadente, acima do peso..." Foi uma crise de maturidade? É. Fiz 30 anos e pensei: “O que vou fazer agora?”. E calhou de vir o Plano Collor, justamente quando eu tinha entrado para a gravadora Warner, em 1990. Muitos discos foram adiados, carreiras deixadas em suspenso. Lá tinha Gilberto Gil, Ultraje, Kid Abelha, Titãs, Barão Vermelho. E, no último lugar da fila, eu. O tempo foi passando. Depois de dois anos, você deixa até de ser assunto. Quando consegui, depois de longa pendenga jurídica, lançar o Todo amor, em 1995, o cenário parecia favorável de novo. Conseguimos encaixar música na novela das oito, mas não repercutiu, não rolou. Até que eu fosse gravar outro disco, passaram-se 13 anos. Nesse tempo, muita gente teve oportunidade de gravar. Eu não. A certa altura me cansei de ligar pras pessoas e não ser atendido. Tive de tocar minha vida pro lado em que o vento estava batendo. Permaneci fazendo shows, trabalhando em musicais, escrevendo pra TV. E isso foi solidificando uma trajetória que hoje parece muito clara. Minha atividade é múltipla. Em que momento ficou claro que a sua imagem estava prejudicando sua carreira de cantor? Basicamente a mensagem que me passavam era esta: “Não queremos ouvir a sua música porque você está gordo, está decadente, está acima do peso”. É curioso porque falavam isso do Elvis também, né? Ele cantando como nunca e as pessoas dizendo: “Ah, está decadente”. Já com outros artistas que apareceram gordinhos desde o começo, como o Ed Motta, ninguém via problema. Não estou me comparando a ninguém. Mas o Elvis, mesmo brilhante, tinha essa cobrança de ser galã. E ele morreu novo, com 42 anos. O fato é que fazer aniversário não faz bem pra saúde. E o fã gosta de gente que morre jovem. Se você quiser satisfazer mesmo o seu fã-clube, morre logo! [Risos.] Aos 27, é a hora perfeita pra morrer. Nego adora! [Risos.] Como percebeu a mudança do seu corpo? Ficou deprimido ao ver que estava engordando? Eu tenho um problema de saúde chamado pan-hipopituitarismo. Ou seja, eu não tenho hipófise, glândula que produz hormônios importantíssimos. Por alguma razão, fiquei assim; acho que foi por causa de um tombo de moto na adolescência. Você leva uma pancada na cabeça, ela incha e comprime a hipófise, que depois pode voltar ao normal. Ou não. É o meu caso. Não tenho produção hormonal, preciso tomar todos – todos! – os hormônios para o resto da vida. Fiquei muitos anos tomando corticoide, e sem tomar GH, o hormônio que faz com que você não acumule essa gordura intra-abdominal, que forma a barriga. Malhei muito a vida toda, tenho boa musculatura, só tenho dobra de gordura no pescoço, no rosto e no tronco. Meu percentual de gordura não é alto, tenho muita massa magra. Meu colesterol é baixo, a glicose é baixa, tenho saúde boa. Mas tenho aparência de uma pessoa muito mais gorda do que sou. Como você controla o peso? Eu tenho 1,77 metro. Teria que pesar, para ficar magrinho, 105 quilos. Precisaria perder uns 15. Tenho controle, nutricionista, acompanho tudo. Mas é muito difícil baixar tudo isso, porque precisaria malhar todo dia. E malhar pesado. Não tenho tempo nem toda a disposição necessária. Tinha vontade de fazer o “Medida certa” [quadro do Fantástico que desafia celebridades a perder peso seguindo um programa de exercícios e dieta], adorei quando cogitaram meu nome por lá. Queria que as pessoas vissem o que eu faço. No transport, preciso trabalhar no índice máximo de dificuldade, o maior peso, para conseguir a frequência cardíaca desejável. Se você pegar um professor lá, forte, não sei se vai conseguir fazer com essa carga. Eu gostaria de ficar magro, inclusive para garantir o futuro do meu filho. Sei que o preço que eu pago profissionalmente é enorme. Mas não sei se seria mais fácil se eu estivesse magro. "Falavam do Elvis também. Mesmo brilhante, tinha a cobrança de ser galã" Você tira a camisa sem embaraço, em qualquer lugar? Normalmente. Eu sou um homem feliz, bem-sucedido afetivamente. Sou mais feliz hoje do que em outros momentos da vida, em que estava magrinho. Não se pode ter tudo, né? [Risos.] Tem corpo de tudo quanto é jeito. Você olha o cara, acha gordo, e ele é um campeão olímpico. E, cá pra nós, as mulheres que agradam o mundo da moda não são as preferidas da maioria dos homens. E você também gosta de mulher cheinha? Olha... Eu gosto é da minha mulher! [Risos.] Mas a sua mulher é magrinha? Ela é mignon [risos]. Você já teve relacionamento com alguma mulher acima do peso? Já... Já. Não tenho problema nenhum com isso. Aí a pessoa é mais importante do que a altura, os centímetros, os quilos etc. A forma como ela lida com isso também influencia. Quantos casamentos você já teve? Sou casado apenas agora. No papel, só agora. Cheguei a morar junto, mas não era casamento. Quantos foram? Olha, não gosto de fazer auê da minha vida íntima, nem sou casado com alguém do interesse geral. Minha mulher é psicóloga, Daniela Lux Jaime. Ela clinica e está fazendo formação em Lacan. Qual é a sua bagagem em psicoterapia? No total, fiz 18 anos. Dez com um analista freudiano legítimo, ortodoxo, no divã. Cinco de terapia corporal e três de uma outra terapia, mista. Você buscou as outras porque ficou faltando algo depois dos dez anos de Freud? Fui pra terapia corporal, análise bioenergética, da linha do Lowen [Alexander Lowen, 1910-1992, psicanalista americano, discípulo do austríaco Wilhelm Reich], quando estava começando a sentir o efeito da doença. Minha terapeuta disse uma coisa fundamental: “Seu corpo é que está fazendo mal para sua cabeça, não o contrário. Você está bem, centrado, positivo; tem algo de errado é no seu corpo”. A sacação resultou no meu diagnóstico. Aí, quando ia me casar e queria ser pai – acho que essa é minha verdadeira vocação –, fui fazer terapia para me preparar. Como você e sua mulher se conheceram? É engraçada essa história. E um tanto reveladora sobre a questão física não ser importante. O lado pessoal se impõe sobre os atributos físicos. Na clínica de um amigo, em São Paulo, fiz tratamento com uma fisioterapeuta e fui com a cara dela instantaneamente. Um dia, estou lá no bar e vejo aquela moça se aproximando, com meu amigo. “Tô achando você estranha”, eu disse. E ela: “Já sei, você deve estar achando que sou minha irmã gêmea” [risos]. Não sabia que a fisioterapeuta tinha irmã gêmea. Mas instantaneamente bateu. Você cita a paternidade como questão fundamental na sua vida, algo para o qual você fez questão de se preparar. Como é sua rotina como pai do David? Eu levo a sério esse negócio de ser pai. Não tenho nenhum parente na cidade, é tudo com a gente mesmo, eu e minha mulher. Meu filho nunca teve babá. Hoje o David foi parar na minha cama no meio da noite. Acordei cedo para levá-lo para a escola, ele está começando o pré 2. Buscá-lo é tarefa minha também. Temos uma rotina chamada “programa de meninos”. Jardim Botânico, cinema, teatro. Só os dois. Dá uma intimidade, um laço apertado. Nos primeiros 45 dias, só eu dei banho nele. É meio tenso, tem até mãe que amarela, mas aprendi logo. Agora estou ensinando o David a tocar violão. Como tenho que tomar hormônio todo dia, ele fica me olhando aplicar a injeção e pediu pra aprender. Já aprendeu, aliás. Ele é calmo, não se assusta com sangue. Se tiver interesse por música ou medicina, tá lindo. Não faz diferença pra mim. Você não gosta de falar muito da sua infância e adolescência. Já citou em entrevistas que seu pai não era muito presente. Na música “Já foi papai”, você diz: “Pai, de você eu só quero grana/ e não está no meu programa/ deixar de ser quem eu sou/ Pai, anote o número da conta do meu banco/ e deixe lá a mixaria/ que é o que você tem pra dar (...)/ Pai , suas ideias são uma delícia/ e gosto delas tanto quanto amo a gripe e a polícia”. Não era uma música para a pessoa. Era para a entidade, até porque... [Pausa.] Eu nunca usei minha vida pessoal como elemento dos meus trabalhos. Porque, quando você tem uma história dura, de sacrifício, pode parecer que você está se fazendo de vítima. Posso falar que escolhi sair de casa cedo, escolhi uma carreira e uma vida com riscos. Torço para meu filho não ser o adolescente que eu fui. Eu era um fio desencapado. Durante muito tempo, vi as dificuldades com muito mais clareza do que as possibilidades. Depois de ter reconhecimento, de fazer sucesso no Brasil inteiro, como é que eu fico 18 anos sem lançar um disco de inéditas? É uma dificuldade enorme lidar com isso! Fazer uma música pra quê? Ninguém vai ouvir, ninguém quer. Até que apareceu a internet e eu entendi que não era bem assim. Aí, fiz a minha estrada. Na TV, e também como cronista, você acaba sendo um especialista em relacionamentos. Em sua trajetória pessoal, o que acha que lhe dá autoridade para falar do assunto? Eu não aconselho, debato. Não sei nada, apenas dou meu pitaco. Se a sua visão faz pensar, é o suficiente. Vou citar uma frase que disse outro dia no Amor & sexo: “Pau duro não é obrigação, é merecimento”. É o início de uma reflexão. A mulher pode se questionar: “Você acha que, só de tirar a roupa, o cara já tem que ficar de pau duro? Já para você se excitar, ele precisa se dedicar?”. Para o homem, vale pensar: “Você é uma máquina? Tirou a roupa, tem que se excitar ou há algum sentimento envolvido também?”. Gosto do assunto. Sempre tive muitas mulheres, e falo isso no sentido mais amplo e menos cafajeste. Levo muito a sério a amizade com as mulheres. Se eu estiver numa roda com 39 mulheres, fico à vontade. Com 39 homens, não sei. O Clube do Bolinha nunca me interessou muito. No da Luluzinha, eu sempre quis dar uma espiada pra ver o que estava rolando. Mas, no fundo, a mistura é melhor: se tiver uma mulher no meio, a roda dos homens melhora. E, se tiver alguém gay, melhora ainda mais. "Torço para o meu filho não ser o adolescente que eu fui. Eu era um fio desencapado" Você conheceu o Cazuza muito antes de os dois ficarem famosos. Tinha ideia de que ele poderia se tornar a grande voz poética da sua geração? Há outros grandes dessa época – Júlio Barroso, Renato Russo. Mas é indubitável que o Cazuza é grande. Quando a gente estava sem saber o que fazer da vida, ele pensava em ser ator. Escrevíamos, um mostrava coisas pro outro. Eu achava que seria um poeta como os da geração mimeógrafo, Nuvem Cigana, Chacal. A música não era uma opção real nem pra mim, que já fazia canções. Quando os caras do Barão me chamaram pro ensaio deles, eu cantava em duas bandas, Miquinhos e Nota Vermelha. Fui e pensei: Cazuza! Ele não imaginava que ia fazer parte de uma banda, nem gostava da ideia. Eu sabia que ele compunha, mas ele dizia que romperia relações se eu contasse pra alguém. Ficava incomodado com a possibilidade de trabalhar como cantor ou músico, porque o pai dele era diretor de gravadora. É famosa a história de que, jovem e sem grana, você de vez em quando ia à casa dele filar um almoço. Cazuza brincava, dizendo para a empregada: “Dá comida aí pra esse pobre”. Como você encarava esses tempos de dureza? Até onde isso o marcou? Eu não gostava de recorrer a isso, ficava muito envergonhado. Não ter o que comer – passar alguns dias sem um pedaço de pão em casa – é sobretudo humilhante. Dá uma sensação que vai além do físico. Quando fiz “Rock da cachorra” [do refrão “Troque seu cachorro por uma criança pobre”], eu estava tratando desse sentimento. Por trás da fome há um desconforto ainda maior pelo desamparo. A falta de afeto é o mais triste. Demorei bastante até conseguir as coisas na música. Eu estava na gênese da Blitz também: a Fernanda Abreu era minha amiga e eu a chamei para fazer backings no Nota Vermelha, que durou um verão e que a gente montou pra tocar no bar do pessoal da Casseta Popular [Emoções Baratas]. A Blitz tinha saxofone, era outra proposta, sem coral feminino. Mas, depois de verem a Fernanda, mudou e acabou dando supercerto. Por um tempo, a gente morou junto, eu, a Fernanda e o Luís Stein, com quem ela foi casada por quase 30 anos, em um apartamento no Cosme Velho [zona sul do Rio de Janeiro], sem elevador e sem telefone. Eu vim de Brasília com 17, 18 anos, sozinho. Trabalhava com o que dava. Fazia produção de show, operava canhão de luz, era contrarregra, produtor, vendedor de roupa em loja, barman. Eu não imaginava que fazer música fosse profissão, fonte de renda. Como eu já fazia teatro, primeiro em Goiânia, depois em Brasília, imaginava que esse pudesse ser meu caminho. Então, foi o teatro, e não a música, que definiu sua ida para o Rio de Janeiro? Vim parar na cidade assim: estava saindo de Brasília para morar em São Paulo e trabalhar no Oficina, do José Celso Martinez Correa. Passei antes no Rio para visitar uns amigos. Fui num ensaio da Teatro do Movimento, companhia de dança e teatro do Klauss Vianna [coreógrafo mineiro, 1928-1992]. Um dos atores não ia poder fazer o espetáculo, aí me chamaram e eu topei. Deu o maior pé: o Yan Michalski, crítico de teatro dos melhores, ficou impressionadíssimo com a minha estreia. Acabei convidado para entrar na companhia. Eu paguei um preço enorme pra começar. Mesmo quando eu já estava com música tocando em rádio, nem sequer tinha uma guitarra própria. O fato de eu não ter um suporte econômico me deixou em situação complicada. Toda vez que sentava numa mesa para negociar, e os caras do outro lado sentiam que eu precisava mais da grana, pegavam mais pesado. Mas eu andei tanto que não consigo ver minha história como uma trajetória que não seja de muito sucesso. Agora, é luz e sombra, né? Uma hora todo mundo gosta das coisas que você fala; na outra, você diz as mesmas coisas e está tudo errado. Eu conheço os dois lados do caminho. Então, quando começaram a vir essas histórias por causa da minha aparência, eu de certa forma já estava habituado. Sempre nadei contra a correnteza. Não que eu concordasse. Eu fico puto até hoje. O preconceito estético é uma coisa nazista. Mas consegui ultrapassar isso. Você ficou vermelho quando Monique Evans foi ao Amor & sexo e lembrou que um certo Leo Jaime, que ela namorou nos anos 80, lhe proporcionou o primeiro orgasmo, já aos 30 anos. Como isso pôde acontecer com um ator que por pouco não fez parte do grupo do Zé Celso? Ela falou de um jeito muito educado. Mas, de qualquer forma, fico meio... [Risos.] É um pouco embaraçoso. Sou tímido. Falar da minha vida íntima me deixa constrangido. Mas cantando diante de 15 mil pessoas me sinto tão à vontade quanto no banheiro da minha casa. Um amigo me falou: “Você gosta de se meter em roubada, até na pelada, quer ser centroavante, arruma sempre responsabilidade”. É o meu jeito: escolher o desafio maior. Tenho enraizada em mim a certeza de que sempre pode dar certo. Sempre pode melhorar. Coordenação Geral Adriana Verani Produção Editorial Mário Bernardo da Mata Produção de Moda Helena Luko Make & Hair Jésus Lopes Assistente de Produção Gabriela Michelini
José de Abreu
Demorou 48 horas, oito cervejas (baratas) e dois tintos portugueses (Esteva Douro 2010, R$ 130 a garrafa) para José de Abreu, o ator global, contar que José de Abreu, o seminarista, foi abusado por um padre aos 12 anos. Que José de Abreu, o policial, aprendeu a fumar maconha com os colegas da corporação. Que José de Abreu, o militante político, ficou amigo do xará José Dirceu na faculdade e apoiou a luta armada contra a ditadura. Que José de Abreu, o hippie fritado de ácido, bordou cogumelos na calça olhando o mar da Bahia. Que José de Abreu, recém-saído do armário no Twitter, na real nunca pegou homem – se assumiu bissexual “apenas para experimentar como é ser minoria”. Que José de Abreu, pai de cinco e avô de quatro, não ligou de tirar as calças na sessão de fotos para esta entrevista (mas lamentou estar de cueca branca “fraldão”; a do dia anterior “era mais bonitinha”). E isso é só o começo. Numa tarde de segunda-feira, Trip visitou o ator em seu apartamento de frente para a praia da Barra da Tijuca, que ele até hoje financia pela Caixa Econômica Federal (“gasto tudo que ganho, não sei juntar”). De regata branca, relógio Calvin Klein, bermuda azul e chinelo preto, ele atende já pedindo desculpas pelo mascote da casa, um lhasa apso chamado Pipo que não para de latir um segundo. “Parece deputado em campanha”, brinca Zé (pode ser só Zé mesmo). E, de política, embora diga que não entenda, ele fala sem parar. Naquele mesmo dia, tinha voltado da Bahia, onde fora apresentado a Duda Mendonça, marqueteiro de Lula em 2002, por um amigo em comum: o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, condenado a dez anos e dez meses de prisão no julgamento do mensalão (Zé defende sua inocência). Mendonça mandou um helicóptero para levar o mais novo compadre até sua mansão em Taipus de Fora. O papo do trio começou na Skol e terminou com cervejas belgas. O cão que ladra no Twitter agora quer morder: Zé anda pedindo conselhos para os próximos, pois está na dúvida se encara uma candidatura à Câmara dos Deputados em 2014. “Ninguém é a favor”, diz. Por ora, é nas redes sociais que ele faz política. Em um mesmo dia, descasca o pastor evangélico Marco Feliciano (PSC-SP), eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos, o novo papa, Francisco, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e o ex-presidenciável tucano José Serra. Rato de passeata na época da ditadura (“eu era porra-louca, ficava bem na frente dos protestos”), ele considera o novo ativismo, o das redes sociais – nas quais por sinal gasta várias horas do dia –, coisa de “militante lobinho”. “Eu acho que está na hora da molecada tirar a bunda da poltrona.” Penny Laaaaaaaaaaane is in my ears and in my eyes... A música dos Beatles ecoa como toque do iPhone 5 de Zé, um viciado confesso em tecnologia, que tem a coleção inteira da Apple e chegou a ser apelidado pelo colega José Mayer de Zé Windows nos anos 90 (para ter acesso à internet, na pré-história da era virtual, descolou uma senha do Ministério das Comunicações). Antes de interpretar Nilo, o vilão de Avenida Brasil que conquistou brasileiros de todas as idades, José Pereira Abreu Júnior foi muita coisa. Nasceu em Santa Rita do Passa Quatro há 66 anos, onde viveu o clichê do interior paulista – falava “porrrta” e arrumava namoradinhas fazendo o footing na praça. Para ele, o novo ativismo, baseado nas redes sociais, é coisa de “militante escoteiro” O pai, delegado da cidade, era querido por todos. Mas morreu cedo, quando Zé Júnior, o caçula, tinha 9 anos. Ele, a mãe e as duas irmãs passaram sufoco. Cinco anos depois, estavam todos em São Paulo, onde Zé demorou para se sentir bem (de cara foi apelidado de Caipira). A casa dos Abreu, no bairro de Santa Cecília, chegou a virar uma pensão até a situação financeira se acomodar. Logo o destino ricocheteou, tal qual máquina de pinball, e fez com que o filho de delegado entrasse para o setor de entorpecentes da polícia, no qual apreendia drogas de moleques da mesma idade que ele. Sua função era enturmar-se com a galera e provocar o flagrante. Zé, que nunca tinha provado da erva, teve de aprender a tragar. Virou fã. Já ex-policial, passou em direito no vestibular. Entrou na PUC de São Paulo em 1967 e, na faculdade (que não chegou a terminar), conheceu o presidente do centro acadêmico, José Dirceu, que naquela época também atendia por “Alain Delon das massas”. “Ele sempre foi para um lado mais político e eu, mais artístico. Não chegou a fazer teatro, embora fosse um puta de um artista. Discursando em cima de um caminhão, ele era um monstro”, compara. Zé nunca tinha visto uma peça até então, mas acabou virando produtor do Tuca, o teatro da PUC. Substituindo um colega em um ensaio, sacaram que ele levava jeito para a interpretação. Antes de ser ator, porém, outro aposto se somaria ao seu nome: o de preso político. Zé era um dos 700 estudantes que rodaram no congresso de 1968 da UNE (União Nacional dos Estudantes). Após dois meses no xadrez, viraria vendedor de máquinas de escrever, funcionário da IBM, dono de livraria e autoexilado na Europa. De volta ao Brasil, lá pelo fim da década de 70, tornou-se ator de vez. Seu papel no filme A intrusa (1979) rendeu-lhe um convite para a TV. Assinou contrato com a Globo em 1º de outubro de 1980. Conta 30 anos e 15 novelas como empregado da família Marinho, fora três anos na já extinta Rede Manchete. No momento, está fora das telinhas. Mas está nas telonas, no filme Meu pé de laranja lima, e na peça Bonifácio Bilhões (“ela fala sobre ética”), em cartaz em São Paulo até 30 de junho. Enquanto narra suas experiências lisérgicas, dá garfadas em um ossobuco de R$ 86 Com mais plim-plim que reclames, namorou colegas como Mônica Martelli e Luisa Thiré e casou e descasou com Nara Keiserman e Neuza Serroni, até conhecer o “grande AMOR” (assim escreve num e-mail), dez anos atrás. Camila Mosquella tinha 21 anos na época. Enquanto o marido narra suas experiências lisérgicas e dá garfadas em um ossobuco de vitela de R$ 86 (prato mais gorduroso, no preço e nas calorias, do cardápio), ela desliza o dedo no iPad e curte fotos no Facebook. À repórter, pediu dicas de compras na rua Oscar Freire, meca do consumo de luxo paulistano. O filho Theo, 36 anos, que já foi o Menino Maluquinho no teatro e hoje é advogado do ramo imobiliário, junta-se ao grupo. Estamos no Gero, restaurante italiano de alta gastronomia, onde Zé costuma ir “quase toda semana”. Não vê contradição em ser de esquerda e gastar R$ 1 mil em um jantar para cinco pessoas. “O que eu deveria fazer? Doar meu salário da Globo?”, retruca. Foi, talvez, sua única esquivada durante a entrevista. “Vou contar para vocês tudo que nunca contei antes.” Esse bronze é da Bahia? Falaram sobre o quê? E ele apoiou sua candidatura? Que bandeiras você defenderia, caso eleito? Mas você não acha que dá para fazer política sem ser político? Mas agora você quer ser político. Você já teve algum problema na Globo por causa de seu posicionamento político? Você divulga seu salário? Por quê? Com o salário de deputado ficaria difícil viver? É seu? “O Projac é um mundo à parte. Não tem ligação nenhuma com a realidade brasileira” E você frequenta a praia? Sedentário? Mas devia fazer sucesso com as meninas... A primeira foi com quantos anos? Você perdeu a virgindade com ela? Como foi a sua criação? Parecido com teatro, não? “Minha mãe me arranjou um trabalho na polícia. Deu merda. Aprendi a fumar maconha” Sobrou algo do latim? Você frequentou a igreja até quando? Tinha algum padre pervertido? Você presenciou alguma coisa? Mas confessou, finalmente? A mudança para a cidade grande foi traumática então... O que sua mãe achava disso? Aprendeu a fumar maconha na polícia? Vocês iam chapados prender gente fumando maconha. Não dava crise de consciência? A carreira na polícia durou até quando? Como foi na faculdade? Qual foi a primeira causa que você abraçou? Foi quando você ficou amigo do José Dirceu? O que pensa da condenação de Dirceu e do julgamento do mensalão? "Hoje se faz ativismo no ar-condicionado, clicando no mouse. É leve, quase uma brincadeira" Qual era o seu papel no movimento estudantil? E da luta armada, participou? Você foi um dos 700 jovens presos no Congresso da UNE, em Ibiúna. Como foi? Mas você foi preso, não foi? E depois? Mas largou o movimento? Qual a diferença do ativismo dessa época com o praticado atualmente, das redes sociais? Mas você não acha que o ativismo virtual pode gerar resultados reais? “Na internet você fala coisas que no boteco, bêbado feito uma vaca, você não fala porque é crime” As causas de hoje são bobas? Mas você é bem militante na internet. O que o faria ir para a rua protestar hoje? E o que fez você se afastar do movimento quando jovem? Por que a Neusa vaiava? Quando foi o primeiro? Foi a primeira de várias trips? “Tomei ácido pela primeira vez e foi: ‘Caraaaalho! É isso!’. Make love, not war. Entendi tudo” Toma ácido ainda? E o autoexílio? O Caetano Veloso ainda estava lá nessa época? Quanto tempo em Londres? Você morou em Amsterdã também, certo? Vocês tinham uma relação aberta? É possessivo, Zé? “Como não posso ser mulher, negro ou gay, escolhi ser bissexual. Foi um gesto político” Mas que preconceitos acha que tem? No começo do ano você declarou no Twitter que era bissexual. Por quê? Você então nunca se relacionou com um homem? Mas, Zé, teve ou não teve sexo com homem? E fora do palco? Você deve ter muitos colegas bissexuais que não se assumem. Por que atores não podem ainda assumir sua sexualidade? Você está preocupado? E o vídeo que você gravou com o Rafinha Bastos, em que vocês são amantes? Como é a vida sexual aos 66 anos? Como e quando você conheceu a Camila? “Abrir mão do meu salário da Globo para poder ser de esquerda? Acho isso ridículo” Foi depois de começar a fazer análise? E quais mulheres lindas você namorou? Você se dá bem com suas ex-mulheres? Rodrigo, seu primogênito, morreu aos 21 anos. Você tem problema em falar sobre isso? O que aconteceu exatamente? Como você encarou? Não é contraditório ser um cara de esquerda e ser global, comer no Gero e se hospedar no Fasano ao mesmo tempo? La Revolución, para ele, é acima de tudo individual. Policial, preso político, hippie sujo e, mais recentemente, militante virtual e (pseudo) bissexual. Zé de Abreu, o vilão Nilo, de Avenida Brasil, já foi um monte de coisa. E agora, José? “Tô pensando em virar deputado”
Pois é, fui conversar com o Duda Mendonça. Cara sensacional. A relação dele com os empregados é de emocionar.
Fui pedir conselho. Falei dessa loucura de o Lindbergh [Farias, senador do PT-RJ] querer me lançar como candidato a deputado federal. Fui conversar sem compromisso, tomar uma cervejinha.
Não. Nenhum cara bom de cabeça dá força [risos]. A família não quer nem pensar. Fui conversar com o Lula, e ele me falou a mesma coisa. O Zé Dirceu, muito meu amigo, também.
As principais bandeiras da esquerda. Melhoria no serviços de saúde, combate à miséria, aplicação de mais dinheiro na educação, descriminalização do aborto e das drogas leves.
Acho, é o que faço o tempo inteiro.
Não sei se quero, não. Além da oposição da família e dos amigos, tem o bolso, que vai doer. Ganho muito mais na Globo. Teria que pedir suspensão do contrato.
O Projac é um mundo à parte. Passa um carrinho com alguém vestido com roupas da década de 30, depois outro em cima de um cavalo... Não tem ligação nenhuma com a realidade brasileira. E a maioria dos artistas é de esquerda.
Não.
Acho chato. Vai ter colega rindo da minha cara porque ganho pouco e colega puto porque ganho muito.
Um deputado ganha R$ 12 mil por mês. É muito pouco para o nível de vida que eu levo. O meu apartamento, por exemplo...
É. Primeira vez que tenho casa própria. Acho uma bobagem, coisa de brasileiro. Morei em 12 bairros do Rio em 32 anos.
Nunca. Sou paulista, meu [risos]. Vou de vez em quando ali no Pepê, tem sempre uns amigos jogando futevôlei. Mas sou totalmente...
Total! Li sobre dois tipos de gente: o ateniense e o espartano. Sou totalmente ateniense. No meu tempo, o pior do vôlei passava num corredor polonês. Eu apanhava todos os dias. A única coisa em que me dei bem foi natação, um esporte solitário. Bola é pra mim um negócio impossível de dominar.
Era baixinho, feio e queixudo. Mas usava um topete, tinha uma chinfra. E dançava muito bem rock, twist, hali-gali, essas coisas. Minhas melhores amigas acabavam virando namoradas.
Foi a Uda, lá em Santa Rita. Ela me mandou um correio do amor: “José Júnior, eu te amo. Ass.: Uda”. O nome dela de verdade era horrível: Euricilda. Eu tinha uns 8 anos.
Não. Foi anos mais tarde, com uma vizinha de um amigo. Uma negra maravilhosa que me levou aos céus.
Meu avô era fazendeiro. Meu pai era delegado da polícia, respeitado e querido por todos. Dizia: “Você está preso! Vai para a cadeia que daqui a pouco vou lá te trancar”. Todo mundo respeitava. Morreu cedo, quando eu tinha 9 anos. Ele nunca bebeu, era grilado com o fígado. Mas acabou morrendo de remédio para cirrose hepática, uma doença de bêbado. Ele e minha mãe eram bem carolas. Fui coroinha. Tinha a roupa, o padre falando latim, os incensos, o órgão... Era um ritual lindo.
Totalmente!
Sobrou. [Zé recita pai-nosso e ave-maria inteiros em latim.]
Cheguei a ser seminarista. Assim que meu pai morreu, ficamos bem duros. Ele tinha um salário excelente, mas minha mãe não sabia nem o banco em que ele tinha conta. Os padres batiam na porta das casas e recrutavam crianças. Minha mãe achou bom eu ir. Acordava às 5h30 e tomava banho frio, de roupa e tudo, porque ninguém podia ficar pelado na frente do outro. Era uma repressão filha da puta, você tinha que se trocar embaixo do lençol.
Tava cheio.
Vivi. Um dia, um padre me deu uma masturbadinha leve. Fiquei muito grilado porque não sabia como confessar. Tinha 12 anos. Lembro do filme até: Marcelino Pan y Vino. A gente estava assistindo, e o cara pegou no meu pau. Foi um susto. Tirei a mão dele, levantei, mas fiquei com aquele pecado na cabeça.
Não. Fiquei um ano no seminário, depois voltei pra Santa Rita. Todo mundo me chamava de padre, era horrível. Como minhas irmãs já moravam em São Paulo, minha mãe resolveu mudar-se também. Foi um choque. Meu apelido virou Caipira.
Foi, mas depois melhorou. Fiz uns amigos na Santa Cecília, bairro onde morava. A gente já bebia bem. Cuba libre, hi-fi... Havia uma coisa de turma, influenciada pelos filmes do James Dean, da época. Nem tinha maconha. Só bolinha, anfetamina. Pervitin era o nome.
Morria de preocupação. Ela era conservadora. Pegava negrinhas em orfanato para “criar”. Tive uma babá, a Sebastiana, que tinha que correr atrás de mim enquanto eu andava de bicicleta. Um absurdo... Mas, enfim. Minha mãe me arranjou um trabalho na polícia. E aí que deu merda. Aprendi a fumar maconha [risos].
Explica isso. Me colocaram no setor de entorpecentes. O delegado disse: “Você vai dar flagrante. Sabe fumar maconha?”. Eu disse que não. “Dá uns baseados pro Zé, ensina como fuma essa merda.” Acenderam o beck, ligaram a sirene e falaram: “Segura!”. Comecei a rir pra caralho. Descobri que meus colegas fumavam o tempo inteiro. Era a primeira coisa que faziam antes de sair para a ronda.
Exatamente.
Imagina, era uma aventura! Estava brincando de bangue-bangue.
Foram quase três anos. Um dia, me fizeram ver um cara ser torturado. O cara se cagava, se mijava todo. Vomitei. Pedi pra sair. Fui pra Santa Rita, me enfiei na fazenda de um amigo meu. Abandono de cargo. No fim, minha mãe falsificou minha assinatura e fez um pedido de desligamento da polícia. Foi nessa fazenda que resolvi fazer direito. Do nada.
Foi quando me politizei, comecei a fazer teatro e política. A única coisa que não fazia era ir pra aula. Eram anos difíceis, uma ditadura ferrenha. Mas, ao mesmo tempo, a universidade fervia, você sabia que tinha companheiros ali. A própria universidade te protegia. Era muito gostoso passar o dia lá.
O pessoal do CA [Centro Acadêmico] começou a se unir com os excedentes pra pressionar a faculdade a aumentar o número de vagas. Às vezes passavam 400 pessoas e tinha vaga pra 60. Tinha acampamento em todas as faculdades de São Paulo. Começaram a usar o artigo 477 [proibindo fazer política na faculdade] pra expulsar alunos. Caralho, os estudantes tinham que fazer política! Era inimaginável o cara estudar filosofia, direito ou ciências sociais e não fazer política.
Isso, logo que entrei. Ele era presidente do CA e ia de sala em sala fazer um proselitismo político.
No fim, não há prova nenhuma. Tiveram que usar essa história do domínio do fato [teoria de que o autor não precisa ter executado o crime, basta ter domínio sobre o que seus subordinados fazem]. Processo totalmente viciado. Pra mim, caixa dois, o caceta, o PT fez. Foi ingênuo. Usou uma coisa que já tinha sido usada pelo PSDB.
Eu era o porra-louca. O cara que ficava na comissão de frente, que pensava na logística das manifestações, no roteiro etc.
Apenas dando apoio logístico. Não me via dando tiro em guardinha. Você acha que eu vou atirar em alguém? Menor possibilidade, ia me cagar todo, deixar o cara me matar. E eu sabia que o guardinha não tinha nada a ver com a ditadura.
A gente soube com antecedência que os policiais estavam vindo. Mas, por causa de uma discussão interna, não conseguimos resolver se tentávamos escapar ou se ficávamos. Acabamos ficando. Foi engraçado aquele bando de adolescentes cabeludos indo preso. Os policiais não sabiam o que fazer, liberaram vários deles no caminho de volta para São Paulo.
Fui, assim como todos os líderes. Fiquei dois meses na prisão.
Fiquei dois anos em São Paulo, como dono de livraria, saindo pouquíssimo. Peguei um advogado muito bom, queria voltar à vida normal.
Não, continuei fazendo alguns serviços. Dava caronas para o pessoal da luta armada, fazia entregas.
Não tem nenhuma comparação. Não tem como explicar a ditadura pra quem nunca viveu ela. Ser ativista era uma obrigação moral de qualquer ser humano que se prezasse. Hoje se faz ativismo com toda a liberdade do mundo. Dá pra fazer no ar-condicionado, clicando no mouse. É um ativismo leve, quase uma brincadeira. Mesmo que fale de assuntos sérios de vez em quando.
Acho. O Egito foi um exemplo. A Espanha também. Aqui no Brasil, por enquanto, ainda não vi nada que tenha funcionado de fato. Não basta 3 mil pessoas falarem “vamos” no Facebook e acabarem não indo. Fora que as causas são mal escolhidas. Marcha contra a corrupção?! É a mesma coisa que dizer que você é contra a morte. Todo mundo é!
Tem uns protestos ridículos. Mas, como é fácil, basta um clique no mouse, um monte de gente apoia. O duro é você sair, pegar um metrô, uma bicicleta, ir lá no Masp e gritar. E outra: um militante virtual é sempre uma persona, nunca é você mesmo. O avatar é um lado que você mostra, não é necessariamente você. Na internet você fala coisas que no boteco, bêbado feito uma vaca, você não fala, porque é crime de morte.
Sei lá, muito difícil eu sair de casa. É o único lugar que acho que não tem ninguém me filmando, me patrulhando.
Eu tinha filho já. Comecei a sentir uma outra inquietação, mais estética e artística do que política. Minha coisa era com a maconha, com a literatura beatnik, o movimento hippie. Tinha acontecido o Woodstock, Vietnã. Depois teve maio de 1968 na França, “É proibido proibir”, Caetano Veloso cantando aquelas coisas. A Neusa [primeira esposa] vaiava, e eu aplaudia.
Porque não entendia aquilo, assim como 80% das pessoas. No dia seguinte, na faculdade, estava todo mundo arrependido. Tive sorte de ter um pé nas duas canoas. Participei das duas revoluções da minha geração: a política e a artística. A coisa dos Beatles falando da Índia, essa história de usar roupa colorida e desbotada, lenço na cabeça, sentar no chão... Isso mudou o comportamento do ser humano, cara. Hoje o homem pode usar a roupa que quiser, a cor que quiser. Eu cheguei a ser chamado de veado porque estava com uma blusa vermelha com gola V, porra. Isso tudo foi uma revolução. E, claro, tinha o ácido.
Foi na Bienal de São Paulo, em 1971. Minha turma da Santa Cecília, aqueles malucos que tomavam remedinho pra não dormir, viraram artistas plásticos. E me apresentaram para um artista gringo que veio fazer uma instalação. Ele tinha uma porrada de ácido. Tomei e foi: “Caraaaalho! É isso!”. Make love, not war. Entendi tudo.
Foi. Mas era uma coisa responsável. Eu era intelectual, né? Então fui lá, comecei a estudar um monte sobre peiote, mescalina, LSD. Depois me separei [da Neusa]. Fui parar na Bahia, em Arembepe. Lá era o Woodstock brasileiro. Até a Janis Joplin, dizem, foi. Namorei a Renata Souza nessa época, uma milionária paulistana que tinha sido a primeira a usar um biquíni em São Paulo. Já tinha tomado uns 200 ácidos! A gente classificava as pessoas assim [risos]. Quando voltei pra cidade, nos separamos. E me apresentaram à Nara [sua segunda mulher]. Tomamos um ácido juntos e nos apaixonamos. Ficamos casados 19 anos e tivemos três filhos, que nos deram quatro netos. Pra você ver: às vezes a droga une. Meu analista sempre falava: “Droga não muda ninguém, só reflete e potencializa o que você já é”.
Não! Não se faz mais ácido como antigamente. Porra, hoje os caras tomam pra ir pra balada! A última vez que tomei foi no Egito, dentro de uma pirâmide.
Quando me apaixonei pela Nara, não queria mais saber do Brasil. Pegamos um navio italiano e fomos à Europa. Londres primeiro.
Sei lá. O Caetano era mainstream demais pra mim. Moramos em uma comunidade em Shepherd’s Bush, um bairro de negros, barato. Moravam 11 brasileiros e um inglês. O síndico era africano. Não lembro de que país, mas financiava as rebeliões em seu país. Vendia maconha pra comprar fuzil. E a gente ajudava, gritava em Portobello Road: “Compre maconha e ajude a África!”.
Quatro meses. Eu lavava prato e a Nara era garçonete. Fazia cinco pounds por semana, mas era rico. Um pound para morar na comunidade, mais dois pounds de comida. Só. Eu chegava às 11 horas no restaurante, fazia um puta café da manhã, lavava pratos até as 15 horas e depois comia só à noite. Aí fingia ser macrobiótico, que nem o resto da galera. Meu filho foi comer carne só com 7 anos de idade.
Nossa comunidade resolveu fazer um grupo de música e ir pra lá. Quem deu a ideia foi o Carlinhos, um cara de Niterói muito louco, que mais tarde seria o primeiro a exportar ginseng para o Brasil. Ele disse: “Temos que fazer uma vibração místico-cultural-musical sobre Atlântida”. Montamos o Children of Moo. Eu tocava flauta doce, a Nara, piano. A gente escolhia um tema, cada um pegava sua lasquinha [de ácido] e pronto. Depois resolvemos comprar uma Kombi e ir para a Índia, que era o que estava pegando na época. Todo mundo foi desistindo no caminho. Eu e a Nara ficamos na Grécia. Tava bom demais, não conseguimos ir embora. De lá voltamos para o Brasil, quando o pai da Nara mandou um telegrama avisando que tinha um emprego pra gente na Universidade Federal de Pelotas, como professores de teatro. Salário, funcionário público, tudo certinho.
Não, não! Sempre fui casado, então não tinha amor livre. Só no final do casamento, mas foi só uma maneira de dar uma sobrevida. Ela me dava carta branca mais do eu que dava a ela!
Claro, sou um macho brasileiro normal, nascido em 1946. Mas tento lutar contra isso. Nunca casei com uma mulher machista. Sempre casei com mulheres fortes, feministas, que botavam o pau na mesa. E obviamente isso me ajuda muito a erradicar o meu machismo. Mas confesso: tenho preconceitos, apesar de lutar todos os dias contra eles. Me cuido, quero fazer o bem pras pessoas e procuro fazer o possível para não ser injusto, indelicado. Tento vibrar positivamente, sabe?
Nunca tive um ato racista contra um negro. Mas já ri de piada racista, já repeti piada racista, até pra amigo negro. Já tive uma namorada negra, amigos. A proporção de negros na minha vida foi mais ou menos como é na vida de todo mundo, como é numa novela da Globo.
Porque comecei a ver um monte de queixa no Twitter de mulher agredida, gay espancado, negro escorraçado. Me deu uma loucura: quero saber como é se sentir minoria, ser vítima de preconceito. Como não posso ser mulher, nem negro, nem gay, pois sou casado com uma mulher e já fui casado com outras, escolhi ser bissexual. Foi um gesto político.
Estou casado com a minha mulher há quase dez anos. E estou bem. Não estou aberto a outra relação. O fato de eu ter tido ou não relações bissexuais não importa. O fato de eu ter falado que era já me colocou essa pecha. Virei bissexual e fim de papo. Apanhei, mas valeu a pena. Foi um teste sociológico, uma pesquisa psicoantropológica.
Olha, eu fiz duas peças que tinha beijo na boca. Mas era beijo técnico... [risos]. Era uma cena absolutamente poética, lindíssima. As mulheres choravam alto.
Fora do palco, não. Mas não foi por preconceito.
Vários! E eles vieram me abraçar, me agradeceram [por dizer que era bissexual]. Recebi muitos e-mails de congratulações.
O Marco Nanini acabou de declarar que é gay... Mas não sei. É uma questão muito de foro íntimo, talvez atrapalhe a carreira. Aliás, será que isso vai acontecer comigo?
Eu não! É a primeira vez que eu penso nisso. Até agora fingi que sou macho, não foi? Vou continuar fingindo. Não tem problema nenhum.
Ele me ligou e eu topei na hora. Achava que já conhecia ele, mas confundia com aquele outro do CQC, o [Danilo] Gentili. Sempre que tinha evento, a Globo colocava eles atrás de uma grade lá longe, uma baita humilhação. Mas eu sempre ia lá falar com os caras. Rafinha foi lá em casa gravar, pegou uma ponte aérea só pra isso. Acho injusta a perseguição que fizeram com ele por causa daquela piada de que mulher feia deveria agradecer por ser estuprada. Estão levando o humor a sério demais.
Não muda nada. Nunca tomei nenhum aditivo desses. Acho que a minha geração está chegando aos 70 muito bem. Tem José Mayer, José Wilker, Paulo Betti, Antonio Fagundes, Tony Ramos.
Em um aniversário meu, que fiz na pousada de um amigo, em Teresópolis (RJ). A Camila era amiga de academia da esposa dele. Conversamos bastante e acabou acontecendo.
Comecei análise quando fiquei grávido do Bernardo [filho caçula], que hoje tem 12 anos. Resolvi fazer porque fazia muito tempo que eu não tinha filho. E a gente [ele e a mãe de Bernardo] não era casado. Nessa época, eu era garanhão. Um jornalista do Globo até me chamava de José “Casanova” de Abreu, porque eu só namorava mulheres bonitas. Tinha muita casa noturna no Rio, todo mundo ia pra rua.
A Mônica Martelli, a Flávia Zillo, a Luisa Thiré. Não são mulheres lindíssimas, mas são tipos incríveis. Mulherões, entendeu? Mulheres de impacto.
Me dou bem com todas. Principalmente com a Nara. A Neusa mora em São Paulo, a gente praticamente não tem contato. Depois que o Rodrigo morreu [em 1992]... Aí que perdemos o vínculo mesmo.
Nenhum. Durante muito tempo frequentei centro espírita, inclusive meu filho ia também. Me seguro nessa.
Ele caiu da janela. Estava chuviscando, e tinha uma persiana. Ele sempre botava o corpo pra fora da janela, era muito grandão, atlético. Aí passou pelo buraco. Não havia possibilidade de suicídio, a gente tinha acabado de conversar. Ele tinha ido no banco, levado o jipe pra consertar, estava preparando o futuro. Foi comer mamão, ligou o rádio e caiu.
Eu estava fazendo Amazônia, na TV Manchete. Me deram 15 dias de férias. Depois, voltei a gravar.
Não sei, bicho. Perguntavam a mesma coisa para o Geraldo Vandré na época, porque ele tinha um Ford Galaxie. Ele respondia: “Não sou proletário. Não vou me fantasiar como tal”. Eu gasto grande parte do meu dinheiro com viagem, comida, bebida. Eu tenho que abrir mão do meu salário da Globo para poder ser de esquerda? Acho isso tão ridículo quanto achar que sou mau ator porque sou de esquerda. Tem jornalista que coloca isso na imprensa. Dizem que sou um ator coadjuvante... Porra, até a Fernanda Montenegro é coadjuvante de vez em quando! Não existe ator coadjuvante. E hoje vou ganhar um prêmio de melhor ator da APCA [Associação Paulista de Críticos de Arte], justamente por um papel coadjuvante. Que tal?
Antonio Tabet, o Kibe Loco
Antonio Pedro Tabet, publicitário por formação, blogueiro famoso quase por acaso e agora mais conhecido como “um dos caras do Porta dos Fundos”, o programa de humor que sacramentou a noção de que, sim, a televisão do futuro (ao menos até onde podemos vislumbrá-lo) é a internet, talvez nem tenha se dado conta: ele é prova de que John Cleese estava certo. Cleese, o britânico com meio século de serviços prestados ao humor de alto nível – é um dos fundadores do Monty Python, grupo surgido em 1969 na TV inglesa e reverenciado por gerações de comediantes –, foi quem disse a frase que abre este texto, proferida em uma das inúmeras vezes em que foi consultado sobre “como ser criativo”. Tabet, um carioca de 38 anos que em 1994 entrou no curso de comunicação da UFRJ disposto a se tornar um publicitário de sucesso, desses que vivem em “escritórios branquinhos cheios de pufes” (a definição é dele), entre idas a Cannes e doses de champanhe, descobriu brincando, matando hora no expediente, que o caminho do sucesso estava longe dos leões de metal distribuídos na Riviera Francesa. Estava na internet. No ano de 2002, funcionário frustrado do departamento de marketing do banco Icatu, Tabet passava as tardes enviando piadas e fotomontagens por e-mail aos colegas da empresa. Advertido por “um babaca do departamento de TI” (a definição também é dele) de que as brincadeiras seriam monitoradas pela empresa, achou por bem parar de usar o correio eletrônico da firma e passou a despejar as gracinhas em um blog, que ganhou o mesmo nome da coluna que produzia no jornal da faculdade: Kibe Loco – Kibe por causa de sua ascendência árabe; Loco por ser o portunhol o idioma oficial da extinta coluna. Nascia uma das páginas mais acessadas da internet brasileira. Em 2005, a audiência era tal que o blog virou ocupação principal, remunerada pelo portal Globo.com, que o hospedava. Passados 11 anos, o Kibe segue como fonte de renda, trazida não só pelo hospedeiro, agora o R7, da Record, mas também pelas marcas que o elegem como vitrine para aparecer. Sociedade alternativa Mesmo quem não costuma digitar www.kibeloco.com.br para ver as blagues postadas diariamente por Tabet (e dois ajudantes de texto e arte) certamente já foi atingido por algum dos conteúdos que, para usar o internetês do Brasil, “bombaram” por causa dele. Dois exemplos: o vídeo de 2004 em que William Bonner imita o estilista Clodovil em um intervalo do Jornal Nacional (visto 4 milhões de vezes) e o clipe de “Dança do quadrado”, produção de baixíssimo orçamento lançada em 2008 que se tornou um dos vídeos virais de maior sucesso do país e rendeu a Tabet um prêmio da MTV. Jorge Bispo Antonio Tabet De olho na verve que deu origem a tais sucessos (e a sátiras como a que colocou a senadora Heloísa Helena numa capa da revista Playboy), Luciano Huck o convidou em 2007 para fazer parte da equipe do Caldeirão do Huck. A parceria terminou em janeiro de 2012, quando Tabet, que vinha de um certo desgaste na Globo (onde tentou emplacar, sem sucesso, projetos paralelos ao Caldeirão), decidiu que era hora de zarpar. A mudança o levou ao retumbante sucesso Porta dos Fundos, que desde agosto de 2012 já lançou quase 90 vídeos em um canal do YouTube e contabilizava no fechamento desta edição 2.622.000 espectadores inscritos e mais de 226 milhões de exibições. O projeto começou com um encontro entre Tabet e Ian SBF, então diretor do Casseta & planeta, no início do ano passado. Como ele, Ian também produzia conteúdo de humor na internet, os vídeos do canal Anões em chamas. Entre chopes e petiscos do bar Diagonal, no Leblon, a dupla combinou de produzir episódios de CSI Nova Iguaçu, versão esculhambada de séries sobre investigação policial. A ideia de fazer vídeos de humor para exibir na web atraiu um amigo de Ian, Fabio Porchat, talento da comédia stand-up que também tinha um pé na Globo. Pouco depois, embarcavam no negócio o ator e roteirista Gregório Duvivier e o publicitário João Vicente de Castro, outro egresso da equipe do Caldeirão. Estava formada a sociedade que nasceu alternativa – mas que hoje está por cima da carne-seca. Toda segunda e quinta-feira, quando são colocados novos episódios no ar, os cliques, likes e compartilhamentos on-line só aumentam. Alegria de classe média Assistidos por milhões de pessoas, prestigiados pelos colegas de profissão, assediados por emissoras de TV, os integrantes do Porta dos Fundos somam hoje quase 30 pessoas – os cinco sócios mais atores, editores e técnicos contratados. O grupo também caiu nas graças de diretores de marketing – ao menos os que entenderam que, em tempos de redes sociais, não adianta tentar abafar críticas ou dar respostas evasivas ao público: as marcas devem entrar no jogo com transparência; melhor ainda se for com bom humor. Foi o que fez a rede de restaurantes Spoleto, alvo de um dos primeiros episódios da trupe. O vídeo que mostra uma consumidora sendo maltratada por um atendente da rede levou a marca a contratar o grupo para criar outro vídeo, este em seu favor. O case fez com que outras marcas aderissem à estratégia de rir de si mesmas: o Porta dos Fundos já produziu trabalhos sob encomenda para Bis Lacta, Fiat e Caixa Econômica. Tabet não fala em valores, nem mesmo o custo dessa estrutura. “Primeiro porque correria o risco de dar um número errado”, diz ele. “Segundo porque nos comprometemos a não falar de grana.” Ele recebeu a Trip no escritório do Kibe Loco, no Jardim Botânico, no Rio. Os quadros na parede revelam um pouco da vida do dono – de uma camisa do Flamengo emoldurada a imagens de reportagens que saíram com ele na imprensa. Tabet teme que a decoração dê sobre ele a falsa impressão de “empresário bem-sucedido se vangloriando de seus feitos”. E trata de explicar que a aparente egolatria é só “alegria de classe média”. "Eu era o cara que se apaixonava. Chorei muito por mulher na escola" Fã de Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, Tutty Vasques – e, claro, Monty Python, ao qual o Porta dos Fundos é corriqueiramente comparado –, Antonio Tabet não se importa com “a onda politicamente correta” que pareceu ameaçar comediantes ultimamente. Para ele, é bom que humoristas se policiem para que, em vez de cair em piadas agressivas, encontrem algo que faça mais gente rir junto. Uma ideia, aliás, também defendida por John Cleese, para quem o grande poder do riso é justamente o de igualar as pessoas, “destruindo qualquer sistema de divisão social”. Vamos do começo: como é a história da sua família? Seu pai já morreu? Do que ele morreu? Arquivo pessoal Com Totoro, do Porta dos Fundos (2012) Como foi o dia em que ele morreu? E como é a relação com a sua mãe? Onde era a casa de vocês? E onde você estudava? Você namorou muito? Era pegador? Você é mais assediado agora que é famoso? Você é casado? Tem filhos? Você é publicitário, certo? Como foi sua trajetória profissional? Como era o trabalho no banco? Foi lá que você começou o Kibe Loco, né? E você continuou no banco? Por quê? Se você tivesse virado um super-redator de agência, indo pra Cannes e tal, acha que estaria feliz? Você tem amigos publicitários? Mas já dava dinheiro? E dá dinheiro hoje? O Kibe ainda vive muito do que as pessoas mandam? Tem uma parte autoral, mas o forte ainda vem dos leitores. Se abrir meu Google você não vai acreditar, tenho tipo 70 mil e-mails não lidos. Um dia o Gregório [Duvivier] viu minha caixa postal e falou: “Brother, achei que a minha vida era um inferno! A sua é muito pior”. “No banco, era todo dia de gravata, logo cedo, no centro. Eu tava morrendo. Então inventei o Kibe Loco” O Kibe Loco já foi acusado de se apropriar de conteúdos alheios. “Kibar” virou sinônimo de copiar. Mas você responde, entra na briga? Você também faz consultoria de internet pra empresas. Como é isso? Jorge Bispo Antonio Tabet E é possível saber que determinada coisa vai pegar? E dá pra prever o que não vai dar certo de jeito nenhum? O que era trash, pauta de sites como o seu, hoje é notícia normal de grandes veículos. Como você vê isso? Ter notícias bizarras virou estratégia para ganhar audiência. Como você foi parar na Globo? No Caldeirão do Huck você era redator? Vocês dois se conheciam da Globo? Como essa turma se juntou? “mostramos primeiro pra Fox, pra Sony. Então botamos na internet. E agora não queremos outra coisa” Vocês tinham uma ideia de negócio, de como isso ia se bancar? Não tem nenhum investidor de fora? Vocês tentaram vender o projeto para a TV? Tem muita emissora atrás de vocês? A Globo? Como você se sente com a celebridade súbita? Seu rosto agora é conhecido. Antes do Porta dos Fundos, já tinha experimentado ser ator? Quando você se assiste, acha bom? Arquivo Pessoal De Super-Homem, em foto para o jornal da faculdade (1998) Você vê? Você gosta de política? Como se definiria nesse campo? E nas eleições pra presidente, o que você fez? O que você acha da discussão sobre politicamente correto e humor? Mas aí toda piada vira um debate. Não é chato? Coisas como A casa dos autistas (esquete do Comédia MTV) ou a piada com Auschwitz, feita por Danilo Gentilli, deveriam ter sido evitadas? Humorista deve ter freios? Criador do Kibe Loco, um dos sites de humor mais acessados da Internet brasileira, e do Porta dos Fundos, a série de programas on-line que virou mania nacional, Antonio Tabet explica a trajetória de publicitário-que-virou-blogueiro-que-virou-ator e entrega: “Ser reconhecido me envaidece”
Meu avô paterno era libanês, mas não conheço muitos detalhes. E a família por parte de mãe é portuguesa. Meus pais nasceram no Rio e viraram médicos, os dois. Tenho dois irmãos mais novos, um é médico e o outro é advogado, Marco Antonio e Fernando Antonio, que era o nome do meu pai também.
Meu pai morreu quando eu tinha 15 anos e foi a pior coisa que aconteceu na minha vida.
Câncer. Meu pai era um médico respeitado, foi diretor do [Hospital] Pedro Ernesto, diretor da Uerj, já tinha sido convidado pra trabalhar em Secretaria de Saúde. E era um cara forte, corpulento, corria na praia todo dia. Ele teve câncer no cérebro, muito difícil de lidar porque tinha dia que ele estava ótimo e tinha dia que ele estava um vegetal. Então, de uma estrutura familiar toda montadinha – pai, mãe, eu, um irmão dois anos mais novo e outro que tinha acabado de nascer –, entramos num caos. Quando meu irmão fez 1 ano meu pai descobriu a doença. Dois anos depois ele morreu. Durante o tratamento, fiquei muito próximo dele, cheguei a dar banho, um processo doloroso. E quando ele morreu foi uma porrada porque eu tinha certeza de que ele ia ficar vivo.
Ligaram no colégio falando pra eu ir pro hospital. Chegando lá um tio me abraçou tão apertado que até me machucou. Quando vi que ele estava chorando, não precisei perguntar nada. E aí eu chorei, chorei, chorei. Quando fui ver meu pai, abracei, mas tive aquela sensação que descrevem, de que a pessoa não está mais ali. Por muito tempo fiquei mal, virei uma pessoa angustiada. Isso só acabou com um sonho em que meu pai aparecia e dizia: “Cara, não sofre. Você aí sofrendo tá me fazendo sofrer aqui”. Eu estava com uns 20 anos e só então aceitei que tinha que seguir com a vida.
Foi muito boa até a morte do meu pai. Depois, ficou um pouco estremecida. Acho que minha mãe tinha muito medo de viver como a minha avó, que morreu viúva, morando num apartamento com a irmã em Copacabana. Então quando meu pai morreu ela deu uma surtada. Trabalhava muito e manteve nosso padrão de vida, mas nossa relação pessoal se desgastou. Ela casou de novo, depois separou. Hoje é tranquilo, relação normal, de mãe e filho.
Botafogo. Morávamos num prédio do caralho, cheio de criança, play gigante, guerra com o prédio da frente, amigos, futebol, campeonatos de botão. Minhas memórias de infância são as melhores do mundo. Com 11 anos andava de ônibus pra onde quisesse, ia à praia.
No Santo Inácio, até a doença do meu pai. Aí repeti a oitava série e mudei pro Santa Rosa de Lima. Saí de um colégio de padre pra um colégio de freira. Foi a melhor coisa, conheci outros tipos de pessoas, amigos que tenho até hoje.
Nada, eu era o cara que me apaixonava, levava cartãozinho, caixa de bombons. Minha primeira vez foi no meu quarto, na minha casa, com a minha primeira namorada, que era virgem também. E foi espetacular. Enfim, chorei muito por mulher na escola. Depois de velho isso passou.
Não, acho que não. Primeiro que eu não sou um galã, né? Não sou o bonitinho de 26 anos, tenho 38! E até pareço mais velho. A figura da “maria comédia” eu já vi por aí. Tem umas até conhecidas, você chega num lugar e o pessoal já fala: “Olha lá a fulana, querendo descobrir qual o pau mais engraçado do Brasil”. Mas eu não entro nessa. E, como falei, tem muitos outros caras na minha frente. Muito Danilo Gentilli pra elas se interessarem [risos].
Dessa parte da vida pessoal, família, não falo e nunca vou falar. Prefiro ser Antonio Fagundes nessas horas.
Fiz publicidade na UFRJ, uma merda de curso, mas fui até o final. Ainda na faculdade fiz estágio na Rádio Globo, indo pra rua ver cadáver no jornalismo, cobrindo vestiário de Bangu e América em Moça Bonita... De lá fui para uma agência de publicidade pequena, depois consegui estágio na programação do Multishow, maravilhoso, porque me obrigou a assistir a todos os episódios de Trapalhões, I love Lucy, Kids in the hall... esse, aliás, mudou minha vida, virou referência. Depois fui para a programação do GNT. Mas aí recebi o convite para ir trabalhar no marketing de um banco de investimentos, o Icatu, com um salário bem melhor.
A ideia deles era criar uma equipe de marketing jovem pra renovar a linguagem dos produtos do banco – capitalização, seguro etc. Só que não funcionou. A galera era legal, mas é aquela coisa: você faz um trabalho pra renovar a linguagem, vem alguém que manda mais e não quer mudança nenhuma.
O negócio começou a ficar maçante. Eu todo dia de terno e gravata, logo cedo, no centro da cidade... eu tava morrendo. Então inventei o Kibe Loco. Fazia as fotomontagens zoando o time de um, o time de outro. Comecei por e-mail, depois fiz o blog e mandei pra sete caras, que replicaram entre conhecidos. Um dia, um deles me falou que a tia dele adorava o site. Estranhei: “Mas você mandou pra tua tia?”. Ele: “Não, ela viu sozinha”. Só que ela era professora no Espírito Santo. Pensei: fodeu. Achei uma ferramenta de monitoramento de audiência e descobri que o Kibe Loco tinha 12 mil acessos por dia. Passei a me dedicar mais, fingi até que existia uma equipe. Os textos diziam sempre “nós do Kibe Loco”.
Não, acabei saindo do banco e fui pra outra agência, que me permitia continuar tocando o site. Foi ótimo, aprendi coisa, fiz amigos, mas era mercadão de publicidade. E eu não tenho paciência com publicidade.
É frustração, é gente com ego do tamanho do mundo. Eu estudei pra ser publicitário, pra estar numa agência branquinha, bonitinha, com pufes coloridos e Macintoshs e prêmios em Cannes. Eu queria isso! Mas depois que passei por rádio, agência e caí num departamento de marketing... puta que pariu, que merda.
Eu ia odiar! O-di-ar. Na faculdade meu sonho era esse, mas eu não conhecia, eu tava vendo de longe. Tem uma piada ótima: sabe por que publicitário não tem campainha em casa? Pro cara chegar e bater palma! É exatamente isso. O tempo todo, um querendo mais que o outro, um lambendo a caceta do outro, ou a própria caceta... não dá, puta saco.
Vários, e falo o tempo todo disso com eles. Eles mesmos se sacaneiam também. Enfim, a minha carreira estava sendo um fracasso. Mas o legal é que desse fracasso eu consegui quase sem querer inventar o que me tirou de lá. Acabei largando tudo pra viver só do Kibe Loco.
Eu tinha recebido umas propostas de ir pra portal, tipo UOL, iG, BRTurbo. Em 2005 as propostas para hospedar o site eram na faixa de R$ 3.500 por mês. Dava pra eu viver. Depois passei a ganhar mais, é minha fonte de renda até hoje. Ganho para estar hospedado e com publicidade. Nada que vá me deixar milionário, mas permite manter um padrão de vida.
Isso é coisa de hater da internet. O cara fala mal porque ele queria ser você. A internet projetou muita gente que é editor de si mesmo. Você faz um Twitter, um blog e aí rola uma egotrip louca. O Twitter foi letal. A pessoa ganha 5 mil seguidores e acha que realmente está com um microfone falando para 5 mil pessoas. E não é nada disso. Sobre autoria, é assim: o cara põe um vídeo no YouTube; outro vê e joga num blog. E aí? Ninguém mais pode publicar? Você acha que porque publicou o vídeo de alguém ele é seu? Ah, vai tomar no cu, né?
Não, porque é tudo o que esses caras querem. Se cem caras estão falando mal de mim na internet, quantos estão falando bem? Sério, eu não dou atenção. O Twitter é a caixa de gordura da humanidade, o chorume. Ainda bem que está perdendo força. Você vê na audiência, está caindo vertiginosamente.
Há uns seis, sete anos começaram a aparecer muitas agências de marketing digital, viral, essas coisas. Só que é um mercado muito mais oportunista do que especialista. O que acontecia: uma empresa contratava uma agência de publicidade padrão, essa agência contratava uma agência de mídia digital e essa mídia me ligava. Pra pôr conteúdo no Kibe Loco, ou querendo dica pra fazer uma nova “Dança do quadrado”, ou saber se tal coisa tinha cara de viral...
Não dá pra prever 100%, mas tem artimanhas que podem alavancar um conteúdo. Negociar com uma fanpage gigantesca pra que publiquem teu vídeo, negociar com um tuiteiro ou outro, um blog ou outro, isso dá um gás. Mas se ele vai virar um “Para nossa alegria” você não consegue prever. O que dá pra falar é “com isso aqui você bate a tua meta” – tipo chegar em 100 mil acessos, que o cliente já vai amar. Isso não é tão complicado.
Dá, e normalmente você vê culpa do profissional de marketing na parada: o cara que, não satisfeito em ter a caneca com a marca dele aparecendo no vídeo, quer que o cara fale [pega uma caneca na mesa]: “Nossa, mas que vontade de tomar essa Duff”. Não é natural! As pessoas veem isso na TV, na internet elas não querem. Querem autenticidade.
É uma coisa curiosa. Se você pegar os veículos tradicionais da internet brasileira hoje, UOL, iG, R7, Globo.com, você vai ver que metade do que está lá na home é lixo. “Mulher Melancia canta no chuveiro. Veja o vídeo.” Isso é conteúdo pro Kibe Loco! Mas tá lá no portal. Acho que o Kibe Loco, por ter conseguido audiência com coisas trash, foi muito responsável por isso. Não sei se me orgulho ou me envergonho disso [risos].
Sim, eles estão atrás de números, como todo mundo. Mas no meu caso não foi estratégia. Não comecei pensando “agora vou fazer um negócio que vai pautar todo mundo”. Foi válvula de escape, eu tava num trabalho chato pra caralho e precisava desopilar. Se existisse YouTube naquela época talvez eu não tivesse feito nada: quando estivesse entediado, botaria o fone de ouvido e ficaria vendo bobagem. Fiz o Kibe Loco porque não tinha muito o que fazer. Eu amava as colunas do Tutty Vasquez, do Verissimo, do Millôr. Eu podia brincar de ser esses caras.
Um amigo meu conhecia o Luciano Huck. Eu tinha a ideia de lançar um candidato fictício nas eleições do Rio, então pedi pra ele perguntar se o Luciano não apoiaria. Ele nos colocou em contato e o Luciano me falou: “Esquece essa história de candidato e vem trabalhar comigo”. Fiquei em dúvida. A imagem que eu tinha dele era a de um mauricinho paulista, influente, que conhece umas gostosas. Mas conversei com ele e foi surpreendente. Encontrei um cara inteligente, esperto, generoso. Ele não é meu brother, de tomar chope, mas é um cara que se eu ligo tá disponível, dá ótimos conselhos. Vai ser sempre um parceiro.
Sim, mas redator no Caldeirão não era só entregar o texto. Você escreve, viaja pra acompanhar a gravação, volta pra ilha de edição, é muita coisa. Depois de uns três anos e pouco tive vontade de mudar de ares. O Bruno Mazzeo me chamou pra fazer o Junto e misturado, mas não fui liberado; depois me chamaram pra fazer um quadro do Fantástico e não me liberaram de novo. Um dia falei: quero fazer outras coisas. Fiz uma oficina de humor, na Globo mesmo, criando uma série que nunca foi ao ar. Depois apareceu a hipótese de uma série do Kibe Loco, também não rolou. Acabei saindo em janeiro de 2012, depois de seis anos. E em fevereiro já conversei com o Ian [SBF, hoje sócio e diretor dos vídeos do Porta dos Fundos] pra fazermos coisas juntos.
Eu e o Ian, a gente trocava umas ideias pela internet, um conhecia o trabalho do outro e sempre falava “vamos conversar”. Um dia a gente se reencontrou e combinou de fazer o CSI Nova Iguaçu. O [Fabio] Porchat já era sócio do Ian numa produtora, contamos pra ele que a ideia era fazer um projeto assim ou assado e ele falou: “Tô dentro”. Foi a mesma coisa com o Gregório [Duvivier]. O último foi o João [Vicente de Castro], que eu conhecia de passagem. Quando eu tava saindo do Caldeirão ele tava entrando. Ele veio pra ser o cara dos contatos. É afilhado do Caetano, estava casado com a Cleo Pires, poderia conseguir participações especiais. E assim a gente se juntou.
Não. A gente só sabia que ia ser bom. Só de falar das ideias soltas a gente ria de se esborrachar. Então, mesmo que ninguém gostasse, a gente ia se divertir pra caralho. Na pior das hipóteses, a gente tinha o Kibe Loco. A gente calculava: se a gente coloca um vídeo por semana no Kibe Loco e ele dá um tanto de views, a gente ganha tanto de Adsense no YouTube [o serviço de publicidade do Google gera lucro baseado na quantidade de cliques ou visualizações]. Como a equipe era mínima, nas nossas contas ainda sobraria grana. Claro, todo mundo tinha seu ganha-pão em outras coisas. Mas logo as expectativas foram superadas. No nosso primeiro vídeo, um programa de 15 minutos, a gente achava que se tivesse 70 mil acessos seria um sucesso. Teve muito mais que isso [hoje, só esse primeiro programa contabiliza quase 3 milhões de views].
Existe um boato de que o Luciano Huck é dono do canal. O Luciano nunca botou um real no Porta dos Fundos. Nem ele nem ninguém. Só a gente botou, cara.
Mostramos o primeiro pra Fox, pra Sony. O cara da Sony falou que não tinha grana... E a Fox tinha acabado de fechar com o Rafinha [Bastos]. Então botamos na internet. E agora não queremos outra coisa.
Muita. O tempo todo. O louco é que a gente estava num grande veículo, e estava todo mundo meio parado. A gente teve que sair de lá, inventar outra coisa pro veículo vir dizer: “Nossa, vocês existiam!”.
É, a Globo nos procurou. E também a Rede TV, e canais por assinatura. Só que a gente tá bem. A gente não fecha porta pra TV, mas só iria se não atrapalhasse o que tá acontecendo. Censurando não dá.
É muito louco. É insano. No mês passado eu estava no Lollapalooza e me senti a Xuxa. Nego gritava: “Bola azul!”; “Mario Alberto, eu quero foder!”. É estranho, você entra num restaurante e o cara ao lado sabe quem é você. Eu já era feliz de ter conseguido, com o Kibe Loco, criar um negócio a partir do nada, uma oportunidade de fazer algum dinheiro e conhecer gente. Mas o reconhecimento do Porta dos Fundos é diferente, é muito bom. Me envaidece sim. E entre os humoristas vocês também viraram “os caras”, né? Acho que é porque a gente tá fazendo o que todo mundo queria fazer. Todos estávamos trabalhando na TV, que encanta, mas que também pode virar um exercício de frustração. Eu saí da publicidade porque entendi que tudo o que eu criava em algum momento ia passar pelo crivo de gente que não sabia o que tava falando. O cara que diz sim ou não às vezes é o filho do dono da empresa. Então não é impossível você ouvir: “Ah, meu sobrinho não gostou desse vermelho, vamos trocar por azul?”. Saí da publicidade muito por causa disso. Na TV, gostava da adrenalina e tal, mas também me senti tolhido.
Fiz curso de teatro, mas era mais pra pegar as gatinhas. Curioso é que estão me elogiando, acredita?
Eu acho que não comprometo não! E boa parte do que eu faço no Porta são roteiros que eu escrevi. Então sei exatamente o tom, é mais fácil. Pô, estou sendo chamado para fazer séries agora, acredita? Fiz uma participação em Adorável psicose, do Multishow, e me chamaram para uma da Globo, uma da Fox e uma do GNT. Posso trabalhar como ator, mas não penso nisso. Gosto de escrever e atuar no Porta dos Fundos porque é divertido. Mas, se alguém convida, significa que o que faço como ator não é uma merda! Imagina se me chamam pra uma novela da Globo? Ia ser muito engraçado.
Quase nada. Futebol, UFC, que adoro. Aqui no escritório a televisão fica o dia inteiro no Discovery Channel ou no Animal Planet, porque o nosso roteirista adora. O roteiro do Quem manda, pensei vendo essa porra. Vi o macaco e pensei: “Como esse filho da puta tem a bola azul?”. E tem umas guerras, o que tem a bola mais azul manda, só ele come as fêmeas... Aí pensei na situação do pai e da garota.
Humor é oposição, né? Os petistas me odeiam, acham que sou tucano. Não sou. Não tenho inclinação política, só odeio ladrão, filho da puta. Nas últimas eleições [para prefeito] eu votei no [Marcelo] Freixo, e continuo do lado dele.
Votei na Marina Silva. No segundo turno, não lembro. Devo ter votado no Serra ou anulado. O Lula não dá, essa história do mensalão foi foda.
Eu acho ótimo o politicamente correto, é importante um controle. Na minha juventude cansei de ver garotos fazendo piadas com o único negro da sala e acho ótimo que não façam mais ou se sintam constrangidos em fazer. É uma evolução natural das coisas.
O problema não é o politicamente correto, mas a patrulha. Essa indústria do pointing finger, o cara que fica “isso é racismo!”, por qualquer razão. Os xiitas, de todos os lados, são muito piores do que os caras que supostamente disseminam preconceito. Quem vê preconceito em tudo, até onde não há, dissemina ódio. Acende o fósforo e joga no palheiro.
Nesses casos, e na polêmica com o Rafinha [afastado do CQC depois de uma piada com Wanessa Camargo], os três têm direito de fazer o que quiserem. E a Wanessa tem direito de processar, a associação dos autistas idem, a comunidade judaica idem. Mas tenho pra mim que quando a coisa é bem-feita, quando é engraçado, até a parte atingida releva. Então a discussão é outra: essas piadas eram engraçadas? Casa dos autistas foi uma coisa maravilhosa? Não foi, eles mesmos falam. O que vai salvar o humor da polêmica é ele ser engraçado, ser bom. Se for ofensivo, pode até ter alguém que ria, mas muita gente não vai rir. E o que a gente busca é isto: quanto mais gente rindo junto, melhor.
William Ury
Kiko Ferrite William Ury era um menino de 9 anos de idade quando a Guerra Fria, instaurada entre o governo do seu país, os Estados Unidos, e o da extinta União Soviética, chegava a um de seus capítulos mais tensos. Era 1962 e a corrida armamentista entre as duas superpotências de então tinha atingido proporções tão delirantes que ambos os lados tinham o poder de destruir o planeta inteiro com um ataque nuclear. Naquele ano, o episódio que ficou conhecido como a crise dos mísseis em Cuba – país que abrigava o arsenal soviético estrategicamente apontado para o território inimigo – colocou no imaginário coletivo o temor de que, em um simples apertar de botão, a humanidade poderia chegar ao fim. Ury estudava na Suíça nessa época, mas o fantasma da guerra nuclear que assombrou sua geração sempre esteve vivo em sua cabeça. Mais do que isso, foi uma das razões que o levaram a se dedicar à área em que hoje ele é um dos nomes mais proeminentes: a mediação de conflitos. Antropólogo formado pela Universidade de Yale e pós-graduado em Harvard – da qual é diretor do Global Negociation Project –, ele passou os últimos 35 anos envolvido em negociações tão encrencadas quanto o conflito entre a Rússia e a Chechênia, a guerra civil que desintegrou a ex-Iugoslávia, o apartheid na África do Sul, a crise entre o presidente venezuelano Hugo Chávez e a oposição que tentou lhe tomar o poder, e muitas outras. Fora da política internacional, Ury também ganhou prestígio ao mediar negociações relacionadas ao mundo dos negócios, especialmente de empresas familiares ou que passaram por fusões, situações invariavelmente cobertas de conflitos. Por conta de experiências tão diversas, não é incomum que lhe perguntem quais as negociações mais difíceis e dolorosa: as que acontecem entre partes que não se conhecem (como países ou corporações com interesses divergentes) ou as que se dão entre pessoas que são próximas (como irmãos discutindo o futuro de um negócio criado pelo pai). Ele responde sem hesitar: é muito mais complicado resolver as questões que envolvem pessoas que cresceram juntas ou que têm o amor e a amizade como componentes do relacionamento. "O Brasil tem essa habilidade de dissolver limites. Há um talento para convivência, algo que o munto inteiro precisa aprender" Nascido em Chicago, criado em San Francisco, estudante por muitos anos na região de Boston e com andanças pelos cantos mais diversos do mundo – incluindo aí os tempos de escola suíça e suas vivências como antropólogo com nativos guerreiros da Nova Guiné, com o povo Semai, na Malásia, entre outros –, Ury cumpria sua agenda de cidadão global quando fez a mais recente passagem por São Paulo, no início de maio, para apresentar a palestra “Como negociar com eficiência com os membros da família”. Vinha do Chile, onde também ministrou a palestra, e seguiu para a Colômbia, onde está envolvido atualmente em tentativas de acordos relacionadas às Farc, as forças revolucionárias que aterrorizam aquele país há décadas. As incontáveis viagens fazem com que ele valorize ainda mais o porto seguro – a casa em meio às montanhas da cidade de Boulder, no Colorado, onde vive com a mulher, uma brasileira, e três filhos. Outro ponto do globo pelo qual passa frequentemente é o Oriente Médio, região onde está um dos conflitos que especialistas (e leigos) do mundo todo consideram insolúvel. Para ele, não é. Na opinião de Ury, também parecia impensável logo depois da Segunda Guerra Mundial que um dia pudesse existir algo como a União Europeia, em que estados como França e Alemanha, inimigos históricos, se tornaram aliados. Ou que um terrorista do IRA, o Exército Republicano Irlandês, pudesse entrar em harmonia com os líderes protestantes que costumava atacar literalmente com ferro e fogo – o que, de fato, aconteceu há poucos anos. Para Ury, há esperança de paz na Palestina e um dos caminhos é uma aposta na integração cultural dos povos daquela região. Foi com essa inspiração que ele criou, em 2006, o Caminho de Abraão, espécie de peregrinação que passa por diversos países em conflito e que já foi percorrido por 4 mil turistas com disposição não só para conhecer a história do berço das três maiores religiões monoteístas do mundo – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo –, mas também para espalhar um ideal de pacificação e união entre povos hoje tidos como inimigos. Apaixonado pelo Brasil, lugar que, segundo ele, tem muito a ensinar ao mundo sobre como lidar com a diversidade, o autor de best-sellers como Como chegar ao sim, Supere o não e o recém-lançado em português O poder do não positivo, que somam milhões de exemplares vendidos mundo afora, completa 60 anos em setembro. Ele recebeu a equipe da Trip em uma noite de domingo e falou não apenas das missões internacionais das quais participou, tão variadas quanto espinhosas, mas também da arena delicada e profunda em que são travadas batalhas diárias, em qualquer lugar do mundo onde houver mais de um ser humano convivendo: a família – e, mais especificamente, os relacionamentos afetivos. William Ury se tornou especialista nesse campo porque uma mesma pergunta o guia desde sempre, esteja ele em um gabinete de governo, em uma sala entre conselheiros de uma empresa ou discutindo com a filha adolescente: como aprender a viver junto? "Tornou-se cada vez mais fácil ser destrutivo" Quando você percebeu que tinha habilidade como negociador na vida? Já me fiz essa pergunta muitas vezes na vida [risos]. Há duas coisas que, acho, me predispuseram a isso: uma é que quando eu tinha 5 ou 6 anos nos mudamos para a Suíça, onde passei anos. E, frequentando uma escola internacional, meus primeiros companheiros eram gente do Líbano, Irã... havia estudantes de tantas partes do mundo que aprendi a lidar com a diversidade. A segunda coisa é que nas brigas em casa, quando meus pais discutiam, eu sempre assumia um papel de mediador. Era algo natural pra você. Sim, acho que desde o começo eu já fazia a pergunta que se tornou minha paixão: como aprender a viver junto? Na adolescência, em plena Guerra Fria, vivíamos em alerta nos Estados Unidos. Estávamos preparados para, a qualquer momento louco, alguém acordar em Moscou e simplesmente dizer “este é o dia”, e então não haveria futuro. Isso nunca fez o menor sentido pra mim. Por que destruir o mundo? Foi mais uma coisa que me motivou a ir por esse caminho. Por que antropologia? Em parte porque eu queria entender a natureza humana, a evolução da humanidade, e este momento particular na evolução, em que o gênio humano e as tecnologias criadas por ele podem ser usadas para destruição em massa. Tornou-se cada vez mais fácil ser destrutivo. A escolha é entre isto: a destruição e a nossa habilidade para nos desenvolvermos psicologicamente, emocionalmente, socialmente, espiritualmente. O Brasil tem sido descrito como bem preparado para lidar com a diversidade. Qual sua impressão sobre a personalidade do país? Toda cultura tem seus pontos fortes, e um dos mais relevantes no Brasil é essa habilidade de dissolver limites. O termo “brasilidade” define essa habilidade de integrar de maneira natural, que flui. Tudo flui no Brasil, a música, até o jeito de as pessoas dirigirem ou jogarem futebol, em tudo há esse “dar um jeito”. Aqui há integração entre árabes e judeus. Há um talento para a convivência, algo que o mundo inteiro precisa aprender agora. "Sim, a guerra faz parte da nossa natureza, mas tão potente quanto ela é a cooperação" Você não percebe essas características em outros lugares? Há lugares semelhantes, mas não como o Brasil. Você até sente essa mistura em Manhattan,... mas o Brasil tem uma ligação com o coração, vejo aqui características mais femininas, receptividade, aceitação, sensualidade. Por isso o mundo todo adora os brasileiros. Um americano no Oriente Médio não desperta nenhuma reação calorosa, mas se a pessoa diz que é do Brasil há uma festa. Ouço da minha filha de 7 anos perguntas como “o que é guerra?”, “por que as pessoas brigam?”. Difíceis de responder, não? Sim, eu faço as mesmas perguntas! Vi de perto muitos lugares em guerra e em todos eles me perguntei: por que as pessoas brigam? A resposta que arrisco é que elas brigam porque estão sofrendo. Quando há dor, geralmente associada a humilhação, a um sentimento de exclusão, elas se defendem. Quase todas as pessoas com quem você conversar numa disputa dirão que não estão atacando: elas dizem que estão se defendendo. Mesmo se estão atacando. Todo mundo tem essa construção interna de que tem a razão, de que está certo. Quando um indivíduo entra numa briga, geralmente já criou uma história na cabeça. Quando eu trabalhava no conflito entre Estados Unidos e União Soviética, sempre ouvia: “Vamos brigar para sempre, é da natureza humana”. Mas, mergulhando na antropologia da guerra, passando algum tempo com sociedades muito simples, como os bosquímanos na África do Sul, os Semai na Malásia ou os guerreiros da Nova Guiné, descobri que, sim, a guerra faz parte da nossa natureza, mas tão potente quanto ela é a cooperação. Não somos guiados por genes que nos levam a inevitáveis disputas. Os suecos têm origem viking e são criaturas pacíficas. As guerras que já aconteceram entre franceses e alemães não impediram que hoje eles sejam aliados. A natureza humana é maleável. Gostaria que você falasse sobre dinheiro, a energia em torno dessa ideia. As pessoas querem sempre mais, parecem nunca estar satisfeitas. Em negociações, muito frequentemente as pessoas estão brigando por dinheiro. E minha pergunta é: dinheiro para quê? Você não leva dinheiro com você quando a vida acabar, então qual o objetivo de querer mais e mais? Tenho visto muitas pessoas com grandes fortunas descobrindo que dividir o que têm traz mais resultados. Tenho um amigo em Nova York que era um bem-sucedido empresário da noite, com muito dinheiro, namorando as mais belas modelos, e durante um Natal em Punta del Este – grandes casas, aviões particulares – ele se sentiu desesperadamente infeliz. Foi trabalhar como fotógrafo voluntário num navio que provia serviços médicos na costa da Libéria. Acabou levantando fundos para construção de poços na África. O que ele diz é que se sentiu tão mais realizado... O dinheiro, muitas vezes, é uma ilusão. Você está no Brasil para uma palestra sobre conflitos em empresas familiares. Conflitos em família são os mais difíceis que existem? Muitas vezes me perguntam o que é mais desafiador: conflitos em que as partes se conhecem ou entre estranhos? Respondo que a mais difícil negociação é entre pessoas que são próximas. Quando você soma as dinâmicas de um negócio, uma empresa, às dinâmicas internas de uma família, as questões do negócio – quem deve ser promovido, quem será o CEO etc. – se misturam a sentimentos do tipo “você sempre foi o preferido da mamãe”. É extremamente difícil mediar negócios em família. E, se você olhar para a política internacional, as guerras mais comuns hoje não são entre estados-nações: são conflitos internos. O adversário está dentro de casa. Exatamente. Depois de 35 anos trabalhando nesse campo, vejo que a maior barreira para o sucesso de uma negociação não é o outro – “como é difícil tal pessoa, tal chefe, tal governante”. A grande barreira somos nós mesmos, e isso está ligado à tendência humana à reação. Só enxergamos a necessidade de brigar pelas coisas. Qual sua experiência com conflitos entre casais? Quais as diferenças de sentimentos numa disputa entre um casal e uma negociação com adversários externos? Quando lidamos com uma situação de negócios, as bases são dinheiro, poder, prestígio, mas entre um casal a conversa tende a tocar em dores profundas, como a ideia de rejeição. Quanto mais você conhece aquela pessoa, quanto mais investiu naquele relacionamento, mais vulnerável fica à perda. Seu senso de identidade mudou: você é o casal. Vocês formaram família, vivem juntos, sua identidade está atrelada ao outro. As disputas nos negócios estão frequentemente relacionadas a uma diferença de interesses, mas a identidade é a camada mais profunda de um indivíduo, então a dor é muito maior quando isso está em discussão. Um importante psicanalista brasileiro diz que homens e mulheres falam idiomas muito diferentes. Ele usa exemplos engraçados: quando um homem diz “que tal você pegar um táxi?”, querendo ser prático, a mulher pode entender como “eu rejeito você com toda a minha força”. O que você sabe sobre essas duas línguas tão diferentes? Há muito mal-entendido porque em geral as pessoas supõem que estão sendo claras, mas em comunicação nem sempre isso acontece: a outra pessoa pode não entender nada do que estamos falando. Para mim, a maior habilidade em negociação, ou melhor, na vida, é aprender a ouvir. Em geral achamos que estamos ouvindo, mas não estamos. Quando eu fiz parte de um grupo de pesquisadores reunidos para entender a crise dos mísseis em Cuba, que nos deixou muito perto de uma guerra nuclear, ficou claro que nenhum dos lados, russos e americanos, tinha ideia do que o outro estava dizendo. É a mesma coisa nos relacionamentos entre homens e mulheres. E quem tem mais habilidade de ouvir, homens ou mulheres? Eu diria que em geral as mulheres tendem a ser melhores ouvintes e têm mais das características necessárias ao modelo mais moderno de gestão, em que ouvir e colaborar têm mais espaço do que a competição no estilo “macho”. Mas claro que ambos podem aprender a ouvir melhor. Acho que deveria haver cursos sobre isso nas escolas. Da mesma forma que aprendem geografia, as crianças deveriam ter aulas sobre ouvir. Porque não é exatamente fácil. "É positivo para a paz que haja mais mulheres no poder" O fato de haver mais mulheres no poder, negociando, muda seu trabalho? Está mudando. O mundo esteve em desequilíbrio por muito tempo, no que se refere a homens e mulheres, mas estamos na era em que as coisas estão se reequilibrando. Não quero dizer que ter mulheres negociando é por si o que torna tudo mais fácil – Margaret Thatcher foi uma das pessoas mais difíceis do mundo –, mas é uma tendência positiva, inclusive para a paz no mundo, que haja mais mulheres no poder. No ano passado a Trip teve a chance de juntar o empresário Abílio Diniz e o lama Michel Rinpoche. De um lado, um homem muito rico de 76 anos, um sujeito forte, em meio a um enorme conflito nos negócios; do outro, um brasileiro de 33 anos que se tornou lama. E o lama, em certo momento, veio com esta definição: na maioria das vezes, para ganhar você precisa perder antes. Faz sentido, ainda que pareça paradoxal. Falando de mulheres e homens: quem é o vencedor em um casamento? É uma pergunta que não faz sentido de verdade, certo? Nos negócios, idem: quem está ganhando, você ou o cliente? Não é essa a pergunta. Se você for flexível, aprender a ouvir e ceder, vai ter melhores resultados. Há estudos sobre isto: pessoas que cedem mais ganham mais. Há a ideia de que é mais forte quem impõe e que só os fracos negociam. Mas uma nova lógica está mudando essa mentalidade. Você vê o mundo progredindo nesse sentido ou estamos estagnados? Pode haver momentos de estagnação, mas é nesses momentos que somos obrigados a avaliar se algo não funciona, e vamos atrás de algo melhor. Estamos sendo forçados a superar o modelo em que as decisões ficam com quem está no topo e o resto das pessoas simplesmente obedece. As decisões hoje não são mais de uma figura que detém o conhecimento e o poder. Para mim, a revolução que precisa acontecer é a “revolução do nós”, em substituição à sociedade do eu, em que as necessidades individuais – o que eu preciso, o que eu desejo comprar etc. – se sobrepõem ao resto do mundo. É a hora de refletir: é possível um mundo em que todo ser humano tenha dignidade? Para os que veem nisso uma utopia, eu respondo como antropólogo: somos macacos que viviam em árvores e sobrevivemos ao longo do tempo aprendendo a nos comunicar, a cooperar. Por que não poderíamos aprender isso, a viver junto? Como tudo isso se manifesta na sua vida pessoal? Você nunca briga? Bom, eu tenho uma filha de 15 anos que tem certeza de que me tem na palma da mão! E provavelmente é isso mesmo [risos]. Muitas vezes desisto de qualquer negociação e faço o que ela quer. Mas em geral tudo o que aprendi me ajuda na vida. Sempre aplico o que aprendi a cada negociação em situações diversas. Não estou dizendo que minha vida seja perfeita nesse aspecto, mas estou aberto a aprender. Alguma vez já se envolveu em uma briga física? Sim... provavelmente na escola. Na Suíça estudei em colégio para meninos, então era preciso lutar pela sobrevivência. Mas faz muito tempo. Uma coisa que se aprende é a observar a si mesmo. A metáfora que gosto de usar sobre negociações é “imagine que você se afasta e vai para uma sacada, um lugar de calma, onde você assiste à situação de outra perspectiva”. É importante desenvolver essa capacidade de recuar e se perguntar: o que é realmente importante aqui? Meu ego? Que o meu jeito prevaleça? Ou resolver o conflito? Quando a coisa esquenta numa conversa você sempre vai para essa sacada? Um exemplo: um tempo atrás estive na Venezuela atuando como a terceira parte no conflito entre Hugo Chávez e a oposição. Minha primeira conversa com ele estava agendada para as nove da noite, na sede do governo. Esperei 1, 2, 3 horas, até que à meia-noite um assessor apareceu e disse: “O presidente está pronto para vê-lo”. Eu esperava encontrá-lo sozinho, mas o ministério todo estava na sala. Ele perguntou qual era minha impressão da situação e respondi: “Senhor presidente, conversei com alguns de seus ministros e com líderes da oposição e me parece que estão fazendo progressos”. Ele respondeu: “O que quer dizer com progressos?”, e continuou, aos berros, a apontar como eu era ingênuo, não sabia nada etc. Quando me vi ali, acuado, vendo todo o trabalho de negociação indo para o ralo, lembrei do conselho de um amigo para situações difíceis: beliscar a palma da mão, que traz uma dor momentânea e o mantém alerta. Fiz isso, me pus na sacada imaginária e pensei: vai adiantar eu discustir? Como acabou o encontro? Eu me mantive em silêncio enquanto ele falou por 30 minutos. Como eu não reagia, apenas assistia a ele, em silêncio, ele foi se desarmando, mudando o tom, até terminar a fala e perguntar: “E então? O que eu deveria fazer?”. Ali sua cabeça estava mais aberta, menos reativa, e respondi: “Senhor presidente, acho que toda a Venezuela precisa ir para a sacada”. Era dezembro e até as festividades do Natal estavam suspensas por causa da tensão. Sugeri uma trégua, um período de duas semanas em que os ânimos se acalmassem. Ele gostou, a conversa se desenrolou em um clima completamente diferente daquele início desfavorável. Depois de tantas negociações importantes, que trabalhos você aceita hoje? Tenho me dedicado muito às questões do Oriente Médio, tido como um conflito impossível de solucionar. Para mim, não é. É difícil, mas não impossível. Ali, da mesma forma que falamos sobre casamentos, é imprescindível lidar com a noção de identidade. Pesquisando isso acabei chegando à história de Abraão, personagem bíblico que de alguma maneira inspirou as religiões formadas naquela região. A jornada dele e de sua família é a origem compartilhada por bilhões de pessoas unidas em torno do cristianismo, do islamismo e do judaísmo. Na pesquisa sobre isso tive a ideia de uma caminhada. Juntar uma experiência como a do Caminho de Santigo de Compostela, que faz enorme sucesso, com esse aprendizado. Foi assim que criei, há sete anos, o Caminho de Abraão. Como está esse projeto? Já tivemos quase 4 mil pessoas fazendo o caminho, uma jornada que requer enorme diplomacia. Quando consegui apoio de investidores para refazer a viagem original de Abraão pela primeira vez, muitos nos diziam que seria impossível. Mas juntamos 25 pessoas, incluindo brasileiros como o rabino Nilton Bonder, e representantes de diferentes crenças. Trabalhamos com comitês nos diferentes países – Turquia, Síria, Jordânia, Israel – e em cada lugar que passamos explicamos o significado daquele caminho. Claro, é um percurso bem maior que o Caminho de Santiago, há uma logística. Mas esse trajeto é a melhor metáfora para o que buscamos: inclusão, compreensão, tolerância, união. "É importante a capacidade de se perguntar: o que é importante aqui? Meu ego? Ou resolver o conflito?" O Tibete é um caso interessante: depois de ter a terra invadida, templos destruídos, crimes hediondos e sem fim, eles falaram de paz, amor. Reações pacíficas como essa são muito raras, não? São exceções. Já tive a chance de estar com o dalai-lama e, quando ele fala da dor em seu coração, em seu povo, não demonstra animosidade em relação à China ou a qualquer agressor. É uma grande demonstração de poder. Há outros exemplos, como Gandhi, Nelson Mandela. E Martin Luther King, que representa a maior mudança de paradigmas em meu país, com o movimento por direitos civis. Com o discurso de paz, ele mudou uma sociedade inteira. As religiões têm essas bases, amor, solidariedade. Mas, com o tempo, poder e dinheiro dominam tudo. O que acontece? As pessoas esquecem a essência dos próprios profetas fundadores de cada religião. Buda, Cristo, Maomé, Moisés... as ideias são distorcidas. Uma aula de semântica que nunca esqueci começava com a frase: “Lembrem que o mapa não é o território”. Em religião, o território é o que cada profeta vislumbrou a respeito de amor, conexão, universalidade. As pessoas fazem um mapa do território e então disputam quem tem o melhor caminho. Todos querem chegar à mesma montanha. Mas passam a vida brigando para provar que sua rota é melhor. Qual o momento mais difícil de sua trajetória? Foi a disputa entre o governo da Rússia, então sob comando de Boris Iéltsin, e o da Chechênia. Trabalhando com os principais conselheiros de ambas as partes, organizamos um encontro em território neutro, Haia, e foi muito difícil. Havia dor, sofrimento em jogo. Foi muito frustrante ver a possibilidade de paz se esvaindo. O líder checheno acabou assassinado depois... O resultado todos sabemos, uma tragédia, nos anos 90. Quando veio o 11 de Setembro, descobriu-se que a porta de entrada de um dos rebeldes na Al Qaeda foi ter participado da guerra na Chechênia. Foi dali que ele foi recrutado para a missão nos Estados Unidos. Tudo está conectado: um conflito distante tem consequências em todo o mundo. "Obama tem feito muitas coisas boas como negociador, mas precisa fazer movimentos mais fortes" O que acha de Barack Obama como negociador? Sou um admirador de Obama e sei que ele recebe muitas críticas, particularmente no que se refere a negociações. Ele tem feito muitas coisas boas como negociador, tenta ouvir todos os lados, é paciente. É bem mais habilidoso do que o antecessor, George W. Bush, mas acho que precisa fazer movimentos mais fortes. Na verdade não precisa ser ele, é preciso engajar as pessoas à sua volta. Por exemplo, os conservadores têm muito medo de que uma presença mais forte do governo limite as liberdades conquistadas. Sem lidar com esse medo genuíno, não vai ser possível fazer progressos. Não dá para simplesmente tirá-los da conversa. Essa é uma tendência comum na política: igno-rar ou diminuir o outro lado, em vez de ouvir de verdade quais são seus sentimentos. Mas, quando as partes estão em uma mesma sala negociando, tudo é possível. Mesmo a paz no Oriente Médio? Sim, eu acredito. Aconteceu na Irlanda! Se alguém dissesse 20 anos atrás que você poderia ter em um mesmo governo Ian Paisley, o mais intransigente líder protestante, e Martin McGuinness, ex-líder do IRA (o Exército Republicano Irlandês), as pessoas iam rir. E eles se juntaram. Se esses dois podem se unir e trabalhar juntos, todo mundo pode. As pessoas sempre partem do princípio de que uma cooperação é impossível, mas não é.Movido por uma questão que o persegue desde sempre – como aprender a viver junto? –, o antropólogo William Ury se transformou em um dos mais requisitados mediadores de conflitos do mundo, desarmando bombas de ódio tanto na política internacional como nas relações entre empresas, famílias e indivíduos
osgemeos
Daniel Klajmic
Otávio e Gustavo Pandolfo parecem a mesma pessoa dividida em dois corpos. Até o desenho é igual. Sempre foi, desde antes de virarem OSGEMEOS e ganharem o mundo com sua arte. Para eles, é tudo uma questão espiritual: “desde os cinco anos a gente sabia que nossa missão na terra era desenhar”
"O grafite de uma cidade diz muito sobre ela.”
Otávio e Gustavo Pandolfo escutaram essa frase anos atrás do amigo e grafiteiro John Howard. Seguindo o raciocínio, São Paulo seria uma cidade repleta de seres amarelos com roupas estampadas, às vezes com balaclavas escondendo o rosto e bolsas a tiracolo. Haveria também muita cor, detalhes e texturas na paisagem. A maior metrópole do Brasil seria lúdica como os sonhos mais loucos de uma criança, como um grande painel d’OSGEMEOS. Seria, caso a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da prefeitura não tivesse o hábito de, sistematicamente, passar uma tinta cinza por cima detudo isso.
O último grafite que a dupla fez, à luz das manifestações populares recentes que tomaram o país, não durou nem dois dias. “Na gestão anterior, fomos na prefeitura conversar. Mas não adiantou. O nosso recado tá dado. Vamos continuar falando o que temos para falar”, diz Gustavo. Falar, aliás, no caso dos dois, é sinônimo de desenhar. É com o traço, e não com as palavras, que os dois se comunicam com os familiares, com o mundo e um com o outro. Durante as quase 5 horas de papo com a Trip, os irmãos Pandolfo não soltaram a caneta e o pincel em quase nenhum momento.
Apesar de os governantes da cidade, ao que parece, não serem exatamente fãs de seu trabalho, a dupla continua passando boa parte do tempo em São Paulo. Mais exatamente no Cambuci, bairro coalhado de velhos galpões e sobrados onde Otávio e Gustavo são mais conhecidos como Tico e Teco. Lá fica o ateliê da dupla, a poucos metros da casa onde nasceram 39 anos atrás e em que foram criados pela dona de casa Margarida Kanciukaitis e pelo químico Walter Pandolfo . E também de onde viram, pela primeira vez na vida, uma turma dançar break, escutar hip-hop e fazer grafite.
Antes de ganhar a vida – e o mundo – com esta última atividade, os irmãos mergulharam de cabeça nas outras duas. Trocaram os passos de Michael Jackson, que sabiam de cor, pela “dança do robôzinho” e rimavam nos bailes, dando uma de Beastie Boys dos trópicos. Não tardou, descobriram a estação São Bento, onde a tríade break-hip-hop-grafite primeiro se manifestou no Brasil.
Foi quando Tico e Teco viraram OSGEMEOS, batizados por DJ Hum nos agradecimentos do primeiro álbum de rap nacional, Hip-hop – Cultura de rua (1988). Nem ele nem ninguém imaginava que décadas mais tarde aqueles “alemãozinhos” pintariam a fachada da Tate Modern, em Londres, a mansão de Johnny Depp, em Los Angeles, e o porco inflável dos shows de Roger Waters. Ou que montariam exposições disputadíssimas por todo o globo, assinariam linhas de lenços para a Louis Vuitton e tênis para a Nike (os lucros foram todos doados, eles dizem), e que valeriam altas cifras no mercado de arte, com quadros cotados em até US$ 200 mil.
Mas nada disso parece interessar muito aos dois gêmeos idênticos, irmãos de Adriana e Geraldo. São consequências, e eles sempre estiveram mais ligados na causa. Quando estavam em seus 20 e poucos, Otávio e Gustavo se enfurnaram no quarto e só saíram de lá quando descobriram por que e o que queriam desenhar. A resposta estava em Tritrez, um universo criado (ou acessado?) pelos dois, onde tudo que pintam no nosso mundo existe de fato. À prova de qualquer tinta cinza.
Vocês nasceram e cresceram no bairro do Cambuci? Otávio: Isso. Nesta mesma rua, algumas casas pra cima.
E hoje moram onde? O: Não moramos mais no Cambuci, é tudo que podemos falar.
Como foi crescer lá? O: O Cambuci era um bairro residencial, mas ao mesmo tempo industrial. No fim de tarde, as tiazinhas ficavam na porta de casa vendo a vida passar, ia todo mundo pra rua bater papo. Havia muitas gráficas também. Gustavo: A rua era nosso melhor brinquedo. A gente vivia fora de casa. Fazia fliperama com elástico e madeira, jogava bola, soltava pipa. O: A gente aprendeu tudo na rua. Era nossa escola. Aprendeu a respeitar. Você vê uma parede, quer pintar, mas às vezes tem um cara que mora lá. Você tem que ir trocar ideia, não dá pra chegar chegando.
"A gente nem troca muita ideia. Tá longe, mas tá perto. Sempre sabe o que o outro tá sentindo"
E na escola de verdade, como era? O: Sempre estudamos em escolas públicas. Eram todas muito boas, as mesmas onde nossa mãe estudou. Tinha até aula de francês! Cantávamos o hino todo dia. G: Engraçado que outros artistas saíram de lá, como Speto, Nina Pandolfo [esposa do Otávio], Onesto... Ficava todo mundo desenhando o tempo todo. A gente levava fotos dos grafites que fazia na rua para o professor dar nota. A linha do trem passava bem em frente à escola. Era demais: pela janela, a gente via passar os trens que a gente tinha grafitado no dia anterior.
Vocês eram bons alunos? O: A gente desenhava a aula toda. Repetimos alguns anos, mas era só por causa disso. Quando a gente tinha que estudar, estudava. Teve uma vez que um repetiu só para poder ficar com o outro, que tinha repetido. G: É! Tentavam separar a gente em salas diferentes. Teve um concurso de desenho na escola uma vez. O prêmio era uma passagem para Brasília. Foi louco: os dois ganharam, um em cada sala, com o mesmo desenho. Eu não estava vendo o que meu irmão estava desenhando, mas fizemos exatamente a mesma coisa.
O traço de vocês sempre foi parecido, então? O: É o mesmo desenho.
Vocês são daqueles gêmeos grudados? Já ficaram longe um do outro? O: Nunca. Mesmo longe, estamos perto. Sabemos o que o outro está sentindo sem nem perguntar.
Já brigaram? O: Também não. A gente nem troca muita ideia, na verdade. A gente se entende sem precisar falar.
Quanto tempo já ficaram sem se ver? G: Nunca. A gente tá longe, mas tá perto. Sempre sabe o que o outro está sentindo.
Havia alguém na família que desenhava também? O: O tio da nossa mãe, Nicanor Ferracciu, pintava bem pra cacete. Paisagens, queimadas... A mãe fazia aula com ele. O Arnaldo, nosso irmão mais velho, também sempre desenhou, inventava brinquedos. Foi o cara que segurou nossa onda, ensinou as coisas da vida. G: Na real, não sabemos muito bem por que desenhamos. Acho que é uma coisa que veio de antes de a gente nascer, meio espiritual. Nossos pais contam umas histórias e a gente vai tentando montar esse quebra-cabeça. Mas não conseguimos completá-lo ainda.
Como assim, espiritual? O: Nascemos prematuros, de sete meses. Nossa mãe só foi descobrir que estava grávida de gêmeos na hora do parto. Foi um erro médico. O doutor disse que a gente ia morrer. “Se eles vão morrer, que seja nos meus braços, na minha casa”, ela disse. G: Ela conta que quando a gente tinha 5 anos já dizia que nossa missão aqui na Terra era desenhar. E é louco, porque tem coisa que a gente faz hoje, em termos de desenho e escultura, que a gente já fazia nessa época. O: Todo mundo sabia que nosso tesão era desenhar. A gente nem trocava ideia um com o outro. Só desenhava e ficava narrando o que estava acontecendo ali no papel. Tudo tinha uma narrativa. G: A gente modificava todos os brinquedos que ganhava. Esquentava a faca no fogão e cortava tudo. Pegava caixa de sapato e fazia prédio, casinha, construía uma cidade inteira na sala de casa. Os bolos do nosso aniversário também eram muito importantes. A gente discutia o tema com nossos pais e fazia tudo junto com eles. Tinha bombeiro apagando fogo, carros, gente na rua, tudo. Quase uma maquete.
"Na escola, ficava todo mundo desenhando o tempo todo. A gente levava fotos dos grafites que fazia para o professor dar nota"
O que dessa época, exatamente, ficou no trabalho atual de vocês? O: Cara, os anos 80 eram uma época com muitos detalhes. As roupas, os aparelhos de televisão, tudo tinha muita coisa. Essa quantidade enorme de informação influenciou muito a gente. Nosso trabalho tem muito detalhe. A gente tem vontade de dizer um monte de coisa e tenta colocar tudo ali.
Como o grafite entrou na vida de vocês? G: Quando conhecemos a cultura hip-hop, por volta de 85. Pouca gente sabe disso, mas ela era bem forte no Cambuci. Tinha a turma do Fantastic Break, os primeiros caras que vimos fazendo grafite e dançando break. O que pegava antes era dançar igual ao Michael Jackson. Aí, depois, a onda era a dança do robozinho, o break. Começamos a treinar sem parar. Ficamos bons, fazíamos até apresentação nas festinhas de aniversário. E começamos a fazer uns raps também. O: Saíram os filmes Beat Street e Breakin [ambos são de 1984], que falavam sobre esse universo, sobre o que estava rolando em Nova York e em outros centros do mundo. Fomos assistir aos dois em um cinema no centrão. Mano, foi uma injeção de informação aquilo. Vimos as roupas, o som, tudo. Todo mundo pirou. Queria se vestir igual aos caras, usar tênis Nike, Puma...
Mas vocês tinham grana pra isso? O: Nada. Nossa avó era costureira. A gente comprava o tecido e falava para ela fazer um agasalho, por exemplo. Ou fazia rolo com gente que tinha acabado de voltar de fora. G: A gente chegava a bordar o símbolo da Nike nos tênis!
Quando rolou o primeiro spray, o primeiro grafite, mesmo? O: Depois que vimos o pessoal usando no bairro, imploramos pra nossa mãe comprar uma lata pra gente. Mudou nossa vida. Pintamos nosso quarto, depois o jardim, depois o telhado, depois os telhados dos vizinhos. A gente teve essa preocupação de aprender o negócio antes de ir pra rua mesmo.
Era uma mãe moderna, não? Dar um spray para uma criança naquela época não devia ser comum... O: Grafite era uma coisa muito nova, não tinha nem essa conotação de vandalismo ainda. Eu lembro que a gente andava horas na linha do trem só pra ver um grafite. Chegava lá, tirava foto e depois ainda ficava dias admirando a fotografia.
Os tempos eram outros... G: Completamente. A gente ia na biblioteca municipal e folheava um monte de livro e revista só para ver uma foto de grafite, que muitas vezes aparecia só no fundo da foto. Quando alguém descolava uma revista especializada, ficava todo mundo meses mergulhado naquilo, analisando cada detalhe.
Vocês lembram qual foi o primeiro desenho que fizeram na rua? O: Acho que escrevemos “crime” e fizemos um personagem. Isso foi só uns dois, três anos depois que ganhamos nossa primeira lata. Lá por 86, 87.
E a estação São Bento (berço do hip-hop em São Paulo), vocês frequentavam? O: Porra, a São Bento era indescritível! Um lugar mágico. De longe, você já escutava o som. O coração disparava, os pelos arrepiavam. Nosso pai que levava a gente lá, quase todo fim de semana. A gente tinha 14 anos, o resto do pessoal tinha 20. G: Era uma realidade paralela, o tempo corria diferente. Tinha a coisa de você respeitar, mas ser respeitado também. Ter humildade, mas saber chegar. E nós éramos uns alemãozinhos no meio de um monte de negão. Mas a gente chegou no estilo, com as jaquetas já grafitadas, já sabendo uns passos de break. A galera recebeu bem. O primeiro cara que conhecemos foi o Thaíde [rapper e apresentador de TV]. O: Foi aí que começou essa coisa de pintar na rua aos domingos. De dia mesmo. Isso foi muito importante para a cena do grafite brasileiro. Até hoje domingo é o dia do grafite.
E a polícia não ligava? G: Ligava muito! Era repressão total, estávamos na ditadura ainda. Todo mundo morria de medo da polícia. Você tinha que sempre ter RG no bolso, se não, ia pra delegacia. Hoje é diferente. O cara te aborda e, se bobear, vai pedir para você pintar a viatura dele.
Vocês viviam então de rap, break e grafite, basicamente... O: Não só. A gente trabalhava desde os 14 anos. Primeiro numa funilaria, onde era ótimo para conseguir tinta. Depois numa fábrica, lavando picles, numa locadora... Chegamos a ser boys em um banco. Mas não tínhamos futuro nenhum ali, era claro. Isso de trabalhar com outras coisas só nos deu mais certeza de que o que queríamos mesmo era desenhar. Chegou uma hora que não dava mais para fazer outra coisa que não fosse isso. Pedimos demissão e resolvemos que íamos tentar viver da nossa arte. Aí começou, talvez, o período mais especial da nossa vida. Ficamos praticamente trancados na casa da mãe, pintando sem parar por uns três anos. Aprendemos a usar aerografia, aquarela, tinta a óleo... Fomos atrás do nosso estilo. Encontrá-lo era o que mais queríamos na vida. Varávamos a noite ouvindo Afrika Bambaata, Led Zepellin e Pink Floyd, tomando vinho e pintando à luz de velas. G: Era tipo uma meditação.
Por que à luz de velas? O: Porque tudo que pudesse desviar nossa atenção, nós descartávamos. Vinha visita lá em casa e a gente nem dava oi. Descia só pra comer, às vezes nem isso. A gente queria saber por que a gente preferia desenhar a qualquer outra coisa. A gente escrevia muito nessa época, tipo um diário. Escrevia sobre o nosso desenho, para poder encontrar ele. Até que se abriu uma janela. E nós vimos tudo.
Parece a descrição de uma revelação divina. G: E foi. Cada dia a gente via mais um pouco desse mundo. Era só fechar o olho, parecia um filme. Uma coisa espiritual mesmo. Um dia a gente resolvia como seria o nariz dos nossos personagens, no outro, a perna. Foi indo.
É esse mundo que vocês chamam de Tritrez? O que significa esse nome? G: Começamos a estudar nossa vida, e muita coisa tinha a ver com os números três e 32. Não vou te contar mais nada porque isso é uma coisa muito íntima nossa. É algo muito complexo, de onde vem tudo o que a gente faz. Na real, só de ter descoberto esse universo já estava ótimo. Resolvemos desenhar para dividir ele com as outras pessoas.
Outras pessoas podem acessar Tritrez? G: Cada um tem o seu próprio Tritrez. Mas muitos não têm coragem de mexer nele. É um abismo, dá medo mesmo. Nós temos medo até hoje. É difícil se jogar. Demanda desgaste físico e mental, criação, recriação...
E por que os seres que vivem lá são amarelos? O: São Paulo é muito cinza. Mas a gente não queria, não conseguia ver a cidade desse jeito. O amarelo veio dessa época em que a gente estudava na casa da mãe. A gente gostava de desenhar principalmente no fim da tarde, quando o céu ficava laranja. O amarelo é uma tentativa de reproduzir essa luz que entrava pela janela. G: Desmembramos o laranja em amarelo e vermelho, que também é muito presente no nosso trabalho. O contorno dos nossos desenhos não é preto, é vermelho bem escuro.
De certa forma, Tritrez parece ser outro nome para inspiração, talvez até para Deus. Vocês acreditam nele? G: Acreditamos nesse nosso universo. Acreditamos em Deus também. Mas não seguimos nenhuma religião.
Quando o trabalho autoral começou a dar grana? O: Antes, passamos a pintar fachada de loja de skate, fazer ilustração para uma revista. Mas era osso. Cada trampo que rolava era uma festa, nossa mãe ia lá ver toda orgulhosa. G: Nosso trabalho autoral mesmo começou a ser mais reconhecido quando um grafiteiro americano que a gente amava, o Barry Mcgee, veio para São Paulo fazer uma residência artística. Ele viu um grafite nosso na rua, gostou e ligou pra gente. Na época a gente botava o telefone nos desenhos [risos]! Foi nosso primeiro contato com um grafiteiro de fora. Piramos. O: Daí o Barry falou do grafite brasileiro para um amigo que tinha uma revista gringa superimportante sobre arte de rua. A revista veio até São Paulo fazer uma matéria, passou um tempo na nossa casa. Depois, outro artista alemão, o Loomit, veio também. Curtiu nosso trampo e nos chamou para expor em Munique, na Alemanha. Isso era 1999, mais ou menos.
"No começo, todo mundo morria de medo da polícia. Hoje é diferente. O cara te aborda e, se bobear, vai pedir para você pintar a viatura dele"
A porta das galerias se abriu antes lá fora, então? O: Pois é. Em 2000, engatamos outra exposição em San Francisco, na Califórnia, numa galeria que lançou um monte de nomes foda da artes. Depois rolou outra em Nova York, na Deitch Gallery. Entre 2000 e 2005, fizemos muitas exposições e projetos fora do Brasil. G: Engraçado que, no começo dessas viagens, a gente se preocupava muito em fazer nosso trabalho exatamente do jeito que fazíamos no Brasil. A gente levava lata de Colorgin no avião [risos]! Chegamos lá e nos deparamos com lojas só de tinta, spray de tudo quanto é cor, escola de grafite... um outro mundo. Ninguém entendia como a gente podia usar nossos sprays, diziam que a tinta era muito aguada. E não entendiam também como a gente usava tinta látex em grafite. Pra gente, fazia todo o sentido: era mais barata e secava mais rápido.
Batia um desapontamento por ter bombado primeiro fora do Brasil? O: Não. A gente pensava: “Se neguinho não viu a gente, não viu. Paciência”. Nos preocupávamos mais em trabalhar com o mercado que se abriu pra gente. Até que a Márcia Fortes, sócia-diretora da galeria Fortes Vilaça, ficou sabendo da gente e nos chamou pra fazer a primeira exposição no Brasil.
Vocês separam o trabalho que fazem na rua e nas galerias? O: Completamente. Grafite é ilegal, é pintar sem perguntar nada para ninguém. O universo da arte contemporânea é outra coisa, não dá pra misturar. G: Usamos técnicas semelhantes nos dois, mas não chamamos de grafite o que fazemos nas galerias.
O picho então também não pede permissão para nada. A diferença para o grafite é apenas estética? O: Desculpe, mas não falamos sobre picho.
Vocês acham que a arte contemporânea abraça os artistas que vêm da rua? G: Não sei se existe preconceito na arte contemporânea. Mas vejo cada vez mais artistas que vieram das ruas indo para as galerias.
Na visão de vocês, como está o grafite brasileiro atualmente? O: Tem e sempre teve muita gente boa. Aqui temos uma vantagem de poder ir na rua num domingo e pintar na cara de todo mundo. Se você faz isso em Nova York é preso em 2 minutos.
Suas exposições costumam agradar a pessoas com idades e backgrounds completamente distintos. Por quê? O: Nossa arte é muito simples. Não tem explicação, conceito. Na real, tem muito. Se quiser, a gente escreve um livro para cada tela que a gente pinta. Mas não precisa. Queremos mexer com o imaginário das crianças, dos senhores de idade, de todo mundo. A gente quer que a pessoa sinta antes de entender. G: Essa coisa de exposição é muito louca pra gente. Ainda é. Abrimos portas que pareciam que sempre estariam fechadas pra gente. Ver o número de pessoas que vai ver o que a gente faz é muito forte. É uma quantidade de público que não existe muito na arte contemporânea. De repente, mostramos pra um moleque que está começando na rua que há um mercado pra ele, que ele pode viver com o trampo dele.
Falemos de São Paulo. Qual a leitura que vocês fazem da cidade hoje? G: Uma das coisas mais legais daqui é que não tem praia. Faz a gente pegar outros tipos de onda. E aprender a surfar nelas, todo dia. O: Cara, acho que São Paulo piorou. Está mais violenta do que nunca. Os políticos estão mais corruptos, roubando mais descaradamente.
Essa onda de manifestações pelo país não deixa vocês mais otimistas? O: Quem foi às manifestações entende a força e seus significados. Cansamos de ver o mundo inteiro se mobilizando, enquanto nós brasileiros aceitávamos tudo de cabeça baixa. Estávamos acostumados a sermos enganados e excluídos das decisões que regem a sociedade brasileira, e é por isso que a coisa foi tão longe. Os 20 centavos foram apenas o estopim para acordarmos de um grande pesadelo.
"Uma das coisas mais legais de São Paulo é que não tem praia. Faz a gente pegar outros tipos de onda"
Será que essa mudança não começaria justamente por São Paulo, a maior metrópole brasileira? G: Acho que sim. A cidade vai ficar insuportável e algo de novo pode surgir disso. O caos já está instalado. Aliás, foi por isso que resolvemos pintar: para abrir uma janela para fora dele.
Vocês vivem numa queda de braço com a prefeitura, que costuma apagar grafites de vocês dos muros da cidade. G: Cara, nem temos muito o que falar sobre isso. Chegamos a ir lá falar com eles na gestão do Kassab, mas continuaram apagando nossas coisas. Nosso recado já foi dado. Vamos continuar fazendo. Não vamos deixar de falar o que queremos falar. Isso é certo. Só não entendo como eles podem se preocupar com grafite com tantos outros problemas por aí. Eles vão lá e passam a tinta cinza, paga pela própria população.
Drogas. Usam? Defendem? Condenam? G: A gente adora dormir e sonhar. Nosso trabalho depende dos sonhos que temos, eles nos inspiram. Se você não está bem, não está no controle, não sonha. Por isso não usamos nada, apenas bebemos socialmente.
Quais são os planos para o futuro? G: Queremos experimentar muitas coisas ainda. Quem sabe fazer roupas. Já desenhamos tantas... Se você reparar, cada boneco nosso tem uma roupa diferente. Nunca repetimos nenhuma. Já somos estilistas, de certa forma. O: Esse universo nosso é tão real que pode virar filme, musical, peça de teatro, performance, música. Nossa única preocupação é fazer bem-feito e não passar por cima de ninguém. Somos muito caprichosos. Queremos fazer o melhor que podemos.
Bernardo Paz
Durante anos o empresário mineiro Bernardo Paz se enchia de uísque para poder dormir – 2 horas, se muito – e de manhã tinha de engolir o Engov e negociar políticas econômicas com banqueiros e operários em greve. Nos intervalos, moças notavam sua estampa de galã, seus olhos azuis, sentavam-se ao seu lado para mais um drinque e logo viravam esposas. Vinham mais filhos, mudanças de endereço, um punhado de papagaios no banco, sempre com aquela eterna sensação de angústia e os muitos maços de cigarro que carrega desde garoto. Nesse ritmo, aos 45 anos ele teve um AVC em Paris. Deitado por obrigação, com tempo para pensar na vida, Bernardo se lembrou do jardim mais exuberante que já tinha visto, num hotel de luxo em Acapulco, em 1971. Só que, enquanto lá dentro, ao som das maracas, os hóspedes se deslumbravam, do outro lado do muro altíssimo a população mexicana vivia na miséria absoluta. Bom, já dizia o escritor Paulo Mendes Campos que é quando um homem está cansado, quando a vida o encheu, que ele vê o inesperado. Foi mais ou menos o que aconteceu. Bernardo achou que devia deixar algo de bonito para os outros. Que fosse ainda mais bacana do que o jardim de Acapulco, e sem muros, para gente de todas as classes partilhar do encantamento. Assim começou a se desenhar a alma do Inhotim – hoje o maior museu a céu aberto do mundo, que combina arte, jardim botânico e projeto social. "A arte contemporânea é a única arte crítica, interativa, que mexe com as pessoas" Bernardo usou o próprio dinheiro – e o charme da conversa para se entrosar com quem fosse preciso – e construiu o museu dentro da sua fazenda em Brumadinho, Minas Gerais. Inaugurado para o grande público em 2006, o seu Inhotim tornou-se, em pouquíssimo tempo, referência mundial em arte. Numa área de 97 hectares, espalham-se pavilhões espetaculares, encravados na natureza, com o fino da produção de artistas contemporâneos: Adriana Varejão (sua ex-mulher), Ernesto Neto, Tunga, Anish Kapoor, Miguel Rio Branco... uma lista de 500 obras de cem grandes figuras de 30 nacionalidades. “A arte contemporânea é a única arte crítica, interativa, que mexe com as pessoas”, repete Bernardo, hoje com 63 anos. Um sujeito ansioso que continua fumando sem parar, ainda não dorme, é carismático, intenso e tem histórias como se todo dia na sua vida fosse um happening. Não poderia mesmo ver graça em quadros e esculturas feitos para contemplar com a mão no queixo. Inhotim é uma extensão natural da sua personalidade: exuberante, perfeccionista, feito de superlativos. As obras sacodem os sentidos, convidam a experimentar, subvertem os espaços. Matthew Barney, por exemplo, criou ali a instalação De lama lâmina, com um trator que suspende um tronco de árvore. Doug Aitken cavou uma cratera e instalou microfones lá no fundo, para a gente escutar o som do centro da Terra, no seu Sonic Pavilion. E quem quiser pode entrar na piscina do Helio Oiticica. Uma alegria real, que se pode tocar. Era o que ele queria. Tal qual o pato O verde também é um exagero de beleza. Um dia Bernardo se gabava das palmeiras para um agrônomo, e ele retrucou: “Não é bem assim. Faltam centenas de espécies para essa coleção ser espetacular”. É pra já. Bernardo deu a bronca no jardineiro ali mesmo, e, não demorou, exibia uma das maiores coleções de palmeiras do planeta – mais de 1.400 espécies. Há ainda o Viveiro Educador, com 25 mil metros quadrados para pesquisas científicas. Ele gosta de dizer que não entende de arte – desfez-se da coleção de arte moderna da família, da qual ele mesmo tinha comprado boa parte – e manja mesmo é de botânica. Quando o projeto de Inhotim ainda estava em botão, o amigo Burle Marx lhe deu conselhos preciosos para o paisagismo do lugar. De início o público era de amigos dos amigos, a turma dos bem-pensantes das artes, mas Bernardo queria mesmo derrubar muros. Hoje Inhotim tem programas de inclusão, coral, banda e o projeto Inhotim para Todos, que leva crianças e adultos de baixa renda para visitar o museu. “Quero que essas pessoas sejam tratadas com dignidade, com a beleza que merecem. Se uma pessoa pobre tem a casa pintada, um pouco de beleza que seja, ela se sente valorizada, tem estímulo para melhorar. Isso tem de acontecer em vários sentidos”, diz. Em janeiro de 2011 foi convidado a falar no Fórum Mundial de Davos sobre o tema Arte e Filantropia. Antes de ir, Bernardo deixou a paz de lado e botou fogo em entrevistas (“Quando chegar lá, vou olhar para a cara daqueles bundas-moles e mandá-los para a puta que os pariu. O fórum que importa está no governo de cada país, de cada estado, de cada cidade”). Não deve ter mandado, porque saiu de lá aplaudido de pé. Na gangorra da história, o nome Bernardo Paz rodou na imprensa por um leque danado de temas: o casamento com Adriana Varejão; denúncias envolvendo seu irmão, o publicitário Cristiano Paz, com o mensalão, já que Cristiano era sócio de Marcos Valério; acusações de lavagem de dinheiro para sustentar Inhotim; processo de um paisagista que não teve seu nome mencionado na criação do jardim – e pense mais um item, que talvez esteja na lista. Está casado com a sexta mulher (Arystela Rosa, 31 anos, que mora em São Paulo enquanto ele fica no Inhotim), é pai do sétimo filho (Achiles, nome do seu pai, de quem sempre esperou reconhecimento), avô de dois netos (“Detesto neto”), vendeu sua mineradora Itaminas por US$ 1,2 bilhão e jura que bota tudo no museu e vive duro, pegando empréstimos. Mora sozinho num casarão de vidro dentro do Inhotim com 12 metros de pé-direito, peças de design e cara de galeria de arte (“Fiz essa casa para os outros, que se deslumbram, eu não preciso morar nisso aqui”), onde conversou com a Trip e se abriu como nunca antes. Diz que não é feliz: “Tomo remédio para dormir, remédio para acordar, remédio para o coração”. Mas gosta de imaginar que, assim como a mãe, de quem herdou a sensibilidade, só está pensando nos outros. Porque, como lhe disse um funcionário muito simples, outro dia, carregando um pato morto: “O pato, como a gente, nasce, cresce e morre”. Quais são os novos projetos para Inhotim? O Anastasia [Antonio Anastasia, governador de Minas Gerais] esteve lá no Louvre, ele quer trazer o museu pra Belo Horizonte. Só que o presidente do Louvre conhece o Inhotim e falou pra ele: “Você tem o lugar mais impressionante do planeta, por que você quer o Louvre lá?”. Aí o governador foi na Lafarge [empresa francesa, uma das maiores construtoras do mundo, com filiais em MG], falou com o presidente deles na França. E a Lafarge vai construir de graça um pavilhão para mim. São R$ 6 milhões que eles vão investir. É este aqui [Bernardo mostra a maquete de um ovo aberto e, dentro, o formato de um anfiteatro], terá 30 metros por 18 metros de altura. Tem um restaurante que vai debaixo da terra. Começa a construir no ano que vem. Tem outros projetos já desenhados? Tem 58 pavilhões pra construir. Já projetados. Só que eu tô com a cabeça quente. É tanta coisa... Na parte botânica, tem uma green house de 50 metros de altura por 50 mil metros de área que vamos fazer. Vou botar a Floresta Amazônica dentro. Isso é o governo da Noruega que vai financiar. Esses financiamentos, como funcionam? Doação. Mas como eles vêm e oferecem? Ou você tem uma equipe que faz captação? Tenho um grupo de profissionais, mas o pessoal de fora chega aqui, se impressiona com o lugar e quer ter o nome vinculado ao Inhotim. Já para a captação de Lei Rouanet temos um departamento que cuida disso. Como acontece a negociação com os estrangeiros? É fascinação, só isso. No domingo esteve aqui um francês, que tá tentando construir em São Paulo. Ele comprou aquele hospital Matarazzo na avenida Paulista. Ele quer fazer Inhotim comigo, tem dinheiro demais [Bernardo se refere aos franceses do grupo hoteleiro Allard, que compraram o hospital em São Paulo para fazer um hotel de luxo assinado por Philippe Starck]. Mas é dinheiro árabe, eu acho. Nunca perguntei a ele. Ele quer me levar em Abu Dhabi pra conhecer o emir, que é fascinado com arte. É só você quem dá a palavra final? Não, eu dou a palavra inicial, que está muito na frente da palavra final dos outros. Você veta alguma coisa? Não há necessidade de vetar, porque temos uma equipe de profissionais que filtra tudo. Tenho sete curadores. Já chega para mim o melhor do mundo. Nunca chega uma coisa mais ou menos, só o melhor do artista. E tudo por preço de projeto, não por preço de obra. Você imaginava que Inhotim viraria o que é hoje? Eu nunca imaginei que ia construir Inhotim; eu comecei a fazer só. É claro que eu olho para trás hoje e vejo com tranquilidade que talvez eu tivesse imaginando. Porque dez anos atrás eu comprei o terreno para fazer um aeroporto pro Inhotim e ao mesmo tempo eu não imaginava que eu ia construir Inhotim. E, afinal, vai ter o aeroporto? Vai. Já tem terra, já está aprovado pela Infraero, pela Anac [Agência Nacional de Aviação Civil], por todo mundo. Um hotel e outro restaurante estão sendo construídos. Você não tinha convidado o Alex Atala para comandá-lo? O hotel vai ficar pronto logo, tá superadiantado. O Alex é um gênio, um chef maravilhoso, mas pediu R$ 8 milhões para o restaurante e só ia vir aqui de vez em quando. Falei: “Não, obrigado, não quero”. E ele andou espalhando que estraguei um sonho dele. Estraguei porra nenhuma! Achei que era dinheiro demais, só isso. Esses caras têm muito ego. "O Alex Atala é um gênio. Mas cobrou R$8 milhões para fazer o restaurante no Inhotim, Falei: 'Não, obrigado, não quero'" Falando em ego, você diz em entrevistas que uma pessoa só se realiza mesmo quando faz algo para a sociedade. Você sempre sentiu essa vontade de partilhar? Sempre. Fui educado assim. Minha mãe era poeta, pintora e assistente social. Era muito vinculada às pessoas mais humildes. Meu avô por parte de pai trabalhou com o marechal Rondon, foi um homem muito patriota. Essa palavra é meio ridícula, mas ele tinha orgulho do Brasil e criou meu pai dentro desses fundamentos nacionalistas. Minha mãe era muito depressiva, mas tinha um senso de humor fora do comum. Já o meu pai era engenheiro, disciplinado, um homem que me ninava com Hino da Bandeira, Hino Nacional, todos os hinos que você imaginar. Ele cobrava muito você? Era muito duro, muito difícil. Meu relacionamento era melhor com a minha mãe, que era de uma sensibilidade atroz. Esse antagonismo me deixou completamente inseguro, até os... ah, minha vida inteira. Somos quatro irmãos, eu sou o mais velho. Isso me deixou mais ou menos sem pouso, porque meu pai pregava o heroísmo, a luta, a vontade, o crescimento. Meu avô, pai dele, era do Piauí, mas fugiu de lá quando houve a revolução. Na época de Arthur Bernardes [mineiro, presidente do Brasil de 1922 a 1926], meu avô era comunista. Foi parar no Rio vestido de mulher e prenderam ele. Vocês tinham dinheiro? Éramos classe média baixa, classe média de funcionário público. Meu pai trabalhava na prefeitura, foi secretário de governo. Na época, Belo Horizonte só tinha funcionário público. Você estudou até que ano? Eu detestava estudar. Fui muito bem até o quarto ano do primário. Tinha um irmão que era muito brilhante, estudava 12 horas por dia. Então meu pai começou a me perseguir. Mas tinha uma diferença: meu irmão era moreno, mais magro, e eu era bonito, de olho azul. Meu pai me dizia: “Você não vai dar em nada na vida”. Eu tinha 13, 14 anos. Isso me marcou muito, passei infância e juventude muito isolado, calado. Terminei o ginásio e parei. Tempos depois fui fazer o madureza [antigo supletivo] e entrei em economia na faculdade. Mas larguei. Você era um adolescente angustiado? Extremamente. Era muito bonito e isso me atrapalhou demais. Eu detestava isso, tinha pânico de ser bonito, e muitas pessoas diziam que a beleza trazia burrice. Mas não era bom para ganhar as meninas? Eu tinha muita vergonha. Até os 20 anos eu não conversava com mulher. Às vezes ia a uma festa e ficava só 5 minutos, porque as meninas iam todas em cima de mim e eu não sabia dançar. Com que idade você se casou pela primeira vez? Com 23. Tinha esse problema também. Como eu nunca procurei por uma mulher, eu normalmente era achado por uma. Nunca casei com mulher bonita na vida, porque as que chegavam eram as mais feias, as bonitas ficavam esperando. Eu casei com uma menina que se aproximou muito na época e fiquei 11 anos com ela, a Sandra. Tivemos duas filhas. Antes de casar eu já trabalhava como atendente no posto de gasolina do meu pai. Depois fui trabalhar numa butique de roupa de homem. Muito tempo depois soube que o footing na cidade era na porta da butique, porque as meninas iam me espiar. E você, pelo jeito, já tinha deixado de ser introspectivo. Só no trabalho. Eu tinha que me articular, porque senão não ia dar em nada na vida. Depois fui operar na bolsa de valores. Em 1971 teve um crash na bolsa no Brasil e todo mundo perdeu tudo. Aquilo me traumatizou, porque eu vi as pessoas que tinham dinheiro guardado para a velhice perderem tudo. É uma coisa que eu nunca mais esqueci. Tenho pânico dessa coisa de trabalhar com dinheiro para fazer dinheiro. Eu parti mais para a realização pessoal. Mas como é que você virou dono de mineradora, milionário, e chegou onde está hoje? Eu tinha um percentual na mineradora. Quando comprei, era quebrada. Mas de onde veio essa mineradora? Quando me casei, acabei indo trabalhar no banco que era do pai da minha primeira mulher [o Banco Mineiro do Oeste, de João do Nascimento Pires, primeiro sogro de Bernardo]. Ele quebrou e perdeu tudo o que tinha. Eu já tinha saído para cuidar da mineração, que tinha sido dele, mas estava quebrada. Ele tinha perdido a cabeça. A história dele foi dramática, porque ele era um homem extraordinário que nos últimos anos da vida estava na macumba, cortava pescoço de carneiro para tomar sangue. Eu tinha que correr atrás para ele não ser roubado. Pus ele na mineração na época e foi uma tragédia, porque, na hora de pagar os transportadores e pessoal, ele pegava o dinheiro para pagar esses videntes. Então eu passei dez anos segurando greves, acordava às quatro da manhã, chegava em casa à meia-noite. Mas aí esse homem morreu, foi uma complicação. "Não entendo de arte. Vou dizer uma coisa com toda a franqueza: eu não entendo do Picasso. Porque arte para mim tem um processo educativo" Isso foi durante os anos 70, quando teve o milagre econômico? Para mim não teve. Eu vivia com duplicatas, dívidas, tinha mais de 2 mil cheques sem fundo. Eu não dormia. Às vezes pra dormir tinha que tomar uma garrafa de uísque, porque não tomava tranquilizante na época. Hoje tomo. Dormia 2 horas e acordava com dor de cabeça, mas ia trabalhar. Minha vida passou como uma ventania. Descobri uma fórmula de resolver esse problema, que era comprar outras empresas falidas, recuperá-las e fazer um monte maior pra sair lá na frente. Chegou um ponto em que a jazida não pertencia à mineração, era arrendada. Aí tive de fazer uma empresa às pressas, para fazer o arrendamento, continuar trabalhando, conseguir pagar toda a dívida e liberar todo o patrimônio. Foi o maior sufoco da minha vida. Minha mulher e eu nos separamos. Fiquei sem nada, criei uma holding e a partir daí eu vi que não tinha saída: a dívida era grande demais. Fui para a China e fiquei amigo de uns ministros chineses. Tive a primeira reunião com o Deng Xiaoping [secretário-geral do Partido Comunista Chinês]! Você foi o primeiro empresário brasileiro a ir para a China comunista? Ninguém nunca tinha ido à China. Quando eu fui, só os judeus estavam lá. O Deng Xiaoping foi o motor dessa história toda, mas por trás tinha um grupo de pessoas brilhantes. Eles botaram US$ 10 milhões na siderurgia. Comprei outras minas também e virei uma empresa de 10 mil funcionários. Uma correria... Tinha que viajar 300 quilômetros por dia, indo e vindo, correndo atrás. Eu estava bêbado quando comprei a primeira usina siderúrgica. Fiz um discurso que ninguém entendeu. Lembrei de quando era criança e dormia num quarto com três irmãos, que dava pra um terreno baldio ao lado. Todo dia uma galinha cantava. Eu subia no muro e descobri que ela estava botando ovo. Aí comecei a pegar o ovo e guardar. Aquilo pra mim era uma coisa impressionante! Eu estava ganhando aqueles ovos que a galinha botava de lado. E naquilo acumulei 12, 13 ovos. Mas foi nessa época que sua história de empresário melhorou. Não, o Brasil ficou uma loucura. Teve Plano Cruzado, Plano Collor, Plano Real, e depois o Meirelles [Henrique Meirelles, presidente do Banco Central entre 2003 e 2011], que acabou com as indústrias botando o câmbio lá embaixo. E você estava onde nessa altura? Na mineração. O que aconteceu? O minério subiu de US$ 10 para US$ 180. Então, mesmo com o câmbio caindo 100%, o minério subiu 1.800%. Com isso consegui pagar a dívida de bancos, adequar a dívida fiscal, parcelar com o fisco. E consegui triplicar, quadruplicar a produção de minério. Quer dizer, aí foi surgindo esse dinheirão. E você ainda vendeu uma mina para os alemães. Surgiu o dinheiro e construí Inhotim. A mina eu doei, é uma história longa. Mas acabou dando dinheiro e os alemães retribuíram botando dinheiro no Inhotim. Depois larguei tudo, porque tive um problema de saúde em Paris, em 95, que me fez pensar em fazer algo maior, para a comunidade. Você teve um AVC, né? Sim, mas não deixou sequelas. Você estava sozinho? Estava para casar com minha quarta mulher, a Titina. Era uma menina de família rica, conservadora, de Minas Gerais. Era muito mais nova que eu: eu tinha 44 e ela tinha 26 quando casamos. Ficamos 11 anos juntos. Não tivemos filhos, ela não podia. Antes eu tinha sido casado com a Cláudia, que me deu duas filhas maravilhosas. Não tem uma história que você se separou e, no mesmo dia, foi a um bar e conheceu uma moça? Sim, uma austríaca de 22 anos, minha segunda mulher. Também foi uma que me viu bebendo no bar, se aproximou e eu casei. Tivemos um filho, o Bernardo, que hoje vive em Stanford. Você gosta das moças mais novas? A questão não é essa. É que... sou um cara de poucos prazeres na vida. E um dos poucos prazeres era sexo. Era difícil fazer sexo com uma mulher mais velha. Ou casar com uma mulher de 50 anos, quando eu tinha essa idade, e ainda ter apetite sexual [risos]. A beleza então é importante para tudo? Hoje eu consigo encarar a beleza da inteligência, da sabedoria. Aí tanto faz a idade. Consigo me apaixonar por uma pessoa sem me preocupar com o sexo, desde que ela seja brilhante. Mas você não me respondeu uma coisa: você se interessava por arte? Já pensei muito isso, mas nunca quis entender de arte. Não entendo de arte. Vou dizer uma coisa com toda a franqueza: eu não entendo Picasso. Porque arte para mim tem um processo educativo, elucidativo. Anterior a Picasso, a arte era anterior à fotografia. Então a arte traduzia a visibilidade de uma determinada coisa que você não conhecia, ela tinha esse papel. A arte era figurativa. Já na arte moderna... Quando veio a fotografia, os artistas passaram a fugir da fotografia, do realismo. Alguns artistas conseguiam isso com beleza, como Monet, Matisse e outros mais. Picasso pintou o ciclo azul de forma clássica, de uma beleza extraordinária, afinal era um gênio. Depois passou a distorcer tudo e deixou de ser uma pessoa admirável. Os quadros deixaram de ser admirados para ser invejados por ricos e colecionadores. Falando nisso, a arte brasileira está cada vez mais valorizada. Uma obra da Adriana Varejão, sua ex-mulher, já passa de R$ 1 milhão. A obra da Adriana, por coincidência, ou por qualquer outra coisa, teve um salto de valor após o pavilhão dela aqui, que é o mais bonito de Inhotim. Comprei todas as obras para o pavilhão por US$ 180 mil – e lá tem 70 obras. Hoje custa US$ 1 milhão cada uma. Mas isso não acontece de uma hora pra outra. Ela tem um valor enorme como pesquisadora, vai fundo em suas pesquisas. E, de uns tempos para cá, os ricos brasileiros começaram a reconhecer nossos artistas e a comprar por uns preços absurdos. "Preciso de R$2 milhões todo mês. Pego dinheiro emprestado sempre. Estou devendo R$12 milhões, mas mês que vem eu pago" A Beatriz Milhazes passa fácil de R$ 1 milhão. Isso é loucura! A Milhazes tenta ser pintora, mas o que ela faz é cortina inglesa. Qual é o seu parâmetro de boa arte? O meu parâmetro é a educação. Arte contemporânea é a única arte crítica, interativa, que mexe com as pessoas. As crianças adoram, mais do que os pais. A arte aqui em Inhotim está envolta na beleza da natureza. Esse é o segredo. Toca as pessoas. A Adriana tem por trás uma curiosidade, o Ernesto Neto tem uma diversão e uma alegria que se traduzem para a criança, o Cildo Meireles tem a perspectiva da morte. A Adriana foi sua única esposa famosa. Incomodava você ser conhecido como “o marido da Adriana Varejão”? Nunca me preocupei com a fama da Adriana. Me importava com o que ela fazia, com o trabalho dela, enxertado de vontade e víscera. Me apaixonei por ela, casamos, tivemos a Catarina, linda, e continuei levando a minha vida. Depois surgiu um problema: a Adriana, como todo artista de uma forma geral, tem a característica de olhar muito pro seu próprio interior. Isso é um vício de quem constrói pra si mesmo, não quer dizer que seja um erro. Ela não reconhecia suas ambições de ganhar dinheiro com arte. Queria ser uma pessoa da arte pela arte. Mas, por outro lado, precisava do dinheiro. Não para viver, mas para ser importante – o mundo capitalista exige isso. E ela era artista, devia brilhar, mas eu estava crescendo como pessoa e isso foi criando um abismo entre nós. Ela queria envelhecer comigo. Acho que ainda me ama, mas isso [reatar] é impossível. Separamos e acabou. Você tem inimigos? Não que eu saiba. Meus inimigos não têm nome, mas tentam me prejudicar. São pessoas que têm ciúmes. A vida inteira eu tentei solucionar problemas e buscar caminhos pras pessoas. No primeiro momento eu consigo muita coisa, porque tenho uma facilidade imensa de ligar pontos, entendo a pessoa sem ela perceber. Em um primeiro momento, ela me julga um gênio. Em um segundo momento, ela tem medo. No terceiro momento, ela tem raiva. E, no quarto, parte para a vingança. Não posso deixar de perguntar sobre todas as acusações de lavagem de dinheiro envolvendo o nome do seu irmão (Cristiano Paz) com Marcos Valério e ligando você a políticos. O que você tem a dizer? Eu digo que meu irmão é inocente. Ele é brilhante, tem uma agência de publicidade que talvez seja a melhor do Brasil. Nunca procurou dinheiro; nasceu artista. Quando começou em publicidade, aos 16 anos, fez um filme e todos em casa choraram de emoção. Eu tenho pena dele. Ajudo no que posso. Porque ele foi envolvido nesse processo pelo Marcos Valério, mas o banco deu dinheiro observando algum favor – e depois quebrou. Todos perderam e meu irmão foi o único que se manteve de pé nessa história. Quanto a mim, nunca fui amigo de político nenhum. Seus outros dois irmãos trabalham com o quê? A Virgínia, coitada, é inteligentíssima, mas é uma sonhadora também. Ela montou um escritório pra filha dela, que é uma arquiteta genial, mas não ganha dinheiro. Tenho sempre que dar dinheiro pra ela. O André é brilhante também, mexe com comércio. Mas é doido: xinga, briga, berra. Uma coisa tem de ficar clara: eu nunca fui rico, não sou rico, não tenho um tostão no banco. Todo o meu dinheiro está envolvido com a população de uma forma geral. Mas você tem uma vida bem confortável... Preciso de R$ 2 milhões todo mês. Pego dinheiro emprestado sempre. Estou devendo R$ 12 milhões, mas mês que vem eu pago, vendi um troço por R$ 250 milhões. Tudo que ganho boto no Inhotim [na imprensa já saiu que ele bota US$ 70 milhões por ano; há dois anos, Bernardo vendeu sua Itaminas para um grupo chinês por US$ 1,2 bilhão]. E agora você está com a sexta esposa, a Arystela, que lhe deu o sétimo filho. Ela é designer, veio criar a iluminação de uns restaurantes meus. Essa moça sofreu absurdamente. O marido teve esquizofrenia, quis matá-la e acabou morrendo assassinado. É uma menina que veio do interior, na dela, extremamente correta, e lindíssima. Temos o Achiles, um menino lindo. Dei a ele o nome do meu pai. Tenho o maior respeito pelo que meu pai foi, apesar de ele ter me crucificado a vida inteira. "Eu vou criar aqui uma Disney World pós-contemporânea cultural, que faça com que as pessoas cresçam" Ele faleceu há pouco tempo. Faleceu há dois anos, dizendo que tinha orgulho de mim. Que é o que você sempre desejou. Exato. Me deu um prazer muito grande saber disso. Quando ele morreu, eu não tinha que provar nada mais pra ninguém. A vida inteira o meu foco é a sociedade. Quando você morrer, o que deve acontecer com Inhotim? Sou pragmático. Estou pensando lá na frente e penso grande. Eu vou criar aqui – se Deus quiser, e não que eu acredite em Deus – uma Disney World pós-contemporânea cultural, que faça com que as pessoas cresçam e que atenda a sociedade de uma forma geral – miseráveis, pobres, médios e ricos. E que todos sejam considerados iguais aqui dentro, como são atualmente. Hoje eu recebo cerca de 100 mil pessoas de comunidades extremamente carentes, recebo 80 mil crianças por ano, extremamente pobres. Tenho 140 professores, monitores, educadores, tem as comunidades quilombolas que eu trouxe pra trabalhar aqui... Nós atendemos essas comunidades. Muitos ricos não investem em nada para a comunidade. O que você acha da elite brasileira? A elite brasileira não difere de nenhuma elite. A pior elite é a aristocracia europeia, porque não admite até hoje que perdeu poder. As elites são feitas por pessoas que lutaram para crescer, que têm medo de perder. Todo rico é assim. Toda pessoa que cresce não quer dar um passo para trás. O que eu estou fazendo é uma renúncia absoluta da vida. Mas seu nome estará ligado a um legado. Meu nome está ligado a isso, mas está sendo alvo de muitos [mísseis] Exocet. Nunca fui amigo de político, nunca me liguei nisso. Condeno a corrupção, que prejudica o pobre, que atrapalha a saúde, que vende remédio mais caro, que manipula o dinheiro. Agora, eu, por mim, não estou nem aí pra minha vida. Se eu morrer amanhã, já morri. Agora estou com uma arritmia cardíaca, tenho de ir ao [hospital] Einstein na segunda. Acho uma chatice, detesto sair daqui. Você teve um AVC, fuma à beça e diz que toma tranquilizantes toda noite. Mas tem sete filhos. Não tem a preocupação de viver mais? Não. Nunca fiz esporte. Faço tudo o que você disse, e os sete filhos gostam de mim. Tenho 1.400 funcionários. Se você sair e falar mal de mim, eles te matam. As pessoas que estão próximas a mim estão muito, muito próximas. O que emociona você? Meus filhos me emocionam. E as pessoas que estão comigo no Inhotim também. Encontrei um negro quilombola revoltado com sua condição e querendo matar os brancos. Esse negro hoje é o melhor condutor de visitantes que temos. Todos os negros que tenho aqui são quilombolas. E são pessoas extraordinárias.Ele transformou sua propriedade particular no Inhotim, o maior museu a céu aberto do mundo, onde compartilha com todos uma invejável coleção de arte contemporânea. Diz que não entende Picasso. Que a artista Adriana Varejão, uma de suas cinco ex-mulheres, ainda o ama. E que Beatriz Milhazes, a pintora brasileira mais valorizada da história, faz, na verdade, cortinas inglesas. Pelo que parece, aos 63 anos, o empresário Bernardo Paz quer mais é ver o circo pegar fogo
José Junior
Uma viatura da polícia militar e um camburão da Core, a tropa de elite da polícia civil do Rio de Janeiro, guardam a portaria do condomínio elegante, nos arredores da capital fluminense. Enquanto aguardamos o porteiro avisar da nossa chegada, três homens trajando a farda negra da polícia especial descem do camburão empunhando fuzis M-16. Ultrapassadas todas as barreiras, José Junior, o idealizador e coordenador do AfroReggae, abre a porta. Com um Red Bull na mão, trajando bermudão e chinelo, o cabra marcado para morrer nos conduz para a piscina. Por quase 4 horas, fala sem trégua, entremeando o discurso com goles do energético (foram cinco latinhas durante o papo). Carioca marrento, dono de uma personalidade controversa, visual extravagante e oratória afiada, José Junior entrou para uma macabra lista VIP: a dos jurados de morte. Ele está na mira de traficantes do Complexo do Alemão e do Complexo da Penha, fato comprovado por escutas telefônicas que registraram um papo entre Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho (CV), e Fernandinho Beira-Mar, ambos presos na penitenciária de Catanduvas, no Paraná. Avisos claros já foram disparados: em julho, traficantes incendiaram a sede do AfroReggae no Alemão e, três dias depois, dispararam tiros de fuzil contra a sede da Penha. Os funcionários da ONG foram coagidos a deixar as favelas. Na conversa entre VP e Beira-Mar, o segundo diz: “Foi o Juninho... Ele que está por trás disso, né? Tinha que mandar um salve lá para ele”. “Salve”, na linguagem do tráfico, quer dizer represália. Os dois traficantes foram indiciados pelos ataques. Assim como os dois o chamam de Juninho, José Junior também demonstra intimidade com vários escalões. Quando fala do João, refere-se a João Roberto Marinho, presidente das organizações Globo. Sérgio é o governador do Rio, Sérgio Cabral. Paulo é o presidente da Fiesp, Paulo Skaf. Pablo Capilé, ativista cultural que esquentou ânimos por causa da Mídia Ninja e do movimento Fora do Eixo, é apenas Pablo. E Marcinho VP, chefe do CV, vira Márcio na boca do empreendedor de 45 anos. “Minha mulher perguntou até quando isso vai durar. Respondi: talvez para sempre” A afinidade com grupo tão diverso foi conquistada de grão em grão. Em 1993, fundou o AfroReggae. Vinte anos depois, a ONG nascida na favela de Vigário Geral, zona norte do Rio de Janeiro, é um case social que hoje movimenta R$ 20 milhões por ano, emprega diretamente cerca de 400 pessoas e sustenta 50 projetos só nas favelas cariocas. José Junior também virou apresentador de TV. Seu programa Conexões urbanas, do Multishow, vai para a sexta temporada em outubro. Além do trabalho na ONG, ficou célebre graças ao ofício de mediador de conflitos. Há alguns anos, figura na guerra carioca como o sujeito que fala com os dois lados: cúpula dos bandidos e cúpula da polícia. Assume, por exemplo, ter sido amigo de Marcinho VP. Quando o Complexo do Alemão foi invadido para a instauração de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), em novembro de 2010, subiu o morro para pedir aos traficantes que evitassem o confronto. A boa relação com o crime organizado, no entanto, azedou por causa de um pastor evangélico. No ano passado, José Junior denunciou Marcos Pereira, líder da Assembleia de Deus dos Últimos dias, com sede em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Acusações: estupro de mulheres e menores de idade, associação com o tráfico e envolvimento em ataques de facções criminosas no Rio, em 2006 e 2010, com ônibus queimados pela cidade e cabines policiais metralhadas. Segundo José Junior, a igreja de Marcos Pereira seria uma espécie de lavanderia do CV e o pastor, um “conselheiro do tráfico”. Até pipocarem as denúncias, ele e Marcos Pereira eram companheiros na tarefa de mediar conflitos e retirar jovens do crime. Agora, a amizade virou uma arma apontada para a sua cabeça. José Junior hoje vive dentro de uma bolha. O banco Santander, patrocinador do AfroReggae, disponibilizou dois carros blindados e paga homens do Bope para se revezarem 24 horas na segurança. Há sempre dois “caveiras” na cola de Junior, da mulher e dos cinco filhos (a mais velha com 13 anos; o mais novo, um bebê nascido no mês passado). Na manhã fria de sábado em que o encontramos, José Junior estava em casa só com o filho de 4 anos. No longo papo, ele relata a saga com o pastor Marcos Pereira, diz não acreditar que qualquer mal vá lhe acontecer e garante que já fez do limão uma limonada, com a campanha “A pacificação é nossa, o AfroReggae é nosso, deixem o Rio em paz”, lançada em jornais e na Internet no dia 23 de agosto e que ganhou adesão até do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Jura fidelidade ao Sérgio, o Cabral, apesar de a popularidade do governador estar em queda livre e seu cargo na berlinda desde que começaram as manifestações de junho. Ao final da conversa, saímos em comboio do condomínio escoltados pelo camburão da Core, com os três policiais exibindo para fora das janelas os fuzis M-16, para comer no quilo da esquina. “Se eu vou dar um passeio no shopping, eles estão atrás de mim. Vou correr, eles estão atrás de mim. Não posso mais fazer nada sem eles”, José Junior diz, sem sinal de que isso o incomoda. “Minha mulher me perguntou até quando isso vai durar. Eu respondi: talvez para sempre.” Quando você conheceu o pastor Marcos Pereira? Por muitos anos, eu ouvi as histórias de um pastor que fazia mediações de conflitos, parava rebeliões e tinha acesso a favelas. As pessoas falavam que eu tinha de conhecê-lo. Um dia, em 2006, fui encontrá-lo. Onde foi o encontro? Na igreja, em São João de Meriti. Eu de sandália, bermuda, camiseta, todo tatuado, brincos. Ele falou: “Já fui igual a você. Já fumei maconha, usei drogas, bebi”. Julgou pela aparência. Aí falei: “Pô, então tu nunca foi igual a mim: eu nunca bebi, nunca fumei maconha nem usei drogas”. Houve uma empatia. E comecei a ver coisas impressionantes. “Muita gente, como o Marcelo Freixo, me aconselhou a ficar atento [com o pastor]. Achei que era preconceito” O que, por exemplo? Essa coisa de realmente existir um poder de sugestão, que quando usado para o bem é muito bom. Eu achava que ele usava para o bem. Nunca fui da igreja, mas ia para conversar. Não sobre espiritualidade, mas sobre mediação de conflito, histórias do crime. Nesse meio-tempo, passei a perceber que o cara não era ele, mas o Rogério [Menezes, na época assistente do Pastor Marcos]. Rogério é que ia para o front, negociava. O que você viu que mais o impressionou? Acho que foi ver bandido desmaiando. O Marcos Pereira botava a mão e o cara caía de fuzil na mão. Impressiona muito, porque bandido geralmente não paga mico, né? Pessoas que saíram do crime pelas mãos do pastor, como Feijão (ex-chefe de Acari) e Norton (líder da rebelião no presídio de Benfica), foram para o AfroReggae. Você e ele tinham uma parceria? Sim. Mas, quando as pessoas saíam da igreja e iam para o AfroReggae, elas contavam a outra versão. E aí começou a vir a decepção. O que acontece é o seguinte: você chega lá na igreja e vê histórias muito fortes. Fica impressionado, impactado. Eu fiquei impactado e impactei muita gente. Levei uma lista de pessoas para conhecer o pastor, muitos jornalistas. Você nunca foi tocado espiritualmente por ele? Não sou evangélico, apesar de ter uma relação forte com Deus. Li a Bíblia da primeira à última página, Velho e Novo Testamento. Não sou um expert, mas via que eles falavam coisas erradas no culto. Confundiam personagens, por falta de conhecimento. Eu achava estranho, mas ficava na minha. O pastor mantinha uma disciplina medieval na igreja, tudo era proibido, de sexo a Coca-Cola. O que você achava disso? Muito equivocado. Para me provocar, como ele sabia que eu gostava de divindades, sejam hindus ou africanas, ele falava no culto: “Buda e Shiva eram demônios”. Você desconfiou que havia uma conotação sexual entre o pastor e as mulheres da igreja? Tinha uma relação esquisita com as mulheres. Mas era de ambas as partes, um flerte. Para mim, não tinha nada de mais. E da ligação econômica com o tráfico, desconfiou? Disso eu desconfiei, mas nunca tive prova. Ele dizia que não, traficantes negavam. Muita gente, inclusive o deputado Marcelo Freixo, me aconselhou a ficar atento. Eu achava que era preconceito por ele ser evangélico. O que o fazia suspeitar? Ele tinha umas Land Rovers, dizia que empresários convertidos haviam doado. Eu sabia que não era dinheiro arrecadado nos cultos. O público da igreja é pobre, ele não teria aquele patrimônio. Eu achava que era dinheiro de políticos, porque o pastor angariava milhões de votos. Mas o que me atraía era o fato de ele ter controle em rebeliões, favelas, penitenciárias. Como você começa a desconfiar de algo errado? Quando o Norton e o Feijão vêm para o AfroReggae e me contam coisas. Aí percebo também que algumas pessoas, ao sair da igreja, voltavam para o crime. Estranho pra cacete. Ninguém é obrigado a ficar para sempre na igreja. Mas ir pro crime de novo? Estranho. E muitos eram assassinados de repente. Aí, em 2009, um amigo me fala: “Pô, o Rogerinho saiu da igreja lá do pastor”. E eu falei: “Sério? Mas o Rogério é o braço direito do cara”. Meu amigo não sabia o motivo: “Pois é, saiu, mudou telefone, parece que mudou de casa”. Falei: “Porra, quero ligar pra ele. Rogério é um puta mediador de conflito”. Antes de continuar: o que é mediador de conflito? Nesse caso é guerra entre facções do narcotráfico, guerra com a polícia, guerra entre facções e milícia. Você entra pra tentar mediar o problema para que inocentes não morram. O Rogério fazia mais que isso. Pegava pessoas amarradas para morrer e arrancava das mãos dos traficantes. Pessoas que deviam ao crime ou mesmo policiais. “Quando minha mulher teve contrações, não pude correr pra maternidade. Tive que esperar a chegada da escolta. Foi muito estranho” Quando você localizou o Rogério? No início de 2009, ele foi na minha casa e falei: “Pô, o que que houve?”. Ele conta que a mulher tinha sido estuprada pelo pastor. Não acreditei. O papo foi na frente dela, eles começaram a chorar. Ele disse que o pastor pegava dinheiro do tráfico, que muitas rebeliões eram teatralizadas, o pastor mandava fazer para ir lá e “resolver o problema”. Que, nos vídeos dos resgates em favelas, ele mandava bater no cara para aparecer como salvador. Um show de horrores. Você acreditou no Rogério? O dinheiro passou a ter explicação. Mas na parada do estupro eu não acreditei. No dia seguinte falei com o pastor: “Vem cá, meu irmão, o Rogério me contou que você transou – não tive coragem de falar estuprou – com a mulher dele”. Ele virou outra pessoa. Disse: “Mermão, tu manda ele se foder. Comi a mulher dele mesmo. A vagabunda quis dar e eu comi”. O Rogério sabia que você ia falar com o pastor? Não. Quando contei para ele, o Rogério ficou apavorado: “Porra, ele vai mandar me matar”. Eu disse: “Que é isso, cara? Ele não vai matar ninguém”. E o Rogério repetia: “Vai, eu estou morto, Junior”. Aí contratei o Rogério e o pastor passou a ter ódio de mim. Fazia cultos em favelas em que eu atuava e espalhava que eu tinha o diabo no corpo. Até que um dia um traficante me contou que o Waguinho [ex-líder do grupo de pagode Os Morenos, hoje pastor evangélico] foi em favelas dizer que eu era X-9, que estava ligado à inteligência da polícia . Isso é sentença de morte no crime organizado. Claro. Eu liguei para o pastor puto da vida. Isso no final de 2009, começo de 2010. Falei exatamente assim: “Meu irmão, você está grampeado, eu também devo estar. Vai tomar no teu cu, seu filho da puta. Se acontecer alguma coisa com o Rogério ou com alguém perto de mim, tu vai aparecer na capa dos jornais preso. Só vou sossegar quando eu te ver de camisa verde e cabeça raspada”. O que ele respondeu? “Que é isso, meu filho? É tudo mentira. Vou fazer uma oração para você.” Eu falei: “Oração é o caralho, seu verme”. Aí ele passou a fazer cultos falando muito bem de mim, e isso que era o preocupante. Se ele fala bem de mim e acontece alguma coisa, iam dizer: “Porra, o pastor não! O pastor gosta dele!”. Aí conversei muito com pessoas ligadas a ele, inclusive mandei recado para o Márcio [Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho]. Eu sabia que o Márcio era a força dele, mas que não fechava com estupro, pedofilia, essa coisas. Até então você não sofreu ameaça? Em 2012, um ex-traficante que hoje está no AfroReggae chegou e falou: “Junior, eu estive lá na boca. Porra, os caras falaram para eu sair do AfroReggae, que o pastor está botando todo mundo aqui na bola para morrer, inclusive você”. Foi quando comecei a receber vítimas de estupro e filmar as histórias, com o consentimento delas, claro. Mas não denunciou à polícia? Eu tinha falado com autoridades, mas o negócio não andava. Ele é ligado a políticos poderosos. Pensei: o jeito de blindar a gente é botar na mídia. Liguei para o jornal Extra e ofereci entrevista. Depois dessa entrevista, o boato era que se tratava de briga de amigos. Teve esse erro, a matéria deu a entender que era briga entre amigos, ou ex-amigos. Rendeu a semana inteira. Aí fui no Marcelo Freixo e ele me convocou para depor na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em março de 2012. Depois, fomos ao Decod (Delegacia de Combate às Drogas). Foi uma decepção. Era pra ele ter sido preso logo e só foi preso este ano. Por que demorou para ele ser preso? Todos esses anos ele foi minerado. Sabe o que é isso? Ele foi extorquido várias vezes, entendeu? Era muito dinheiro envolvido. E como ele conquistou tanto poder no crime organizado? Ele sempre foi “treteiro”, “volteiro”. Quando era garçom, deu o golpe no maître e virou maître. Aí entrou para a igreja, derrubou o pastor e assumiu o comando. O Marcos Pereira tem o dom da oratória. Não tem conteúdo, mas tem oratória, tem carisma. É um psicopata. Mas e a ligação com a cúpula do crime? Quem levou o pastor até o Márcio foi o Rogério. O Márcio é uma vítima dele. Ele não tem interesse que o Márcio saia da cadeia. Enquanto o Márcio estiver preso, ele exerce o poder. Ele era a voz do Marcinho VP aqui fora? Continua sendo, mesmo preso. Tem pessoas operando para ele. Como as coisas se desenrolaram até o pastor ser preso? Outras vítimas apareceram para falar. Pela primeira vez havia pessoas mostrando o rosto. Sempre rolaram investigações que não deram em nada. Viemos a descobrir que teve uma menina que quis denunciar e ele mandou matar, a Adelaide. Ela frequentava a igreja e fez um vídeo com as orgias, com as sacanagens, com o negócio do dinheiro. Ele mandou matar a garota. Você se sentia ameaçado? Recebi informações de que quatro pessoas no AfroReggae estavam marcadas: eu, Rogério, Tuchinha [ex-chefe do tráfico da Mangueira] e Gaúcho [ex-chefe do Complexo do Alemão]. Tuchinha e Gaúcho cumpriam a semiaberta. Saíam da cadeia durante o dia para trabalhar. O plano era matá-los na saída. Eles estavam trabalhando comigo e sabiam demais. Em 2006 e 2010, o Rio viveu ondas de terror, com ônibus queimados, cabines policiais metralhadas. Você declarou que o pastor estava por trás disso. Tudo tem a ver com ele, é a mente do crime. Em 2010, os ataques foram na véspera das eleições para atingir o Sérgio [Cabral, então candidato ao governo]. O Marcos tem interesses políticos. O candidato dele ao Senado, o Waguinho, um desconhecido, teve mais de 1 milhão de votos. Você soube disso na época? A informação de que haveria os ataques, sim. Tentamos fazer a mediação e isso me colocou numa situação de extremo risco. Foi enviada uma carta, apreendida na penitenciária de Catanduvas, com o seguinte texto: “O cara do AfroReggae, fortão com o governo, está entrando na mente dos nossos irmãos de Bangu 3. Peço autorização para suspendê-lo com muita inteligência”. Logo depois ocorreu a ocupação dos Complexos do Alemão e da Penha. Você não teve medo de subir o morro, já que uma carta pedia seu pescoço? Ninguém entendeu por que eu demorei para ir, as pessoas não sabiam da carta. Até que o Marcelo Freixo se colocou à disposição para subir e tentar evitar um banho de sangue. E você resolveu acompanhá-lo? O Brother, funcionário do AfroReggae no Alemão, me ligou e falou: “Estou vindo da boca. Os caras querem te ver. O Pezão”. O Pezão era o cara que mandou a carta. Era justamente o filho da puta. Aí eu falei: “Ah é, Brother? Leva o telefone lá”. O Pezão falou: “Pô, era legal você mediar essa situação aqui, porque todo mundo vai morrer”. Respondi: “Engraçado, agora você fala em mediar, mas mandou cartinha, né?”. E ele: “Não fui eu, não mandei nada”. Eles estavam com medo da invasão da polícia? Estavam. Falei para o Pezão: “Tu é um safado, uma pessoa sem escrúpulos, cretino, covarde, filho da puta”. Ele continuou insistindo que precisava de mediador. Aí, Rogério e Gaúcho me convenceram. Falaram: “Porra, Junior, vai morrer inocente, vai morrer culpado, vai morrer polícia. Só tu pode desarmar essa parada lá em cima”. A cena era impressionante: os bandidos fugindo em fila pela trilha que liga os Complexos da Penha e do Alemão. Meu filho, hoje com 2 anos, tinha acabado de nascer. Pensei: “Caralho, vou subir essa porra, posso morrer. O moleque não vai nem conhecer o pai direito”. As imagens de você subindo o morro com os tanques cercando o complexo de favelas correu os jornais. Antes de subir, fiz uma reunião com o presidente da associação de moradores. Falei com o irmão do Márcio, que não é envolvido e sempre me ajudou nas mediações. Éramos 30 pessoas subindo, eu na frente, camisa do AfroReggae. Quando chegou lá em cima, éramos só três. “Entrar no Complexo do Alemão, o grande bunker do CV, considerado impenetrável, era uma vitória emblemática, quase utópica” Mediar naquela circunstância era convencer os caras a se entregar? Não. Era convencê-los a não revidar. O Pezão era chefe do Alemão naquele momento. Você o encontrou lá em cima? Não, já tinha fugido. Estava o Fabiano, o FB, da Penha. Parecia um militar cansado de uma guerra. Ele estava chorando. Falei: “Cara, não tem que atacar. Vocês vão morrer. Vai morrer inocente. Vale a pena?”. Ele chamou todo mundo e disse que ninguém deveria atacar. Havia muitos traficantes lá no alto? Muitos. Todos combalidos, assustados, mas querendo ir para o confronto. A retomada do Alemão e da Penha foi um espetáculo midiático. Qual a importância real? Entrar no Complexo do Alemão, o grande bunker do CV, considerado impenetrável, era uma vitória emblemática, quase utópica. Só foi possível com auxílio da Marinha e do Exército. O que as UPPs trouxeram para o Rio de Janeiro? Autoestima. O morador da favela passou a ser menos discriminado. E tem uma reconquista pessoal, de a pessoa ter acessos a créditos que antes não tinha. O favelado começa a ser um cidadão. O poder público hoje entra nas favelas, através da coleta de lixo, dos serviços da Light... Voltando a Marcos Pereira, como foi o final da novela? Quando muda a gestão da Decod, ele vai preso. Com os mesmos casos, sem entrar nada novo. O que você sentiu quando o viu preso? Eu estava na Espanha, soube por telefone, de madrugada. Parecia que eu tinha tomado uma caixa de Red Bull. Vou te falar: eu chorei. Liguei para o Rogério emocionado. Mas eu sabia que a guerra ia tomar uma proporção maior. Sou místico, meu número é o sete, e ele foi preso no dia 7 de maio de 2013. E aí começam os ataques ao AfroReggae? Dia 26 de maio, nove dias depois. Na corrida que organizamos no Complexo do Alemão houve tiro pra caralho. Nego atirando pro alto durante o evento. Era o começo das represálias. E depois incendiaram uma das sedes da ONG. Eu estava com o meu pai no hospital. O telefone tocou e me falaram que os traficantes queriam que a gente deixasse a favela. Corri para a sede e meu telefone toca de novo: meu pai tinha morrido. Não pude chorar, estava numa reunião difícil. Quando acabou, chorei pra caralho. Você não cogitou fechar as sedes do Alemão e da Penha? Não. As pessoas pediram pra fechar, dizendo que iam morrer. Liguei pro Fábio Barbosa, presidente do Grupo Abril, e pedi pra ele fazer alguma coisa na [revista] Veja. Tínhamos que usar as nossas armas. Saiu na Veja. Depois dei uma coletiva, Jornal Nacional, todo mundo. Vocês fecharam por um tempo a sede do Alemão, não? Durante a visita do papa, o que já estava programado. Depois reabrimos. Houve tiros de novo. Atacaram a Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, fuzilaram lá. E, quanto mais eles batiam, mais eu revidava, falando na imprensa. Você chegou a ser procurado por representantes do tráfico? Sim, queriam negociar, queriam que eu tirasse a queixa contra o pastor. Falei: “Não, nem fodendo”. Quando percebeu que a guerra não era mais contra o pastor, e sim contra Marcinho VP e Beira-Mar? No ano passado. Mas o Beira-Mar não tem nada contra mim. O filho dele trabalhou no AfroReggae. Encontrei a esposa dele em trabalhos que faço em presídio e ela me tratou bem. Ele foi levado de bucha nessa história. Como é estar na posição de um ameaçado de morte? Não me sinto assim, mas sei que estou. Minha vida mudou? Mudou. Hoje tenho um esquema de segurança em torno de mim, bancado pelo banco Santander. O governo do estado também disponibiliza unidades da PM para manter guarda na porta das sedes do AfroReggae. E eu ando com escolta da Core. Para mim, hoje, ir ao cinema é complicado. Tudo é complicado. Sua vida ficou mais restrita? Bastante. Não posso fazer uma caminhada. Como vou caminhar com um monte de cara com fuzil atrás de mim? Quando minha mulher teve contrações, não pude correr para a maternidade. Tive que esperar a chegada da escolta. Muito estranho. Você nunca pode sair sem a escolta? Não. Ninguém nunca tinha dito não pro narcotráfico antes. Fui a primeira pessoa talvez na história a dizer que não ia seguir ordem deles. Ou eu fecho o AfroReggae ou vão me matar? Como acatar uma parada dessa? Quem me conhece sabe que a minha atitude só podia ser essa. É o meu jeito. Você teme pela família? Não falo disso. Como nasceu a campanha “A pacificação é nossa, o AfroReggae é nosso, deixem o Rio em Paz”? Resolvi juntar pessoas bacanas, de vários segmentos, para um movimento de valorização do AfroReggae, da pacificação. São 54 nomes. Luciano Huck, Cissa Guimarães, Fábio Barbosa, Ricardo Guimarães, André Skaf, Márcia Florêncio, Junior Perim, Cacá Diegues, Hélio de la Peña... Uma coisa com a cara do AfroReggae, uma galera. Quais os resultados da campanha até agora? O Fluminense entrou em campo com a faixa da campanha. O Corinthians meteu a hashtag #forçaafroreggae na camisa. Aí o Vasco foi além, entrou com a faixa e com a hashtag. O Rappa gravou um vídeo, postou. Aí veio o Concerto pela Paz, para comemorar os 20 anos do AfroReggae e pela pacificação, Teatro Municipal lotado. Agora já tem planejado um grande evento de meditação. A gente tá criando um conceito de que todo mundo foi atingido por aqueles tiros. Conseguimos 121 milhões de acessos, uma adesão do caralho. Todo morador do Rio reconhece os benefícios da política de pacificação. Mas há críticas: ditadura policial nas comunidades, repressão contra os jovens, nenhum investimento social... O que acha dessas críticas? Concordo. Mas essa mesma juventude que está reivindicando nunca criticou o tráfico, que fez uma ditadura 10 mil vezes pior do que a dos policiais. Hoje, só de poderem se manifestar, seja contra a polícia ou contra o governo, já é um caminho melhor. Mas não dá para o capitão ou o major de uma unidade pacificada ser o gestor daquela comunidade e substituir o líder comunitário. Não dá. Qual o caminho? O certo seria fazer uma composição, um tripé. O homem que cuida da segurança pública, que é o capitão ou o major, o líder comunitário e alguém da Secretaria de Governo fazerem uma gestão conjunta. Dizer que está tudo bem é mentira. Tem muitos problemas. Mas tem como melhorar. É um programa que tem que ser adaptado, é muito novo. Agora, uma coisa é certa: só polícia não resolve. Tinha que ser uma gestão tripla. É só uma questão de ajustes no programa, então? A UPP, a pacificação, é a melhor coisa que aconteceu no Rio de Janeiro nos últimos tempos. Ter um programa de governo na área de segurança é do caralho. Bater na UPP hoje, enfraquecer a UPP, é retrocesso. Mudou também o perfil do tráfico no Rio? Uma vez você disse que só encontrava bandido doido para largar o crime. Continua todo mundo doido pra sair. O fato ocorrido com o AfroReggae foi sinal de fraqueza. Se o tráfico estivesse forte, eu já teria morrido. Nesse momento, temos que dar apoio à política de pacificação. Quem quer o bem do Rio de Janeiro tem que querer que certas políticas avancem e a pacificação é uma delas. Desde que começou a pacificar, são menos 100 mil balas que a polícia gasta. Isso pode significar menos 100 mil pessoas mortas. No momento há muitas manifestações no Rio contra o governador Sérgio Cabral, denúncias de corrupção no governo, de mal uso do dinheiro público... Você o apoia? O Sérgio foi foda. Ele me disse: “Irmão, se você quiser sair do Brasil, eu não gostaria, mas eu vou respeitar a sua decisão. Mas, se você ficar, nós vamos te dar toda proteção”. Gosto muito dele, acho que fez bem pro estado onde eu moro. Denúncias? Realmente tem várias denúncias que não se comprovaram ainda. Se for comprovado, ele tem que perder o mandato. Se ele for bandido, como qualquer bandido, tem que ir preso. Até que provem o contrário, vocês são parceiros. Estou sabendo que um deputado ligado ao pastor Marcos vai me denunciar por lavagem de dinheiro do narcotráfico. E aí? Denúncia não é prova. Repito: eu gosto muito do Sérgio. É uma pessoa que eu passei a admirar. Mas você sabe que declarar amor ao Sérgio Cabral hoje é polêmico. Eu graças a Deus tenho essa independência. Sábado tive o prazer de twittar três coisas. 1: Tenho muito orgulho da minha parceria com as organizações Globo. 2: Estou muito feliz com as novas parcerias com a editora Abril. E 3: Eu acredito no Pablo Capilé. Você conhece bem o Capilé? Adoro, sou fã. Postei uma foto minha com ele. Fiz isso porque eu acho que o garoto merece. Se eu hoje tivesse 20 anos, eu ficaria um tempo na Casa do Fora do Eixo. O Pablo é foda. Eu falo o que eu penso. Eu não jogo para a plateia, entendeu? José Junior esteve nas Páginas Negras da Trip #142. Vai lá http://goo.gl/EedeKL
Adentramos por ruazinhas estreitas, ladeadas de jardins sem grades. Na garagem está um policial do Bope, que, nas horas vagas, faz a segurança da família.
Reynaldo Gianecchini
Christian Gaul
Reynaldo Gianecchini
Numa tarde fria de sábado, num dos dias de garoa que marcaram a chegada da primavera a São Paulo, Reynaldo Gianecchini analisa as fotos que o fotógrafo acabou de fazer dele para esta entrevista. Ele veste T-shirt, jeans e tênis – conjunto que diz ser uma espécie de uniforme, pautado pelo desejo de conforto: “Só mudam as cores, às vezes pego uma camiseta com uma imagem mais chamativa, um acessório mais colorido”.
Eu não o via pessoalmente há muitos anos. A última vez fora muito antes de sua descida ao inferno, levado por um câncer fortíssimo, um linfoma que ele enfrentou diante dos olhos do mundo. Despertou tanta compaixão no país que, mal saiu da recuperação, levantou-se direto para a posição da imagem publicitária mais poderosa do Brasil, numa apertada disputa com Luciano Huck.
Logo ao chegar, chama a atenção o cabelo grisalho. Ele conta que os fios brancos vieram com mais força após a quimioterapia. Mas ele já os tinha, apesar de escondê-los, desde os 25 anos. “Puxei do meu pai, que tinha uma grande mecha branca, linda”, conta. Parou de tingir no início deste ano, a pedido da atriz Giovana Antonelli, que preferia vê-lo assim no papel de seu par romântico no longa-metragem SOS – Mulheres ao mar, ainda sem previsão de lançamento.
As filmagens do longa acabaram em julho, e Reynaldo achou que a “grisalhice” também deveria fazer parte da construção do personagem Paulo, protagonista de A toca do coelho, peça em cartaz em São Paulo até o final deste ano, na qual ele contracena com Maria Fernanda Cândido. O texto do norte-americano David Lindsay-Abaire, vencedor de um Pulitzer, conta a história de um casal que tenta superar uma perda terrível, cada um de um lado, cada um a seu modo. “Paulo é um homem que traz as marcas do tempo”, conta o ator, que diz se divertir com o envelhecimento, ao contrário do resto do mundo.
"Essa parte [do câncer] de ficar sem cabelo foi muito fácil"
A nova cor de cabelo harmoniza com um momento interior mais maduro, que se manifesta, por exemplo, no sexo. “Com a idade, ele fica muito mais interessante. É quando você se conhece, quando já deixou de lado toda a ansiedade própria dos 20 e tantos anos, que te impede de curtir o presente, o aqui, o agora”, diz. No amor, porém, desde que separou de Marília Gabriela, vive uma longa fase de relações fortuitas. É o que sua agenda frenética permite, já que trabalha de domingo a domingo há mais de um ano. Previsão de férias? Setembro do ano que vem, com sorte.
Apesar de muito trabalho, diz que está zen. Depois de épocas mais “jacas”, busca trilhar o caminho do meio. Nos próximos dias começa a gravação de uma nova novela global. Somando aos comerciais que faz, Gianecchini estará mais nas televisões brasileiras do que o plim-plim da Rede Globo. Pergunto se ele pensa em parar: “O limite é o momento em que eu me cansar. Já aconteceu, quando parei por um ano e fui estudar em Los Angeles. Se acontecer de novo, paro e tiro um sabático”.
Enquanto esse dia não chega, ele segue a rotina, buscando controlar bem sua imagem. É por isso que faz questão de visualizar no computador as fotos feitas por Christian Gaul. No lusco-fusco do estúdio, ele parece um narciso admirando a própria beleza. Mas, diferentemente do herói da mitologia greco-romana, ele se dá por satisfeito. “Do caralho, gente. Adorei.”
Me surpreendi com o seu cabelo grisalho quando cheguei. É uma coisa genética. Meu pai também tinha, desde novo. Comecei a fazer publicidade, depois novela e sempre fazia muito garotão, né? Nunca fiz papel de pai. Estreei na televisão com 28 anos, mas parecia que eu tinha 20. Demorei muito tempo para assumir esse cabelo branco. Deixei agora pra um personagem. Na capa do meu livro, ele já estava meio branco. Eu tinha acabado de sair do meu tratamento e a gente queria uma imagem crua minha, que não fosse de vaidade. O livro é isto, um close meu, com a cara que eu acordei e com aquele cabelo sem pintar. Todo mundo adorou. E eu tô adorando agora também. Fora que eu estou impressionado com a manifestação das mulheres, não tinha noção que elas gostavam tanto. Dou três passos na rua e sempre vem uma falar: “Deixa assim, pelo amor de Deus! Está a coisa mais linda”. Acho que passa uma coisa de segurança pra mulher, né?
Como foi se ver sem pelos e sem cabelo durante o tratamento contra o câncer? Resolvi encarar muito de frente a doença, com tudo o que ela tinha. Quis olhar e falar: “OK, sei exatamente o que eu tenho, vou lidar com isso e não vou tentar maquiar”. Encarei o desafio de deixar as preocupações do dia a dia de lado e focar numa outra coisa. Ou seja, a vaidade não era importante. De repente, eu não tinha que fazer mais nada. Só cuidar de mim. E foi muito legal. Na verdade, essa parte de ficar sem cabelo foi muito fácil. Foi legal até. Lembro que me olhei no espelho e falei: “Caramba! Ficou condizente com a minha condição, pareço um guerreiro mesmo”.
Você raspou antes de eles caírem então? Não queria esperar tudo cair. Acho meio deprimente. Eu tenho uma coisa que, com esse processo, ficou muito evidente para mim: encaro a vida como ela é. Descobri há um tempo que se a gente faz planos às vezes se frustra. Então foi isso: “Vamos viver o que tem para viver, minha realidade é essa”. Foi muito natural, eu comecei a gostar até. Também acho bacana essa coisa de brincar com as mil caras que a gente tem. Por isso que eu acho a idade muito legal. Tudo vai mudando. E não é questão de rugas, não. É questão de maturidade.
Os papéis de garotão estão passando? É natural, né? Óbvio que eu não posso mais fazer um adolescente. No teatro até dá. Ele é mais metafórico. Mas tem uns papéis muito bonitos nessa idade dos 40 aos 50 anos. É uma idade muito bonita para o homem. Ele ainda mostra um vigor, ainda é jovem, mas já tem uma maturidade. Tem um conforto de estar na própria pele.
Você se sente numa fase de maior vigor, maior desejo sexual, aos 40? Não sei te dizer se maior. Mas com mais qualidade com certeza. O sexo com a idade é muito mais interessante. É quando você se conhece, quando já deixou de lado toda a ansiedade própria dos 20 e tantos anos, que te impede de curtir o presente, o aqui, o agora. Sexo é muito isso, você estar presente ali. Tirar da cabeça todos os pensamentos, as ansiedades. Viver aquilo respeitando o que o seu corpo quer. Há uma diferença gritante entre transar com a menininha de 20 anos e transar com a mulher de 40.
"Há uma diferença gritante entre transar com a menininha de 20 anos e transar com a mulher de 40"
A qualidade (do sexo com as mais velhas) é melhor? Muito melhor! Principalmente quando a mulher se conhece, o que é difícil pra elas, acho. Pro homem é mais fácil. A própria estrutura da gente, a mecânica toda. A gente se excita mais fácil, goza mais fácil.
Você é hoje uma das figuras mais presentes na televisão. Acha que há um limite para tanta exposição? Eu quero sempre passar uma coisa legal para as pessoas. Não gosto de estar associado com coisas que não me interessam. Fazer publicidade é uma fonte muito legal de grana, mas eu poderia estar fazendo muito mais do que estou. Não quero ganhar todo o dinheiro do mundo. Eu gosto e faço questão de estar associado a empresas que eu considero importantes, que têm uma proposta legal. E eu também tenho preocupação com essa superexposição que a gente tem. Não gosto, por exemplo, de ficar emendando um trabalho no outro na televisão. Sempre procuro intercalar televisão com teatro, com cinema, pra dar um tempo. Acho que vai chegar uma hora que eu vou querer dar um tempão enorme, tirar um ano sabático.
Isso seria quando? Você visualiza esse momento já? Visualizo. Não está tão longe. Quando voltei do meu tratamento, estava com muita vontade de trabalhar, comecei a receber muitas propostas que me interessaram e fui aceitando. Estou trabalhando direto, de domingo a domingo, há um ano. Férias, só em setembro do ano que vem. Tem sido muito legal, mas eu tenho muito evidente isto: vou precisar parar uma hora, fazer nada.
Você diz que escolhe bem as campanhas que faz. Mas e a que você fez para o Pintos Shopping, que acabou virando piada nacional na época? Por incrível que pareça, nunca imaginei que aquilo pudesse dar uma piada. Era uma publicidade para um empreendimento de um império familiar do Piauí, uma rede de shoppings. Fui pesquisar, vi que era uma coisa muito séria, um empreendimento familiar com anos de credibilidade. E eu nunca associei pintos com pênis. Até mesmo porque em Birigui cresci indo na Casa Pintão. Casa Pintão era uma casa em que eu comprava material de escola, essas coisas. Nunca associei com uma piroca enorme. Mas, quando começou a piada, fui o primeiro a rir. Porque realmente o slogan dava uma coisa de duplo sentido que jamais eles pensaram. Mas eu acho que tem uma hora que passou um pouco do ponto, foi pra um outro nível de achincalhação. As pessoas começam a querer exercitar toda sua raiva, sua inveja.
Como você se defendeu? A melhor forma de reagir é fazer como sempre faço: não dar margem para a coisa se propagar. Ou seja, não gosto de ficar falando, me justificando. Sou muito alvo de fofocas, de histórias que não vivi. Fico quietinho vendo aquilo andar sozinho. Seria horrível eu ter que ficar rebatendo tudo que falam a meu respeito. A melhor forma de me defender é não falar nada. Porque quando é uma mentira, uma coisa inconsistente, sai assim [estala os dedos].
Evidentemente entra muito dinheiro das publicidades que você faz. Você cuida de tudo sozinho? Alguém faz isso pra mim, mas eu cuido. Gosto de ter o controle de tudo que faço, não gosto de ficar alienado. Tenho agora uma instituição, que estou fazendo no interior, que talvez seja o projeto mais bonito da minha vida. A única coisa que me faz hoje em dia sonhar a longo prazo é essa instituição, que é para cuidar de crianças, adolescentes e idosos no interior. Então essa questão do dinheiro, da publicidade, de estar associado a empresas, tem muito o foco nisso, sabe? Quero me doar.
Como se chama a instituição? É o nome do meu pai: Centro de Apoio Professor Reynaldo Gianecchini, em Birigui, interior de São Paulo. Está super na fase inicial, mas já foi aprovada por lei, já estou captando pra poder construir.
Tem a ver com o câncer? Não. Tem a ver com educação, com cultura, com apoio psicológico. Suprir as carências das pessoas no interior de informação, de cuidados, de carinho. Tem a ver com isso.
Christian Gaul
Reynaldo Gianecchini
É verdade que você já deu um fora na Carla Bruni? Não é que eu não quis. Na verdade, não desenvolvi. Se fosse hoje, que eu sou muito mais esperto, teria jogado com aquilo [risos]. Mas é que naquela época eu morava no exterior e era uma fase da minha vida que eu estava muito zen. Só meditava, não saía de casa, não ia a festas. Achava todo aquele ambiente que eu trabalhava chato demais. Trabalhava e voltava pra casa. Queria ler meu livro. Era uma fase muito radical da minha vida, e eu tive várias fases radicais. Essa foi para um polo. Depois teve outra pro outro polo, da bagunça total. Tudo isso para descobrir o equilíbrio. Se ela tivesse aparecido um pouco depois, talvez eu tivesse desenvolvido. Ela realmente é uma das mulheres mais lindas que já vi.
Então se a Carla Bruni de repente aparecesse aqui você reagiria diferente? Ah, com certeza. E essa é a beleza da vida! Ela te dá oportunidades de rever as coisas. Dá umas voltas muito loucas.
Quando termina o trabalho você sai pra se divertir, se expõe ao mundo real das ruas? Eu gosto muito de gente, mas deixo claro que o meu espaço existe e precisa ser preservado. A minha intimidade eu abro pra quem eu quero. Jamais poderia ficar num castelo, ser Michael Jackson, sabe? Não ia ser feliz. Moro no Rio e em São Paulo, que são duas cidades que me permitem ir ao supermercado. Eu gosto do assédio, tenho o maior prazer em falar com as pessoas, principalmente depois do meu tratamento. Mas eu não gosto quando vira invasivo, da pessoa querer te tocar, te puxar, querer um espaço que você não pode dar.
E isso não acontece no Rio e em São Paulo? Acontece às vezes, mas fora do eixo Rio-São Paulo acontece mais. Sempre procuro me posicionar de uma forma muito educada. Teve um episódio agora que a imprensa deturpou muito. Estava no Rock in Rio e tirei muitas, muitas fotos mesmo. Embora aquele fosse um tempo pra eu me divertir, eu fico meio constrangido de falar não. Mas teve um momento que ficou insuportável. Mesmo se eu ficasse a madrugada inteira tirando fotos, não ia atender todo mundo. Teve uma hora que eu tive que falar: “Moça, desculpa, não vai dar pra fazer a foto com você porque é muita gente”. Saiu na imprensa que eu não quis fazer foto. Não falaram das outras 500 que eu fiz.
Você malha todos os dias? Umas quatro vezes por semana.
Qual é o seu exercício? Pela praticidade, acabou virando entrar numa academia, porque é o único lugar que você não precisa se programar muito. Mas eu sempre fui do esporte, gostava de jogar basquete, vôlei. O único esporte que eu faço hoje é natação, tirando a malhação.
Pessoalmente você é bem forte, malhado. É, mas eu não sou radical, não. Não sou super-rato de academia, que precisa estar sempre trincado, com o abdômen definidíssimo. É muito mais uma questão de tônus, sinto necessidade de sentir que meu corpo está pronto para o trabalho, sabe? É muito mais do que uma questão estética, embora eu odeie quando estou me sentindo gordinho, quando meu abdômen, que é nosso centro de força, está frouxo. Odeio!
O ciclista Lance Armstrong conta que chegou um momento no tratamento do câncer em que ele falou: “Se tiver mais uma quimio, eu não faço”, porque ele tinha muita indisposição. Como foi com você? Olha, meu tratamento foi muito intenso, muito agressivo, porque minha doença foi muito agressiva e muito intensa. Tem alguns cânceres que não são tão agressivos, por isso demoram anos para serem tratados. O meu era tudo ou nada. Chegou com tudo e tinha que ir embora com tudo. Tomei um veneno brabo, foi barra- pesada! Mas eu me dei... Acho que é uma questão de cabeça. Dentro de mim eu falava: “Quero ver se vai me derrubar essa porra dessa quimio, essa porra dessa doença!”. Tinha dia que era foda. Mas no outro dia eu estava melhor. Fiz uma dieta ayurvédica, super recomendo, que fala que o alimento é o remédio, e que me ajudou muito.
Você mantém essa dieta? Algumas coisas sim, mas eu estava bem radical naquela época. Alimentação é uma coisa de que eu cuido muito.
Você tem alguma religião? Não. Fui criado no catolicismo. Mas a minha religião é o meu contato com o superior, com a força do Universo. Eu acho a religião às vezes muito perigosa. São tantos tabus... Cheguei a uma conclusão: é só o amor que faz você se entender e se conectar. Então eu sinto que é muito mais forte um gesto de amor, ter o amor no coração, do que palavras, orações. Muita gente fica presa na ideia de “não faça isso, faça aquilo” da religião e esquece de dar carinho pras pessoas. Tem gente que chega pra mim e fala: “Você não conhece Jesus!”. Principalmente os evangélicos. Eu falo: “Por que você acha que tem mais acesso que eu? Por que você é bitolado?”.
"Sou muito alvo de fofocas, de histórias que não vivi. Fico quietinho vendo aquilo andar sozinho"
Recentemente, manifestações varreram o país. Você acompanha essa discussão política? Quando elas começaram, eu estava filmando na Europa. A minha geração não viu isso. E foi muito louco de ver. Dá uma certa apreensão porque você não sabe direito aonde vai dar tudo aquilo, né? A gente foi acompanhando tudo, com vontade de chegar no Brasil e ver o que a gente podia fazer. A gente conseguiu mostrar que tem uma galera muito atenta hoje em dia. Não dá pra ficar fazendo qualquer merda, não dá mais pra ficar esse circo todo. A galera está indignada, e eu acho isso muito positivo. Vamos ver no que vai dar, porque essas manifestações começaram a ficar meio desagradáveis quando se misturaram à violência. Virou bagunça.
Você se formou em direito. Já era ator quando fez o curso? Na verdade, essa coisa de ator eu tenho desde criança. Era uma criança que vivia no palco, fazia da minha vida um palco. Essas manifestações são muito fortes, você tem que prestar atenção. E eu não prestei. Sou de Birigui, né? Lá você não acha que um dia pode trabalhar na televisão, no cinema. É muito distante essa realidade. Mas lá na frente eu vi que era minha vocação mesmo. A faculdade me fez entender que eu era uma pessoa que não queria lidar o tempo todo com a razão.
Você nunca achou que seria advogado? No segundo ano da faculdade eu já sabia que não, mas sou muito caxias e quis completar o curso.
Você já brigou de porrada? Já! É uma historia clássica da minha cidade. Eu era muito certinho, sempre fui. Até me incomodava com isso. Era muito educado, muito responsável. Me achava superdesinteressante. As garotas da escola gostavam do bad boy, do playboyzinho que tinha uma motinho. E tinha um menino que era o bad boy total. Eu tinha muito medo dele, porque ele era “o” cara da cidade. Ele estudava na minha classe e eu lembro que ele falava e todo mundo abaixava a cabeça. Um dia ele chegou apontando o dedo pra mim e eu falei: “Não! Comigo você não vai folgar!”. Ele falou: “Ah, então me espera na saída!”. Foi marcado o duelo. E foi uma violência, porque eu fui pra cima do menino e quebrei a cara dele. Todo mundo da cidade veio me cumprimentar como uma forma de libertação. Eu que sou da paz precisei dessa violência pra me posicionar.
Um ex-funcionário seu foi à mídia dizendo que vocês tinham tido uma relação amorosa e que você o teria presenteado com um apartamento. Você o processou. No que deu isso? Ainda está em juízo. É uma história que não tem nada a ver com caso de amor, é uma história megaprofissional. Contratei essa pessoa pra trabalhar pra mim, e eu estou cobrando na Justiça o que eu acho que está errado. Tenho tudo isso documentado, e eu estou querendo que seja provado. Que ele me traga a prestação de contas. É uma coisa que virou, com a imprensa muito leviana, um caso de amor, até porque houve essa ameaça de uma certa forma. Ele não tinha argumento e houve uma sugestão de que ele poderia me ameaçar por aí, pela minha imagem. Eu realmente não posso falar mais sobre o caso. A imprensa não falou com ele, né? Então vão lá, falem com ele.
"Com quem eu durmo não faz a menor diferença pra ninguém!"
Há uma tendência na mídia e na opinião popular de insinuar que astros jovens, talentosos e bonitos são gays. Isso acontece com você. Incomoda? Não. Porque tomo essa posição de não deixar afetar minha vida. O que importa é a sua verdade. Acho também que esse tema da sexualidade é tratado muito levianamente. Eu realmente evito falar sobre isso, porque qualquer coisa que a gente fale é usada contra a gente. Me recuso a ter que ficar explicando o que se passa na minha vida, em todos os sentidos. Com quem eu durmo? Com quem eu durmo não faz a menor diferença pra ninguém! Sempre fui uma pessoa megadiscreta com a minha mulher. Não sou de ficar beijando em público. É uma opção minha. Hoje tem muitas histórias de pessoas vivendo outras realidades. Eu respeito pra caramba todo mundo. Quer viver a três? Eu agora vou fazer uma novela do Manoel Carlos em que viverei um triângulo amoroso. Sou casado com a Giovanna [Antonelli] , e ela se apaixona por uma mulher. Vai ser um reflexo do que está acontecendo por aí, a possibilidade de você viver a três, abrir o seu casamento. Se você está vivendo a sua vida de um jeito que você achou que vai funcionar, acho maravilhoso. Eu sou um cara que gosta de olhar tudo e escolher o que quer. As pessoas confundem muito isso. Se você é um cara sem preconceitos quer dizer que você faz tudo? Não. Não ter preconceito significa você poder escolher o que você quer, sem julgamento das pessoas com opção diferente da sua. Sou a favor dessa liberdade. Acho muito pequenas essas discussões. Outro dia o Sheik [jogador do Corinthians] deu um selinho no Isaac [Azar, chef de cozinha e empresário], um cara meu amigo, pai de família. A Hebe Camargo fez isso a vida inteira. Aí virou uma discussão se ele era gay ou não, foi a torcida lá com faixas brigar. O que tem a ver o trabalho dele em campo com quem ele leva pra cama? É uma invasão. É um país que finge ser livre, mas que acho muito pouco livre.
Quanto você cuida da sua imagem? Muito! Mas cuidar da minha imagem não é querer aparentar alguma coisa que eu não sou só pra poder ganhar dinheiro, por exemplo. Mostrar a imagem é mostrar quem você é. Não posso pegar e sair bêbado por aí, até em respeito às vovozinhas que me acham um cara legal, sabe? Eu não sou só um bom moço, embora eu queira ser muito legal. Eu quero que todo dia minhas relações sejam melhores, que eu possa melhorar como ser humano. Mas óbvio que também dou minhas derrapadas.
Você bebe? Socialmente. Não vou sair por aí bêbado, aloprando, beijando. Tem coisas que você faz dentro da sua intimidade. E acho que faz parte você dar uma piradinha, mas tem que ter um limite na exposição.
Como é a sua relação com as outras drogas? Na minha adolescência tinha muito medo de me aproximar das drogas. Como tenho essa coisa dos excessos, sou um cara muito intenso, falei: “Cara, tenho muito medo de gostar e de entrar num caminho sem volta”. Então a droga sempre me deu rejeição. Até meus 20 e poucos anos eu nunca tinha experimentado nada. Não que eu beba pra caramba, mas eu gosto de beber, é a minha droga. Gosto de tomar uma taça de vinho, um uísque, uma vodca, pra tirar um pouco o sargentão que a gente é. Mas eu também não caio no chão, não sou de perder a memória. Tenho uma resistência física muito grande.
Mas já teve seus porres... Claro. Mas eu tenho uma resistência tão grande que sempre fui aquele que leva os bêbados pra casa, mesmo tendo bebido mais do que todo mundo, desde adolescente. Lá pelos 20 e tantos anos fui experimentar maconha, que é uma coisa pela qual eu acho que fazem muito barulho por nada. Pra mim não fez grandes coisas. Hoje em dia eu tenho o maior prazer em dizer que realmente não é a minha onda. Acho muito baixo-astral, sem ser careta. Não sou careta com nada na vida.
Tem planos de casar novamente? Fui muito bem casado. Meu casamento foi uma coisa linda. Eu gosto muito de estar casado. Mas confesso que, putz, tenho falta de coragem de encarar um casamento hoje em dia. Acho muito bonito casar, ter filhos, mas acho que você tem que saber onde você está entrando. Estar solteiro, disponível pra vida, é muito legal também. “Você não quer ter um filho?” Quero! Mas tem que aparecer a pessoa especial, não faria uma produção independente.
Tem alguma coisa que poucas pessoas sabem sobre você? Eu odeio fazer foto, desde criança nunca gostei. Minha mãe não tem foto minha porque eu não deixava tirar. Agora estou começando a brincar com esse negócio do Instagram. Posto fotos de trabalhos meu, tipo “olha que imagem bacana”, mas nunca é foto de mim. Se for, tem a ver com o contexto que eu quero mostrar, uma situação engraçada. O ator é tímido quando ele tira a máscara, ele não quer se expor.
Paulo Miklos
Luiz Maximiliano Talvez seja uma questão de hábito. Treinado por mais de três décadas a pensar e falar sobre todas as coisas pelo ponto de vista coletivo dos Titãs, Paulo Miklos responde sempre com um “nós” no sujeito da frase – mesmo quando as perguntas são sobre ele sozinho. Foi assim que ele fez durante quase metade da conversa que você lê a seguir. “É, né? Eu não tinha percebido que fazia isso.” Não é que sua vida, inclusive a profissional, seja feita de poucas individualidades. Muito pelo contrário. À parte dos Titãs, o músico desenvolveu e desenvolve várias outras facetas que não a do vocalista, tecladista, por vezes saxofonista e atualmente também guitarrista dos Titãs. A mais recente de todas elas pode ser vista desde maio no programa Paulo Miklos show, na Mix TV. Ele é o âncora do talk show semanal (vai ao ar às terças-feiras, às 22h30), que concilia números musicais (alheios) com entrevistas. Inspirado nos apresentadores ingleses (mas também tendo na memória os brasileiríssimos Silvio Santos e Flávio Cavalcanti), faz questão de estar sempre de terno, para que fique claro para o público quem é o entrevistador e quem é o entrevistado. Sua carreira de ator segue firme. A estreia, que o relevou como um grande performer dramático (e cômico), aconteceu em 2001, quando estrelou o longa O invasor, do cineasta Beto Brant. Miklos viveu justamente o personagem do título. Para desenvolver os trejeitos necessários para o papel, teve aulas particulares com o rapper Sabotage (1973-2003), com quem também contracenou no filme. Outros bons trabalhos vieram a seguir, em papéis um pouco menores, mas nem por isso mais apáticos. Fez bons pequenos trabalhos em Boleiros 2 (2006), de Ugo Giorgetti, depois em Estômago (2007), de Marcos Jorge. Mas foi É proibido fumar (2007), dirigido pela paulista Ana Muylaert, que deu a Miklos o seu primeiro protagonista de fato, Max – par romântico da personagem vivida por Glória Pires. Ali, ele deu vida a um personagem um tanto mais próximo de sua realidade: um cantor de boteco. O próprio Miklos, na era pré-Titãs, chegou a tocar em bares para defender o dinheiro do mês. A partir da carreira bem-sucedida no cinema, Miklos pegou gosto pela nova profissão. E logo começou a atuar também na televisão. Fez de tudo. Tanto pequeníssimas participações em séries, como Os normais (2002) e Sessão de terapia (2013), até papéis fixos em novelas, como Bang bang (2006). Também sozinho, Miklos produziu dois álbuns. “Minha extensa obra solo”, ele brinca, com os CDs nas mãos. O primeiro é de 1994 e tem apenas seu nome como título. Todas as letras e músicas foram compostas por ele, que também assina a produção. O segundo veio em 2001: Vou ser feliz e já volto. Na capa, o músico aparece com os cabelos amarelos em uma sessão de fotos feita em Nova York, onde havia passado uma temporada que descreve como “muito louca”, regada a excessos de álcool e drogas. Hoje, ele diz, a loucura está completamente controlada. Mas foram necessários anos de terapia, remédios e muitos afetos para sobreviver àquele período. Miklos vive na cidade em que nasceu, São Paulo. Atualmente, divide uma casa no bairro do Sumaré com a única filha, Manoela, e o cão, Nestor, um parrudo bernese. Em julho, ficou viúvo. Rachel Salem, com quem estava casado desde 1982, mãe de Manoela, perdeu a batalha contra um câncer de pulmão. Pouco mais de um ano antes, a mãe de Miklos havia morrido da mesma doença. A tristeza fez com que ele se recolhesse em casa. Não havia dado nenhuma entrevista sobre o assunto – até esta aqui. Só saiu do casulo para trabalhar. O trabalho – sozinho e com os Titãs, que agora são quatro – é que segura um pouco da barra, a mais pesada por que passou em seus 54 anos de vida. Ele afirma que, agora, a banda está de volta a um equilíbrio. O lançamento mais recente foi um pacote de CD e DVD com o registro da turnê de 30 anos do álbum Cabeça dinossauro, o maior clássico titânico. Atualmente, eles correm com um show de canções inéditas. Testam ao vivo o repertório que vai dar origem ao próximo disco de estúdio, com previsão de chegar às lojas no primeiro semestre do ano que vem. Os Titãs são seu assunto preferido. Pelo menos é isso que dizem suas feições quando ele volta e volta e volta a falar sobre a banda. Com os outros companheiros, Paulo Miklos pode voltar ao conforto de ser “nós”. Embora tenha tanta estrada corrida por conta própria, parece ficar bem mais confortável quando tem os amigos para dividir as coisas. Você, claro, está num momento delicado. Mas me parece estar bem, com os dois pés bem fincados no chão. O processo foi muito duro. Eu não tive nem o tempo do luto da minha mãe [morta há um ano e meio]. Essa coisa de você tratar publicamente uma coisa pessoal sua tem dois lados. Essa intimidade que a gente pode ter com o público, de falar sobre nossa experiência pessoal, pode servir de exemplo. Por mais que eu tenha ficado receoso de falar desses assuntos imediatamente, ao mesmo tempo abracei a atividade freneticamente. Não dá para ficar jogado no canto e deixar a coisa te tomar. Nos últimos três meses fui ao Rock in Rio, participei de um projeto que corre o Brasil cantando Beatles, cantei com o João Donato músicas do Vinicius, tô fechando uma participação em um filme, fazendo um curta no fim de semana... Tô em movimento, entendeu? E as coisas estão bacanas: o programa de TV, a banda vivendo um momento especial, quase de renascimento. Estamos com material novo, prontos pra arriscar e fazer um show inédito. Essas coisas estão me dando força e segurando a onda. Na verdade, o que sempre foi o alicerce foi o trabalho, a paixão por ele. Às vezes, nem os que estão mais próximos de mim sabem o que eu tô passando. Daí tem um lado de atuar, de estar na atividade correspondendo. É isso o que eu tomo pra mim pra poder estar bacana, pra poder receber alguém. Entrevistar, ser entrevistado. Entrar no palco, dar uma coisa além do que você costuma dar. O show dá pra isso. A música que a gente faz é impactante, descarregada. Então eu faço terapia duas, três vezes por semana pelo Brasil, no palco. Tem uma rede de afeto e de carinho na qual estão as pessoas com quem eu trabalho – não só os Titãs, amigos da vida toda, mas também o pessoal da TV, gente muito bacana. Quando e como vocês descobriram o câncer da Rachel? Descobrimos no final do ano passado, a gente estava em férias. O câncer ficava num lugar difícil, mais alto, então a gente tirou um pulmão. Mas depois pegou o outro. Ela teve uma infecção, e foi muito rápido. Uma coisa muito chocante. Você quer se matar? Às vezes, sim. Às vezes você pega o avião, vem uma turbulência e você pensa: “Se cair, tudo bem”. Você sabe que você está instável de uma maneira bastante estranha em relação ao que é o significado da vida. As coisas entram em solvência, é uma dor fodida. Mudemos para outro assunto, mais ameno: música. Quando começou sua relação com ela? Criança, meus pais me deram um piano e depois minha avó me deu uma flauta doce. Ficou mais séria quando eu tinha 17 anos, mais ou menos. Participei de um festival da TV Tupi em 1979 que tinha o Arrigo Barnabé, o Walter Franco cantando “Canalha”. Entrei como arranjador da banda com a camiseta de jogar bola na escola, magrelo e com um saxofone emprestado, achando que tava abafando. Quando apareci no ensaio, a orquestra da TV Tupi, que só tinha fera, olhou pra mim sem entender nada. Eu escrevi tudo direitinho, apesar de não saber direito o que estava fazendo. Então você estudou música mesmo? Estudei. Sempre fui muito interessado em música. Por fim acabei entrando na ECA [Escola de Comunicação e Artes da USP]. Cheguei das férias no Nordeste super-relaxado, de cabelão, bronzeado e fui fazer a prova. Toquei “Syrinx”, uma peça de flauta solo de Debussy. No meio a banca interrompeu, o que é normal, e soltou: “Tá bom, obrigado. Você parece um fauno mesmo” [risos]. Gostava da faculdade? Era só gente de conservatório, orientais que estudam violino desde os 6 anos de idade. Rapidamente percebi que... Não era seu lugar? Isso. Aí eu ia na fitoteca e fazia um download geral. Uma pirataria analógica. Pois é. Na época era fita e eu pegava tudo. Conheci a música contemporânea e pirei. Música concreta do Luciano Berio, só caras legais, coisas geniais. Passei lá um ano copiando as coisas e depois não voltei. “Eu faço terapia duas, três vezes por semana pelo Brasil, no palco” Mas os Titãs começaram antes disso, certo? A gente foi se encontrando na escola, se agregando. A gente viu os Novos Baianos tocar no pátio! O Alceu Valença e o Gil também! Depois, quando soubemos da existência da Blitz, pensamos: “Por que a gente não monta uma banda dessa?”. Inicialmente a gente fez uma fitinha, que era a fita das musas. Na verdade, era só para cantar as meninas. Cantadinhas gravadas. Cantadinhas gravadas e reunidas numa fitinha que a gente promoveu e fez meio independente, colando uma a uma com um caderninho. Isso foi o começo dos Titãs. Eram todos os amigos juntos num primeiro momento, um coletivo gigante. Era um bonde, na verdade [risos]. Tinha, por exemplo, o Nuno Ramos, que depois foi ser artista plástico. Ele também era do colégio Equipe? O que tinha na água dessa escola para reunir tantos talentos? É difícil explicar. Eu fui pro Equipe porque ouvi dizer que lá tinha um festival de música. Nem imaginava que depois ia ter o privilégio de presenciar o que presenciei naquele pátio, graças ao Serginho Groisman [outro aluno do Equipe] e à programação constante que ele trouxe. Todos os Titãs eram do Equipe? A maioria. O Tony Belloto não, mas ele era amigo do Marcelo [Fromer] e do Branco [Mello]. O Branco tava numa classe antes de mim e o Arnaldo [Antunes] e o [Sérgio] Britto, um ano na frente. E como funcionava a dinâmica dentro desse bonde musical? A gente já tinha claro que o barato era a coisa criativa, aquilo que a gente podia criar juntos, e defender essa criação sem preconceitos. A gente tinha toda essa carga de informação, adorava o Arrigo [Barnabé], o Itamar [Assumpção], essa vanguarda paulista. Eu queria fazer umas frases dodecafônicas! [Risos]. A gente tinha uma proximidade também com a poesia concreta do Augusto [de Campos], o Arnaldo [Antunes] é um cara que estudou as coisas. A gente tinha esse conhecimento profundo da música popular brasileira trombada com toda música internacional. A gente era new wave, mas curtia Alceu Valença. O Nasi, do alto do seu conhecimento de causa, dizia: “Eu sempre disse que a gente era do underground, do movimento do rock’n’roll, do Madame Satã. Vocês eram o último grito do tropicalismo”. Luiz Maximiliano Engraçado isso. É! Eu achava que era da turma, mas talvez não tanto [risos]. A gente sempre gostou do The Clash, por exemplo, que é uma banda que introduziu a música caribenha, o reggae, misturados com um punk rock mais encardido, mais sectário. O Cabeça dinossauro, por exemplo, tem reggae, funk, musica eletrônica, punk. Tem tudo, e foi feito em 86! Ele é uma mistura desse DNA louco. A gente era uma coisa caleidoscópica. “Sonífera ilha” parece um ska da fronteira do Paraguai [risos]. Num grupo tão numeroso você certamente teve que abrir mão de muita coisa. Como era isso? Não era problema. Desde o começo teve uma dinâmica de aproveitar o que era melhor, a melhor ideia. Sempre houve um consenso, um bom senso. Quando o Arnaldo, o Nando e o Charles saíram, você pensou em sair também? Acho que foi uma questão que se colocou pra todos nesses momentos. Quando o Arnaldo quis sair, a primeira coisa que a gente pensou foi: “Pô, mas peraí, pode sair?” [risos]. Essa coisa meio sonho de criança, inocente, acabou. E aí? E aí a gente continuou porque a gente tinha um puta disco, o Titanomaquia, na mão. Foi a mesma coisa nos momentos mais trágicos, como quando perdemos o Marcelo [o guitarrista morreu atropelado por um motoqueiro em 2001]. A gente estava na véspera de viajar pra gravar o A melhor banda de todos os tempos da última semana, com todos os arranjos feitos junto com o Marcelo. De novo a gente se viu na mesma situação: “O que fazer agora? Vamos parar. Não, não vamos parar, vamos fazer esse disco que ele fez com a gente. Vamos registrar isso”. A gente entrou em estúdio e foi um momento de união, em que você está ali pelo outro. Foi isso que moveu a gente naquele momento. Hoje é o patrimônio que a gente tem. O último trabalho dos Titãs revisita o Cabeça dinossauro, talvez o disco mais cultuado de vocês, lançado há quase 30 anos. O que mudou no Brasil nesse tempo? A gente está tocando músicas como “Desordem”, por exemplo, que é uma coisa que fala de distúrbio de rua e pergunta: “Quem quer manter a ordem?/ Quem quer criar desordem?”. Essas coisas estão muito dúbias atualmente. Os agentes parecem que trocam de lado. Quem está provocando, quem está policiando e censurando? A quem interessa botar um carimbo de “isso não pode, isso não é democrático”? O que é democrático? O povo na rua, a provocação, em que níveis são aceitáveis? Tem toda essa discussão, mas não tem banho de sangue nas ruas, como a gente vê na Primavera Árabe. Então considero que a gente melhorou muito. Mas o que suscitou todo esse movimento na sua opinião? O gigante adormecido andou acordando por aí [risos]. Quantas coisas estavam na rua, quantas reivindicações, quanta coisa criativa estava acontecendo... Essa coisa dá pra ocupar as páginas dos jornais e dos telejornais. Eu acho que a gente melhorou muito porque estamos tocando nesses assuntos, experimentando os limites e questionando uma situação que é insuportável, mas que continua a mesma bandalheira de sempre. Você falou das manifestações “violentas” e dos “baderneiros”. O que você pensa deles? Merecem estar entre aspas mesmo? Eu acho que são práticas que estão aí. Eu não vou incitar a violência [risos]. Acho que tem uma responsabilidade nisso, mas acho também que tem uma coisa da mídia de fazer esse papel da patrulha. Eu compreendo que de repente tem que fazer isso mesmo [quebrar tudo] pra chamar a atenção, porque a plaquinha que eu estou levando ninguém se interessa em fotografar. Mas, se eu jogar essa placa dentro da agência bancária, vão me fotografar imediatamente. E o seu programa, o Paulo Miklos show? A ida para a TV tem a ver com uma sensação de que tudo que você tem a dizer não cabe mais só na música? O gostoso do programa é que ele tem esse espectro, vai do talk show à música. O que mais gosto é o contato com as pessoas, deixar fluir a conversa. A ideia do programa foi sua? Não. Convidaram você? Me convidaram pra fazer um programa que inicialmente se chamava Dose tripla. Éramos três – eu, Gustavo Braun e Marina Santa Helena – na bancada, e eu era uma espécie de mediador. Achei bárbaro porque foi uma plataforma de estudo de dinâmica e também foi o primeiro momento em que eu percebi o quanto aquilo poderia me trazer de informação nova. Foi como se fosse um aprendizado até chegar o momento de receber um convite pra fazer um programa só meu. "Às vezes você pega o avião, vem uma turbulência e você pensa: se cair, tudo bem" Tem muito a ver com a sua experiência de ator também, né? Tem, mas também tem a ver com a minha relação com a música mesmo. O que sempre me atraiu, desde essa época, é a interpretação, é estar cantando, é o palco, o encontro com o público. Isso sempre me fascinou. O Beto me convidou pra fazer O invasor depois de um show nosso. Eu achei que ele estava tomado por aquela coisa de camarim depois de show: “Não, Beto, agora você está um pouco alterado. O show é muito legal, eu sei, mas eu vou dar um tempo pra você pensar melhor”. Mas, no dia seguinte, ele ligou: “Eu tava falando sério mesmo. O teu personagem é o personagem título do filme”. O rapper Sabotage ajudou nas filmagens. Como é que foi essa relação? Primeiro eu já vampirizei o cara, peguei o jeito dele. Pensei: “Ele é uma inspiração bacana pro personagem que eu vou criar”. Agora, foi no texto que ele trouxe a contribuição mais fantástica. Ele tinha aquela coisa típica dos poetas, uma coleção de gírias que ele ouviu e registrou do pessoal falando nas ruas, quase um código cifrado. Eu entrava em cena e o Alexandre Borges e o Marco Ricca ficavam de boca aberta, porque não era nenhuma deixa que estava no texto. Tem novos papéis à vista? Vou participar de um curta no fim de semana. E tem o filme do Jeferson De, um cineasta paulista, chamado Celulares. A gente vai filmar agora no começo do ano. Não sei se já disse isso, mas você tende a responder as perguntas usando “a gente” em vez de “eu”. Culpa dos 30 anos de banda? Ah, sim. Mas ainda não estou falando eu e Paulo Miklos, tipo o Edson e o Pelé [risos]. Mas você acha que por conta da sua trajetória de vida acabou tendo uma visão mais plural do mundo? Eu não tenho grande barato no exercício artístico solitário. Acredito muito na coisa colaborativa. Na minha formação eu acredito nessa coisa da banda, do grupo. Eu acho que é assim que funcionam as coisas. E pensando agora na MPB, nos grandes nomes, nas grandes divas… Eu não sou dessa cultura. Não me bate. Quanto mais eu vou para uma coisa pessoal, autorreferente, autobiográfica, parece que cada vez mais vai perdendo o sentido pra mim. Engraçado. Nesse sentido, você é o anti-Nando Reis, que é o cara mais autobiográfico dos Titãs. Exato. Ele e todos os meus ídolos. O Caetano... São todas músicas que canto no chuveiro depois. Acho fantástico. Mas meu primeiro movimento é o contrário disso. Sinto que a coisa vai se perdendo se eu mergulhar demais nessa autorreferência. É comum dizerem que, com o passar dos anos, a pessoa amadurece, se individualiza. Por isso que banda de rock é coisa de moleque [risos]. Acho que isso acontece. Quando a gente estourou eu era ofrontman. “Como a gente vai fazer para mostrar pras pessoas que a gente é uma banda tão complexa?” Essa sempre foi a questão, porque tem quatro, cinco cantores. Cada um tem sua personalidade. A luta foi para as pessoas perceberem as individualidades. Não só o jeitão de cada um, mas o traço, a personalidade, o que cada um compôs, qual foi a contribuição de cada um. Seu segundo disco tem um título engraçado: Vou ser feliz e já volto. Tem uma história, que você deve ter ouvido mil vezes, de que “pô, o Titãs deve estar chato porque o Paulo foi ser feliz solo e já volta”. Mas não era só o Titãs, não. Era a vida mesmo. "O Nasi dizia: A gente era do underground do rock'n'roll, vocês eram o último grito do tropicalismo" A vida? Conta aí. É um disco escapista. É justamente a brincadeira da tabuleta “Volto já”. Era um pouco isso, de estar muito imerso na coisa do tédio, do cotidiano, da mesmice. Eu talvez estivesse no auge do momento de estar escapando de tudo e usando todos os artifícios possíveis para estar vivendo uma realidade paralela, explorando as portas da percepção escancaradas. É, você estava loirão, loucão. Fiz tudo isso. Cheguei em NY para masterizar o disco com o Dudu Marote, meu produtor. Comprei uma camisa e resolvi entrar num cabeleireiro no Soho. Aí estava a Björk do meu lado. Sentei, olhei e pensei: “Estou no lugar certo!”. Sei que a mulher fez uma coisa e eu fiquei com cabelo cenoura. Fui pro hotel, olhei e falei: “Acho que não deu certo”. Não era isso que eu queria. Queria ficar como o Billy Idol, aquela coisa platinada. Você falou de “explorar as portas da percepção”. Imagino que esteja se referindo a drogas, mas eu achava que o Paulo Miklos doidão foi o dos anos 80... Eu costumava brincar com isso. A mais longa adolescência de que se tem notícia é a minha [risos]. Isso foi por volta de 2001. Foi por alguma coisa que bateu essa adolescência tardia? Acho que foi o abuso de substâncias. Acho que tem um momento que ou você sai ou não sai. Ou recai. Ou fica tentando sair, patinando. Eu saí, mas demorou. Essa época foi o auge da adolescência, por assim dizer? Talvez não tenha sido o auge, mas era um momento em que isso ainda estava ecoando. Inclusive porque esse disco foi feito logo antes da minha participação em O invasor, minha primeira participação no cinema. Foi uma coisa que mexeu muito comigo. Você tem que estar muito atento. É o avesso da experiência de estar vivendo a música. Na música, quanto mais doidão melhor! Você já sabe como funciona, né? As pessoas esperam isso! Também tem uma expectativa em relação a você ser aquele clichê ambulante do roqueiro doidão. Na verdade, a experiência com drogas, de excesso, está no sofrimento. Na depressão. Muito mais nisso do que em qualquer coisa. Mas no começo elas deram uma iluminação? Sim. É uma prática social também, assim como o álcool. O álcool foi a primeira coisa que eu tive de me livrar para poder voltar e ter controle da minha vida. Ele é o grande vilão para uma pessoa como eu, que se percebe com um problema de abuso e limite. Hoje eu não bebo. Antes eu brincava: “Só bebo a trabalho”. E era todo santo dia. Você chegou a ter depressão mesmo, ir ao psiquiatra? Lógico. Então eu parti pras drogas lícitas, terapêuticas, que também são drogas. Até que chegou o momento que eu afastei todas. Foi ótimo. Sem remédio não dava? Com certeza não. Chegou uma hora em que eu tava tão determinado, tinha tanta consciência, que falei: “Vou lançar mão de todas as coisas que eu tiver a meu favor”. Depois, pra me livrar do cigarro, outro vilão, foi a mesma coisa. Perdi minha mãe e minha esposa com o cigarro... E eu não era pouco fumante. Fumava um maço e meio por dia! "O álcool foi a primeira coisa que eu tive de me livrar para poder voltar e ter controle da minha vida" Você resolveu parar de fumar por causa da sua mãe? Não, eu já queria parar havia algum tempo. Porque, pra cantor, tocando instrumentos de sopro e tal, é um atentado. Você se voltou para alguma religião, alguma crença nesse momento? Não acredito muito nessas coisas. Tenho muita inveja, uma inveja boa, das pessoas que acreditam, que encontram força, calma pra alma, em uma explicação que elas realmente acreditam. Mas isso não faz parte de mim. Sou misto de um casamento de católica com judeu. Fui pro candomblé, tenho essa aproximação cultural com a religiosidade, com todas elas. Acho fantástico. Biografias. Autorizadas e não autorizadas. Qual sua posição nesse bafafá? Fiquei um pouco surpreso. Tá fora de foco a conversa. Porque, se a lei é frouxa, se você não tem instrumentos pra se defender no caso de você ser realmente atacado, a gente deve focar nisso. A quem interessaria esconder os fatos, eu me pergunto. Obviamente, interessa a quem quer esconder coisas. Acho que você pode se preservar de dizer coisas da sua vida. Mas acho exagerado defender a aprovação prévia, porque sem o meu aval você não vai poder dizer nada. Aliás, depois quero ver essa entrevista, hein?!Paulo Miklos viu metade da sua banda seguir outros caminhos e, há apenas três meses, perdeu a mulher com quem foi casado por 30 anos. Mais que nunca, a solidão espreita. Mas um titã é um titã: agarrado em seu novo programa de TV e no próximo disco, ele segue em frente
Paula Lavigne
Arquivo Pessoal Grávida de Zeca Ela está no centro da polêmica das biografias, uma das mais barulhentas do ano. Antes, porém, já tinha uma história e tanto para contar: casou com Caetano Veloso aos 16, abortou na adolescência, foi atriz, é produtora de sucesso. A seguir, uma breve biografia - autorizada, diga-se - de Paula Lavigne Paula Lavigne diz que o primeiro livro que ganhou de Caetano Veloso foi Memórias de uma moça bem-comportada, de Simone de Beauvoir. “O bom comportamento seria aquele bem-visto pelos outros ou aquele que faz o ser humano se sentir livre?”, ela pergunta. E já responde: “Simone acredita na segunda opção. Eu também. O homem precisa da intimidade para se preservar do controle e da vigilância, provenientes da vida comunitária. Somente nela, manifestamos nosso verdadeiro eu”. Paula já tinha uma história e tanto, além de uma série de rompimentos, pontos de virada e recomeços, antes de se ver no centro de uma das maiores polêmicas do ano, a das biografias, justamente um embate entre liberdade de informação e direito à privacidade. Filha do advogado criminalista Arthur Lavigne e da psicanalista Irene Mafra, Paula conheceu Caetano aos 13 anos e se casou com ele aos 16, idade em que foi emancipada para abrir uma empresa em sociedade com o marido, a Uns Produções. E, nos anos seguintes, se tornou uma das empresárias mais bem-sucedidas da história do showbiz nacional. Odeio você Da música, alcançou também o cinema. A partir de Orfeu (1999), produziu uma dúzia de longas, incluindo nessa lista alguns blockbusters, como Lisbela e o prisioneiro e 2 filhos de Francisco. Já foi atriz também. Estreou na minissérie Anos Dourados, da Globo, em 1986; no mesmo ano esteve no filme Cinema falado, dirigido por Caetano; depois fez novelas de sucesso, como Vale tudo (1988). E com Explode Coração, de Gloria Perez (1995), rompeu com a carreira: não se achava boa o suficiente para que sua presença ali se justificasse. Engravidou ainda adolescente, mas abortou. Filhos vieram mais tarde: Zeca tem hoje 21 anos e Tom, 16. Nesse meio-tempo foi a musa de uma série de canções do marido. O casamento durou até 2005. E a separação a fez passar pelo pior momento da vida até então. Tornou-se dependente de remédios. Para dormir, para acordar, para esquecer. Ficou nesse vaivém por três anos, até conseguir a ajuda médica certa. Diz ter sofrido ao se ouvir biografada em quase todas as canções do álbum Cê (2006), de Caetano, composto por ele durante o período de separação. “Indiscrições de Caetano”, ela diz. É para ela, entre outras desse disco, “Odeio” (“Odeio você/ Odeio você/ Odeio você/ Odeio”). Mas, até ali, ódio era uma coisa diferente. Bem diferente da onda de ódio de que foi vítima agora, quando se tornou a presidenta do grupo Procure Saber e, por consequência, a figura central da chamada “polêmica das biografias”. “Não sou mais a mesma pessoa que eu era quando entrei nessa história”, ela disse mais de uma vez nos bastidores desta entrevista. O Procure Saber foi criado em 2013, por nomes como Caetano, Roberto Carlos, Chico Buarque, Gilberto Gil, Marisa Monte, Djavan, entre outros gigantes da MPB. Venceu a primeira batalha contra o Ecad, a entidade arrecadadora dos direitos autorais aos artistas, que agora passou a ser fiscalizada por um órgão específico e é obrigada a prestar contas da distribuição dos recursos. Já o segundo passo do grupo foi bem mais polêmico: uma tentativa de debate sobre a necessidade de autorização prévia para biografias, regra que está em vigor e que biógrafos e editores de livros tentam derrubar. Na ocasião, a presidenta do Procure Saber disse que a intenção do grupo era “apresentar uma alternativa que atenda os escritores, mas não crie uma situação de exploração da obra e da vida alheias sem a remuneração correspondente e sem que a vida privada e a intimidade do biografado sejam violados”. Começaram os ataques. Paula e os outros integrantes foram chamados de censores por parte da imprensa e nas redes sociais. No meio do furacão, ela foi defender as ideias do grupo no programa Saia justa, do GNT. E o barulho só aumentou. Depois da repercussão do programa, Caetano defendeu a ex-mulher: “Paula foi escolhida pelos conselheiros [do Procure Saber] por causa de sua capacidade de fazer as coisas andarem. Não está ali por Arquivo Pessoal ser minha empresária ou por ter sido minha mulher. É quase apesar disso”. A capacidade da empresária de fazer as coisas andarem continua acesa. Antes da polêmica das biografias, ajudou a articular a campanha Somos Todos Amarildo (veja o vídeo produzido por ela em http://goo.gl/4l9mRM), que abriu os olhos da população para o caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido em 14 de julho aos 43 anos e, segundo investigações da polícia, torturado até a morte por PMs da UPP da Rocinha. “Igual a painho” Em outubro, Paula organizou um jantar-leilão em seu apartamento para levantar dinheiro para comprar uma casa para a família de Amarildo. Cerca de 120 pessoas estiveram no evento, que rendeu R$ 250 mil. Há poucas semanas, a empresária produziu um show no Circo Voador em prol da mesma causa, com Marisa Monte e Caetano Veloso. Paula é produtora 24 horas por dia. E isso ficou claro quando Trip a encontrou em seu apartamento na avenida Vieira Souto, de frente para o mar de Ipanema. Ela própria foi atrás da equipe que produziria as fotos, a maquiagem, o cabelo etc. Organizou os passos de cada um, os horários. “Sou mais rápida do que todo mundo, então fico aflita e acabo eu mesma resolvendo tudo.” Só parava para enrolar os cigarros (“preciso parar de fumar”) e para responder às mensagens de texto que pipocavam no celular. “Queridos, vamos resolver logo essas fotos? Estou igual a Painho [Caetano], achando um saco esse negócio de fotografia e querendo começar logo a entrevista. Nem parece coisa de mulher, né? Mas ando assim agora: gostando mais de falar. Quem diria?” Você foi o judas? Todos fomos os judas. Eu botei a cara, louca e impulsiva do jeito que eu sou, porque eu sabia que a gente não queria o mal, nem censura. Fui tentando falar e a coisa foi incontrolável. O trauma foi grande, não vou ser mais tão espontânea e tão sincera como eu era. Fico falando aqui e cada palavra penso: “Meu Deus, será que estou falando alguma palavra que alguém vai poder destacar e me criar problema?”. Ouvi muito: “Como a Paula Lavigne pode falar de privacidade se ela saiu na Caras?”. A intimidade é minha! Se eu acho que estou num momento bom pra sair na Caras, eu vou sair. Mas, quando um paparazzo corre atrás de mim, ele decide sobre a minha privacidade. Não somos BBBs. "Levantamos uma questão pra discutir. Mas, quando há um judas pra bater, não há discussão" Alguém escreveu que isso de proteger a privacidade é falácia: quando o artista expõe a intimidade em momentos escolhidos por ele, na verdade só quer controlar o que é mostrado. Discordo. Uma pessoa querer mostrar seu trabalho ou mostrar que está bem, fazer um retrato, não significa que ela quer falar tudo da sua vida. E ela não é obrigada. Tem coisas na intimidade que você não quer que saibam. Você pode ter uma doença, uma paranoia, enfim, namoros, coisas que você não quer que saibam. Se você é uma pessoa pública, notória, todo mundo tem direito de saber tudo? A Patricia Pillar teve câncer, graças a Deus ficou boa e resolveu falar. Foi uma decisão dela. Se ela estivesse doente e alguém tivesse ido lá fuçar, seria, sim, uma invasão à privacidade dela. Mas isso é notícia. Mas isso vira base de pesquisa para uma biografia. Sai uma nota errada no jornal, você desmente e a pessoa escreve: “Apesar de fulano negar, foi visto não sei onde”. Então a biografia vai pontuar o quê? Se o biógrafo passa a ser um detetive, ele vai ter responsabilidade de checar fatos? E onde vai checar? Na imprensa. Há 25 anos uma nota na Folha de S.Paulo dizia que eu estava caindo de bêbada numa festa. Nunca tomei porre. Falei pro repórter: “Não bebo”. E ele: “Ah, então devia estar se comportando como tal”. Não tem jeito. Não dá pra generalizar. Claro, não estou falando de grandes biógrafos, de pessoas sérias, mas a gente tá nessa tendência da invasão da privacidade. Quando você vê, estão os caras do Pânico num guindaste pra filmar a Carolina Dieckmann. Mas Pânico não tem a ver com biografia. Calma, eu falo de um jeito confuso, vou de frente pra trás, de trás pra frente... O que a gente tentou o tempo inteiro dizer foi: se é pra mudar as regras, vamos estudar e combinar as novas regras? O Brasil perdeu a oportunidade de discutir um assunto interessante, que confronta o direito de liberdade de expressão com o direito de privacidade. A questão nunca foi autorização. Talvez seja pro Roberto Carlos. Mas, como o próprio empresário do Roberto Carlos disse quando ele saiu do Procure Saber, temos estilos diferentes. No momento em que o Roberto Carlos veio com advogado criminalista, lobista, que sabe lidar com questões de Brasília, a gente estranhou. Não era o tom da gente. Tanto que a fala do Caetano, depois da briga com Roberto Carlos, foi praticamente “eu quero que libere”. Querer que libere, eu acho que todo mundo quer. O que a gente queria conversar era quando um direito acaba e começa o outro. E como esses dois direitos andam juntos. Fernando Young Mas pra esses impasses existe o Judiciário. Em primeiro lugar, no Brasil, Justiça é coisa de rico. Pra processar alguém tem que ter dinheiro pra pagar um bom advogado. O dano moral no Brasil é imoral, cheio de ideias loucas e jurisprudências que levam sempre a desvalorizar o ser humano. É a história do Amarildo: o cara foi torturado, morto, esquartejado, sumiram com o corpo e a família teve direito a um salário mínimo como indenização! A gente vive num país injusto, e o Código Civil é uma colcha de retalhos. Ainda acho que sua questão é mais sobre a cultura da celebridade, o paparazzo, do que biografias propriamente. Bom, nunca fizeram biografia minha, mas vejo pessoas muito magoadas. Muitas vezes as histórias são contadas a partir de uma nota no jornal. E hoje parece que o legal é descobrir os segredos das pessoas. Só vale o que é podre, o que é ruim. Não é um direito da família do [Paulo] Leminski não querer revelar que o irmão dele se suicidou? A família é censora? Fui ver o Saia justa depois, e eu parecia uma louca, desesperada. Porque cheguei ali e já estava essa coisa de “censores, são censores”. Botaram esse carimbo na cara da gente. Você se arrepende de ter ido ao Saia justa? Cara, não me arrependo. Se você assiste lá no YouTube, vê que eu tô falando a mesma coisa de sempre. De uma maneira mais irritada, claro, porque eu não conseguia falar. Já tinha uma predisposição a um linchamento. Você já chegou com essa sensação? Quando eu cheguei, a Maria Ribeiro e a Mônica [Martelli] já tinham dito que a Barbara Gancia tinha brigado com elas, tava uma confusão. A Maria veio aqui em casa me chamar pra ir. E então falei com a Mari [Mariana Koehler], diretora do programa. Mas, um dia antes de ir ao ar, a Astrid [Fontenelle] escreveu que eu tinha me convidado. Nunca pedi pra ir a programa nenhum na vida! Tive que ligar pra Dani [Daniela Mignani], diretora do GNT, e falar: “Pô, vocês que convidaram”. A Astrid tirou o post do Twitter, mas não se retratou. Bom, quando cheguei lá tava um clima ruim. A Barbara Gancia nervosa, a Maria nervosa. Aí a Barbara diz que hoje em dia não existe privacidade. Como não? Quis dar um exemplo de que existe, sim, e falei: “Se eu perguntar o nome da sua namorada, ela não vai gostar”. A Marcela [Bastos, namorada de Barbara Gancia] estava no estúdio, levantou e saiu. Criei uma situação real de invasão de privacidade. Você foi chamada de homofóbica. Sim! O Carlos Tufvesson foi sensacional, entrou no Twitter me defendendo com propriedade. Sem contar meus amigos, que deram gargalhadas, né? Eu, homofóbica? Eu queria discutir. Quando deu o break, a Maria disse: “Barbara, a gente corta isso”. Aí fiquei irritada e falei: “Não!”. A Barbara já tinha escrito um artigo horroroso, dizendo que eu era oportunista, gananciosa. Mas tô acostumada, tem que nos esculhambar pra aparecer. É o que o Lobão faz, põe no Twitter: “Por que Paula Lavigne é tão filha da puta?”. Uma energia muito ruim pra cima de mim. Você já não tinha sentido isso na vida? Dessa maneira, não. Acho que nunca estive tão exposta. A agressividade foi muito grande, a violência, os xingamentos na internet. E pra lidar com isso? Você não se desestrutura? Claro que eu me desestruturo. Chamei a Mônica Bergamo de encalhada! Você acha que acho isso legal? Você acha que acho legal derrubar portão? O que houve de fato na história do portão? (Em 2005, Paula avançou com o carro no portão do prédio onde Caetano Veloso morava, após a separação.) Eu que fazia as malas do Caetano. Ele ia sair em turnê e estava em estúdio gravando a trilha de 2 filhos de Francisco. Eu era produtora, fui lá no apart-hotel, de nossa propriedade, onde ele estava morando. Ele não estava lá dentro com mulher nenhuma, inventaram uma história que nunca existiu. Aí veio o segurança: “A senhora não pode entrar”. “Por que eu não posso entrar?” “Porque não tem autorização do Caetano.” “Mas eu não preciso de autorização do Caetano, vim fazer a mala dele.” “A senhora não tem mais o direito de entrar.” “Eu vou entrar.” Aí ele mexeu no terno e me mostrou a arma. Acelerei o carro e derrubei o portão. Aí chamaram a polícia. A gerente chamou. A Gloria Perez, que tem apartamento lá, viu a confusão e ligou pro meu pai. Quando a polícia chegou, meu pai falou: “Mas por que ela foi barrada? Cadê a escritura do apartamento?”. E a escritura era no nome do quê? Da nossa empresa, que abri com 16 anos. Eu não podia ser impedida de entrar na minha propriedade. Por isso nem fui à delegacia. Muita gente fala: “O pai da Paula deu dinheiro”. Não, não deu. Não acho bacana ter feito isso. Preferia ter dito “dane-se a mala do Caetano”. Mas estava num estado de nervos, me senti agredida e reagi mal. E a briga com a Mônica Bergamo, como foi? Aquilo começou antes. Feito uma garotinha boba, a Monica começou a fazer bullying por causa de um erro de português que eu cometi. E eu, com meu temperamentozinho, comecei a ficar irritada. Aí dei um retuíte de uma coisa que vi, sem ver que o perfil dizia “Globo mente”. Aí a Monica Bergamo bota lá “Empresária de Caetano tuíta ‘Globo mente’”. Ah, não, espera aí! Chamei ela de encalhada e ela fez a festa. A vida vira um inferno, é porrada de todo lado. Ligaram pra minha personal trainer, pra ex-namorado em Londres, pro Marcelo [Marins, também ex-namorado], que agora namora a Carolina Ferraz. Ligaram pra Dedé [Gadelha, ex-mulher de Caetano] pra perguntar de brigas nossas, que nunca existiram. Ela é a mãe do Moreno, uma pessoa queridíssima, direitíssima, que amo. Falou: “Me separei do Caetano tem 30 anos! O que vocês querem saber?”. Queriam achar uns podres, mas não tenho nada a esconder. Com a matéria da Veja Rio, todo mundo riu. Esse perfil da Veja foi até positivo pra sua imagem, não? Você aparece como uma mulher engraçada, fala de aborto... Não sou a favor de gravidez na adolescência, é um erro. Acho que aborto é direito da mulher. E sou ateia. Quando digo isso, as pessoas reagem mal. Parece que você está dizendo que não tem sensibilidade, não tem amor ao próximo. Gente, desculpa, eu não consigo imaginar alminha, vida depois da morte. Não tô falando mal de quem tem fé, tenho inveja de quem tem fé, religiosidade, espiritualidade. Mas não consigo. Então, aos 16 anos achava que se eu tivesse um filho ia estragar a minha vida, a do Caetano, tudo que a gente planejava. Mas é crime, então minha mãe me levou escondida pra fazer um aborto. Depois tive filhos maravilhosos. Se alma existe no feto, me desculpe, sou uma pecadora e vou pro inferno, paciência. Mas não acho que cometi crime. É muito sério ter um filho. Você não vê problema em falar de experiências tão íntimas? Não tô abrindo minha intimidade simplesmente pra dizer: “Uhu, fiz um aborto!”. Gostaria que outras meninas que quisessem fazer aborto Arquivo Pessoal Na festa de 15 anos tivessem essa opção, fossem pra um bom hospital, com segurança. Somos obrigadas a ter filho porque a Igreja quer? Eu tenho que reagir a isso. Eu abro minha intimidade pra dizer coisas que eu penso e defendo. Numa boa, pode num país como o Brasil a maconha ser proibida? Qual a diferença de uma maconha bem usada pra um Rivotril, que é o remédio mais tomado no país? Como é sua experiência com drogas? Não lido bem com drogas, tive uma educação de ter cuidado com isso. Todo mundo brinca que casei com Caetano porque nos anos 80 todo mundo cheirava e fumava, e eu e ele não fazíamos nada, então a gente sobrava nas festas. Anos depois, fiquei workaholic, agoniada, sem dormir dois, três dias. Fui a um psiquiatra, tomei remédios, e o que aconteceu? Virei dependente química. Queria dormir, me apagava. Queria acordar, me acordava. Tomei de Tylenol a Rivotril, Dormonid, Frontal... Não pensava em outra coisa. Mas como começou? Teve um fato? Teve um fato. Eu fui no médico porque não conseguia dormir. Então era remédio pra relaxar e dormir. Foi no tempo da separação? Exatamente. A barra foi muito pesada, muito dolorida. Parecia que eu tava perdendo um braço, uma perna. Comecei a tomar remédios e teve uma hora que não pensava em mais nada. Qualquer dor, eu tomava. E alivia? Claro que remédio alivia. A pessoa também se vicia em cocaína porque dá bem-estar, se sente inteligente, né? Álcool relaxa... Mas qualquer coisa que você fizer em excesso faz mal. Minha dependência foi forte, tive que tratar, ficar internada. Depois de muitas tentativas dei a sorte de pegar uma médica que deu certo comigo, que me ouvia e tentava estudar minha química. Essa coisa da neurociência é uma das que mais me interessam no momento. Um remédio que faz bem a uma pessoa pode não fazer a outra. Você é meio cobaia. Aí fui num médico na Califórnia e a receita dele era dois copos de vinho e um tipo de sativa [maconha] sei lá das quantas, que no Brasil eu nunca pude comprar, porque é ilegal, obviamente. Era uso medicinal. Você tem um vaporizer lá, que é usado em hospital e tudo. Mas não sou médica, claro que deve ter coisas da maconha que fazem mal. Queria falar da sua ligação com artistas como Criolo, Emicida. As pessoas falam: “A Paula é esperta, né? O Caetano daqui a pouco se aposenta e ela está com os caras”. Essa história é simples. A gente está passando por uma transformação no mercado e esses artistas me fascinam. Principalmente Criolo e Emicida, com sua estrutura de produção. Eles estão fazendo um favor ao mercado, arriscando um modelo de negócios que me interessa. O Caetano virou independente pela primeira vez na vida. Depois de 52 anos de carreira, a gente tem um contrato independente: a Universal, que era dona de todos os produtos do Caetano, agora distribui a gente. Um lançamento de disco no Circo Voador custaria 30, 40, 50 mil reais nos moldes antigos. R$ 7 mil de rádio, R$ 15 mil de televisão, R$ 4 mil de lambe-lambe etc. Quando fui fazer uma reunião sobre isso com a turma do Circo pra lançar o Abraçaço, riram da minha cara. “Paula, vamos abrir a bilheteria amanhã, faltando três meses pro show, você vai botar nas redes sociais do Caetano, nós vamos botar nas redes do Circo e não vai ser gasto um tostão.” A gente lotou as três noites. E não gastou nada com promoção. Hoje você usa muito as redes sociais, né? A gente começou atrasado, temos poucos seguidores em relação a outras pessoas. Mas é maravilhoso, a gente fala com o público certo. Não precisei sujar a cidade com lambe-lambes, não precisei gastar mídia de televisão, que todo mundo está vendo sem estar interessado no que você está vendendo. Você fala com o público-alvo sem pagar nada. Claro, agora o Facebook já está cobrando, está nascendo um mercado. Mas quem mais sabe disso? A turma do Criolo, do Emicida, porque está com isso em prática. Eu aprendo com eles. "A barra foi muito pesada [na separação]. Parecia que eu tava perdendo um braço, uma perna" Numa das colunas, o Caetano diz que você é uma pessoa “que faz a coisa andar”. Quando essa ficha caiu na sua vida? A ficha nunca esteve emperrada. Fui emancipada com 16 anos para abrir uma empresa, é uma vocação minha. A Gal Costa canta, o Milton Nascimento nasceu com aquela voz de Deus, eu nasci com isso. Morri de rir daquela biografia minha na Piauí. Porque é quase aquilo mesmo, eu organizava a fila do xixi. Sempre tive a noção de que a verdadeira liberdade é a financeira. Na infância inteira eu brinquei de fazer comércio. Meu pai acabava de ler as revistas e eu ia pro lado da banca perguntar se alguém queria comprar pela metade do preço. Isso acaba sendo um talento. É um talento, e é necessário para os artistas. O Caetano é incapaz de coisas práticas nesse sentido. Com 15 anos, meu pai me mandou pra estudar em Cambridge. Aí o Caetano foi a Londres e eu fugi da escola para encontrar ele. A gente saiu para jantar e ele tinha esquecido o dinheiro. Paguei com minha mesada. Ele é assim. Não tem celular. Ele fala: “Pra que vou ter celular? Vou ter sempre alguém do lado, peço emprestado”. Ligar para ele, ele não quer que liguem, mas ligar para os outros ele quer! Ele diz: “Empresta seu celular um minutinho?”. Quem não vai querer emprestar? Por que você e Caetano, tão diferentes, deram certo? A gente se completava, e se completa até hoje. O casamento acabou, mas continuamos sócios. Nossa empresa é dona deste apartamento, de tudo que a gente tem, é uma sociedade na vida. Não quis abrir mão disso, porque dá certo. Tudo passa por você? Artístico, não. Ele compõe uma música, eu não aprovo. Claro. Mas tem uma coisa assim: “Ah, a Paula odeia a fase Cê”? Eu odeio a fase Cê porque esse é um disco sobre a nossa separação. É a indiscrição de ser o Caetano. Tudo bem, depois vira arte. Mas quando você está vivendo aquilo é foda. Quando você ouve “Não me arrependo de você”, não acha linda? Não é que eu não achasse linda. Quem me mostrou essa música foi o Tom, e foi superemocionante ver meu filho cantando. Mas, quando você está vivendo aquilo, é muito forte. Você se sente despida no meio da rua. Eu acho Cê um grande disco, mas é muito eu ali. Foi bem difícil. Hoje não, já tem tempo, já se estabilizou uma nova relação. Não gosto de “Branquinha” [do disco Estrangeiro, feita para ela]. Gosto de “Odeio você”. O Jorge Mautner diz que é uma das músicas de amor mais lindas do mundo. Mas de cara você não gostou. Quando eu ouvi eu quase morri. De ódio? Não. De dor. De dor de o Caetano ter sentido aquilo. A música é muito boa. Mas sofri, só isso. Tem o “mulher indigesta”, que ele fez agora, “o ciúme é o estrume do amor” (versos de “Funk melódico”, do disco Abraçaço). Não é pra mim. Pra quem é? Não sei! Já perguntei: “Você tem certeza de que não é pra mim?”. E Caetano respondeu impaciente: “Não é pra você”. E Caetano não mente. “Um sonho”, também do Cê, era pra Luana Piovani? Ah, isso eu não sei. Não me mete nas fofocas de seu Caetano, não. Eu já era separada dele, não é mais minha jurisprudência. Você renega sua fase atriz, né? Rolou reprise de Vale tudo, Anos dourados, coisas nas quais você atuou. Você acha mesmo que era péssima? Não justificava eu estar ali. Fui fazer teatro porque eu era uma criança hiperativa, falei disso na entrevista à Tpm [Paula esteve nas Páginas Vermelhas da Tpm, em maio de 2003]. Fiz Tablado e, como sempre digo, entrei no lugar certo pela porta errada. Aos 15 anos eu fiz o teste pra minissérie Anos dourados e até virou folclore. Quando o assunto é cachê, sempre botam um executivo pra constranger você. Falei uma quantia tal e o cara rebateu dizendo que era absurda, que eu estava fora da realidade porque era namorada do Caetano. Aí eu falei: “Então você chame a mulher do Wando, porque a mulher do Caetano vale mais”. O Wando ficou chateado. Não era pra ficar? Eu estava falando de uma questão de mercado, não queria desqualificar o Wando. De jeito nenhum queria ofender. Era uma piada. Mas você estava perguntando o que mesmo? O negócio de ser atriz. Então, aí eu fiz Anos dourados, tinha salário, FGTS, ganhava até o peru de Natal do doutor Roberto [Marinho]. Continuei um tempo, mesmo sabendo que eu não queria. A novela da Gloria Perez [Explode coração, de 1995] foi a última que eu fiz. Eu estava grávida do Tom e foi ali que eu tive certeza de que eu queria me dedicar aos negócios, que eu não tinha vocação para as pessoas ficarem mandando: “Anda pra cá, anda pra lá”. Aí eu já tinha entrado de sócia da Natasha, veio a trilha de O quatrilho, depois vendemos 1 milhão de discos com a trilha de Lisbela, virei empresária e não precisava mais do salário da Globo. E como você começou a produzir cinema? Primeiro a Natasha começou a distribuir a Disney, fazer essa produção local que a Disney faz, de chamar produtores do lugar, dublar os filmes. E comecei a gostar de produzir trilha de cinema. Cacá Diegues chamou o Caetano para fazer a trilha de Tieta e eu produzi, vendemos discos pra caramba. O Caetano é muito bom de encomenda. Falei: “Eu quero hit, Caetano, quero algo que pegue no Carnaval da Bahia”. E ele fez “A luz de Tieta”. Foi aí que o Cacá Diegues me chamou para produzir o Orfeu. Falei: “Não sei produzir filme”. E ele falou: “Paula, não tem nada que você não saiba fazer”. Dali eu produzi 13 longas. "Qual a diferença de uma maconha bem usada pra um Rivotril, que é o remédio mais tomado no país?" O que nos traz à questão das leis de incentivo. Antes de eu ligar o gravador, você me dizia que não vai fazer mais nada enquanto não resolver esse negócio de Lei Rouanet. Fiz parte de uma geração que conquistou as leis de incentivo, com muita propriedade, baseada em dados. Agora de repente rola uma demonização de tudo isso, da Lei Rouanet, que eu não tô entendendo. Não sou bandida, não uso Lei Rouanet pra roubar ninguém. Fiz filmes de sucesso, dei dinheiro, empreguei. A indústria cultural emprega mais que a indústria automobilística. O quanto deixa de render ao governo subsidiar automóveis? Por que só a nossa renúncia, que é mínima, é criticada? Por que quando você bota uma blusa não tem lá a plaquinha “isto aqui foi incentivado pelo governo”? Por que quando você entra num Fiat, num Chevrolet ou num Volkswagen não vem escrito “este automóvel não pagou IPI”? A gente foi pego pra cristo. A Maria Bethânia foi aprovada pra captar sei lá quanto. Aí o Ministério da Cultura te pede uma contrapartida social, e o Hermano Vianna e o Andrucha [Waddington] têm a brilhante ideia de fazer aquilo ficar livre na internet... Meu filho falava: “Mãe, o que a tia Beta fez?”. “Nada, meu filho!” A discussão era se uma artista do porte da Bethânia precisaria usar recursos públicos. Ela é uma grande artista, fala poemas como ninguém, tinha um projeto e existe uma lei que é feita pra isso. Onde está o problema? Se a Lei Rouanet não é feita pra Maria Bethânia ler poemas, pra que essa lei é feita? Pra visita do papa? Pra reformar o Palácio do Alvorada, como já foi usada? Tem que discutir? Sim, mas então vamos discutir tudo. O que não dá é dizer que somos encostados no governo. Não sou encostada em ninguém, fofo. Trabalho que nem louca. Tô cansada, sabe? Não quero mais usar isso. Não tenho mais projetos inscritos. Usar lei de incentivo hoje me dá um arrepio. E o Amarildo? Como essa história caiu em você? A gente se envolveu com a campanha do Marcelo Freixo pra prefeitura, existia essa ligação. E o Freixo, que é um cara de direitos humanos e acompanhou todo o caso, um dia chamou a gente pra ir à casa do Amarildo. Subimos de carro até determinada altura, depois a pé. Chegamos à casa, um cômodo só, em cima de um esgoto. Quando entrei na casa, onde oito pessoas moravam, tive uma visão: meu banheiro cheio de creme. Cara, como a gente é alienada. Bom, depois o Freixo me ligou e disse: “Será que você não arruma 60 pessoas, e cada uma ajuda com R$ 1.000 e a gente compra uma casa pra família do Amarildo?”. Falei: “Mole, deixa comigo”. Existe uma ridicularização das pessoas que querem ajudar. “Fulano está fazendo isso para aparecer.” Ou “lá vem a chata da Paula pedindo dinheiro”. Dane-se, tem que fazer. Conseguimos muita coisa, além do dinheiro da casa. Produzi o vídeo Somos todos Amarildo, que é importante. Mas o projeto foi atropelado por essa coisa toda das biografias. Eu virei a censora. Você ainda fica muito irritada com essa situação? Dá aquela revolta do inocente. O comportamento do inocente é sempre indignado. A gente vai sempre viver esse sentimento de indignação de ter sido tachada como censora, porque é muito distante da nossa realidade. Quatro grandes artistas na capa da Veja sendo chamados de censores? E um monte de gente repetindo essa bobagem? O Caetano fala isto: quando o Jânio de Freitas e o Pânico estão com a mesma teoria, alguma coisa tá errada. Mas qual é o lado bom disso tudo? A Glória Perez me disse: “Paula, você vai limpar as gavetas. Vai ver quem é quem”. Aquela sensação de que todo mundo gosta de você, que a gente agrada geral, é ilusão. Por isso não vou ser igual nunca mais. Vou dar uma boa limpada na vida. "Se a Lei Rouanet não é feita pra Maria Bethânia ler poemas, pra que é veita? Pra visita do papa?" Paula Lavigne esteve nas Páginas Vermelhas da Tpm #21, em maio de 2003. Vai lá: http://bit.ly/1awk9Rf
Fala que eu te escuto
Talvez a única pessoa que não considere Eduardo Coutinho o mais importante diretor de documentários do país seja ele mesmo - o que já diz muito sobre esse "paulista auto-exilado no Rio". Mais até do que ele provavelmente gostaria de revelar. Ao contrário de seus personagens, que tagarelam sobre amor, morte, desejo, família, medo, religião e dinheiro como se estivessem diante de um espelho e não de uma câmera, Coutinho mantém sua vida privada longe do público. Para alguém que escolheu filmar o outro, falar de si é quase um despudor. Chega a ser um esforço físico. No início da entrevista, a voz se recusa a sair, as palavras são mastigadas e engolidas. O único som escutado sem esforço é o da tosse insistente, cultivada em mais de 45 anos de uma dedicação ao cigarro que nem a bronquite foi outrosz de interromper. Seu corpo fica recostado na cadeira, já um pouco inclinada para trás, o mais longe possível do gravador. Como você vai ler daqui a pouco, não demora muito para Coutinho embalar na conversa e frisar, agora numa fala ligeira, que foi bem ali, no Cecip, o Centro de Criação de Imagem Popular, que as coisas recomeçaram para ele. Antes disso, é preciso contar como foi o começo. No início dos anos 60, Coutinho volta de uma temporada estudando cinema na França. Passa da teoria à prática no Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes. Com a UNE-Volante, roda o país atrás de imagens dos bolsões de pobreza. Mais para realismo socialista que Cinema Novo, o maior mérito da produção foi levar Coutinho ao lugar certo, na hora certa: o sertão da Paraíba, duas semanas após o assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira. Ninguém sabia, mas era o início de Cabra Marcado para Morrer. E, quase ao mesmo tempo, foi também o fim. Mal começam, as gravações são interrompidas pelo golpe de 64. O projeto de transformar a saga de João Pedro num longa-metragem, com a viúva Elizabeth Teixeira interpretando a si mesma, fica suspenso por 17 anos. Durante boa parte desse período, Coutinho trabalha no Globo Repórter, dirigindo alguns programas memoráveis como Theodorico, Imperador do Sertão, em 1978. Nada, porém, que o fizesse esquecer doCabra. O filme afinal é retomado três anos depois. Não como ficção, mas como documentário, o mais extraordinário já realizado no país. No auge É aqui que voltamos ao Cecip. Essa organização não-governamental, criada para fazer filmes educativos para comunidades carentes, vários deles dirigidos pelo próprio Coutinho nessa segunda entressafra, produz Santo Forte, com apoio da RioFilme. Em 1999, esse documentário sobre religiosidade, rodado na favela Vila Parque da Cidade, no Rio, chega aos cinemas. Era o tal recomeço, agora sem interrupções. Nos anos seguintes, Coutinho lançaria Babilônia 2000, Edifício Master - onde morou, no início dos anos 60 - ePeões. Todos já pela VideoFilmes, a produtora dos irmãos João e Walter Salles. Aos 72 anos, Coutinho segue no auge. Com estréia marcada para novembro, O Fim e o Princípio, que o leitor vai conhecer melhor nesta entrevista, é um de seus grandes filmes. Como sempre, o diretor escancara o processo de filmagem e se deixa flagrar em várias cenas. Essas aparições são o máximo de exposição que Eduardo Coutinho gostaria de ter, além de sua recorrente declaração genealógica: casado há 35 anos com a pernambucana Maria das Dores, pai de Pedro e Daniel, avô de Maria Eduarda. Fora isso, ameaça se fechar num humor peculiar que chega a ser folclórico, e não parece durar muito. "É meio ceninha, mesmo", concede. Gravando... Boa tarde... Você faz perguntas imbecis quando filma? Filmo em lugares terríveis, mas evito tratar os personagens como coitadinhos. Ou como heróis. A distância justa é nem olhar de baixo pra cima, nem de cima pra baixo Em Edifício Master você aparece desconcertado quando um cara pede um emprego para você, no meio da entrevista. E como você lida com o improviso na vida? Por quê? Por que as pessoas aceitam falar de si mesmas em um filme? Como você faz para não julgar seus personagens? É dar corda pro cara se enforcar? As pessoas que não são conhecidas são mais desprotegidas, minha responsabilidade com elas é muito maior Já tinha lido você contando essa história. É por isso que você não entrevista pessoas famosas, que falam muito com a mídia e têm um discurso pronto? Você tem ou já teve vontade de ser ídolo? Foram cinco filmes depois dos 65 anos, uma idade em que a maioria das pessoas pensa em parar. Quando você começou a fumar? Você voltaria a Paris em 68, não é? Em maio aconteceram as manifestações, como estavam as coisas? No fim da Primavera de Praga, quando os russos invadiram a cidade? Como você escapou de lá? Estamos terminando... queria perguntar que tipo de entrevistado você se considera?
Dessa vez, a idéia é voltar aos locais de filmagem, no interior da Paraíba e de Pernambuco, e reencontrar o elenco original, em especial Elizabeth e seus 11 filhos. Sem escorregar no melodrama ou na panfletagem, Coutinho mostra o impacto de quase duas décadas de ditadura militar naquela família. A partir de histórias da vida privada, narra a História na primeira pessoa do singular. O Cabra é premiado no Brasil, Portugal, França, Itália, Alemanha e Cuba. Mesmo assim, Coutinho passa outros 15 anos quase sem chegar aos cinemas - O Fio da Memória, de 1991, mal chega a ser distribuído.
Sacrifício...
Qual é o sacrifício, Coutinho?
Falar. Não gosto de dar entrevista... Quer uma água? Você vai gravar?
Já estou gravando. Você prefere ouvir que falar?
Evidente, né? Por isso eu filmo.
Se todo mundo fosse assim, você não teria feito nenhum filme.
Exatamente, se não tenho a palavra, não tenho filme. Se as pessoas não falam, e não falam bem, com firmeza, não tenho filme... Quando vou num debate, respondo as perguntas relevantes, até porque sei que as pessoas estão interessadas. Se for uma pergunta imbecil, não tem muito o que dizer.
Toda hora. Algumas elimino, são só um ruído. Outras, não. Neste último filme, um personagem diz que não vai estar vivo dali a um ano. Eu tinha que dizer alguma coisa, aí falei: "Precisa ter fé". O cara, que já tinha dito antes que havia rezado muito mas nunca tinha sido atendido, retruca: "Fé?!". Isso me desmoraliza, mas deixei no filme. Não por masoquismo, é que faz parte da relação de filmagem.
Não sabia o que dizer, gaguejei. Ele me desarmou inteiramente, e a todo momento isso pode acontecer. Não tenho problema em mostrar essas coisas, ainda que me desautorizem como diretor... Tem documentários em que não se ouve a voz que pergunta. Ora, as pessoas que falam sozinhas estão no hospício. Ali é uma conversa, um improviso absoluto.
Na vida, lido mal com tudo [risos]. Aliás, não falo da minha vida pessoal. Pra encerrar esse assunto, bota que sou casado com uma pernambucana, tenho dois filhos e uma neta. Põe minha neta, senão ela fica triste. Na vida lido com culpa, como a maioria das pessoas. Os filmes, filmo sem culpa. Filmo em lugares terríveis, mas evito tratar os personagens como coitadinhos. Ou como heróis. A distância justa é nem olhar de baixo pra cima, nem de cima pra baixo... Minha filmagem vive do acaso. Claro, faço escolhas e consulto minha equipe, sempre mais otimista que eu. Em geral, sou pessimista... Às vezes, na hora da filmagem a pessoa me conta uma história dez vezes melhor do que tinha contado antes, na pesquisa.
É mais ou menos a frase do Didi, "treino é treino, jogo é jogo". Claro, não é sempre assim. Teve um personagem que na pesquisa disse que era gay, e na filmagem falou que não queria tocar no assunto, porque tinha namorada. Aquele que canta Frank Sinatra, no Edifício Master, na pesquisa revelou que se naturalizou americano e lutou no Vietnã. Depois pediu que não se tocasse no assunto, porque a guerra ficou maldita e tal. Aqui estou falando porque ele está muito velho, num asilo, então acho que não faço mal contando isso agora.
Um cara chamado Pierre Bourdieu, sociólogo, fala que a necessidade essencial do ser humano é se justificar diante do mundo. E o mundo são os outros, ninguém se legitima sem os outros. O inferno são os outros, sem o outro você não existe, você não é reconhecido. Quando fala para os outros, a pessoa sente que tem nesse momento a possibilidade de se justificar. E a forma de se expressar é sempre única, singular. A pessoa quer ser reconhecida como singular.
É aquela velha história: tentar saber as razões do outro, não as minhas. Quando é um cara pobre, um excluído, é muito mais fácil. Nunca filmei pedófilo, nunca filmei quem matou dez; não conseguiria. No caso do Theodorico (latifundiário protagonista de Theodorico, Imperador do Sertão), tem o problema da empatia. Ele é um cara monstruoso, mas não excepcionalmente monstruoso, então pude me relacionar com ele. E é claro que eu sabia que, sem polemizar, ele me diria mais. Adorava quando ele falava que o homem pode ter dez mulheres porque o touro tem dez vacas, ou que a vida na roça é extraordinária, bem ao lado de uma família miserável...
Não, ele não se enforcou. Talvez tenha ganho mais prestígio; as coisas, naquela época... Dou corda para que ele diga o que pensa, sem censura. Sem forçar nada. Tem documentário, como o do Marcel Ophuls entrevistando ex-nazistas, que precisa criar armadilhas [para fazer os personagens falarem] ... Quero filmar pessoas que vão ter prazer em falar comigo, e eu em falar com elas. Não faço armadilha, odeio.
Armadilhas como se mostrar simpático a uma pessoa e depois fazer um filme contra ela?
Isso é canalhice... Conheço uma fraude extraordinária. Um cineasta polonês veio ao Brasil fazer um documentário, com a tese de que os bicheiros eram a essência do Carnaval. Ele dizia às pessoas o que elas deveriam falar! Contratou uma atriz polonesa para se passar por alguém que ficou surda por conta de um foguete que estourou perto do seu ouvido, e graças a um bicheiro teria aprendido a língua dos surdos-mudos. E ela narra o filme, com legendas... Canalhice.
As pessoas que não são conhecidas têm pouco a perder. São mais desprotegidas, minha responsabilidade com elas é muito maior. No outro extremo está o ídolo total, o Roberto Carlos, sei lá. Esses jamais vão dizer alguma coisa interessante, eles querem ser ídolos de todos, ser um denominador comum. Então, não vão me dizer nada interessante, entende?
Não tenho ilusões. Tirando exceções como Michael Moore, documentário foi, é e será marginal. As pessoas vão ao cinema para sonhar, e a ficção facilita isso com uma história inventada, com atores. Por isso Carandiru tem 4 milhões de espectadores e O Prisioneiro da Grade de Ferro, 30 mil. Isso não quer dizer que eu aceite o gueto. Adoraria que as televisões financiassem e passassem [documentários]. Acho ótimo ser reconhecido, e, quando o prêmio é em dinheiro, melhor ainda. Sei que nesse campo marginal tenho prestígio, desde Santo Forte [lançado em 1999] meus filmes vão pros cinemas.
Tô com 72 anos, tinha 65 na época em que fui fazer Santo Forte. Havia 15 anos que não lançava um filme no cinema. Tava morto, numa crise pessoal absoluta: "Minha vida tá perdida, não tenho mais o que fazer, meus filhos estão criados". Fui procurar a RioFilme, o [então diretor José Carlos] Avellar. Tava de porre nesse dia, pra falar tinha que estar um pouco de porre. Aí contei que queria fazer um filme sobre religião, numa favela, todo baseado na palavra. Só teria o Cabra, um único filme na minha vida, se tivesse morrido sem fazer Santo Forte ... [Bate três vezes na madeira.]
Aos 26 anos, por isso estou vivo. Se tivesse começado com 15... Hoje fumo menos da metade do cigarro e não trago mais. Se tragar, minha garganta não agüenta. Fumar é uma coisa que faz parte da minha vida, odeio quando querem me fazer sentir culpado por isso. A nicotina, o gesto, a fumaça... Tanto que fumar à noite é detestável, o bom é ver a fumaça. Mas os problemas estão aparecendo...
Que problemas?
Bronquite. E catarata, estou para operar. Não me preocupo em ficar numa cadeira de rodas, mas cego é difícil... A visão é o órgão essencial para mim, quando entrevisto uma pessoa tenho que olhar para ela. Para ver televisão já está pior.
Você assiste TV?
Assisto, sem muito interesse. Minha mulher vê, aí às vezes acompanho.
Você já usou ou usa alguma droga?
Já usei. Não uso mais por uma razão que não tem nada a ver com moral: tenho o maior bode com todas. Experimentei maconha e cocaína. Nunca tomei ácido, acho que não voltava! Já tive alucinações com maconha, o que é um absurdo. Alucinações violentíssimas, horrorosas. Simplesmente não dá pra mim. Uma hora tentei fazer um filme usando cocaína, na época da montagem... Não adiantou porra nenhuma.
Quando você decidiu fazer cinema?
Era cinéfilo desde criança. Imagina cinéfilo no Brasil, nos anos 40: só chanchada. Adorava, vi 11 vezes Carnaval de Fogo [de Watson Macedo, com Oscarito e Grande Otelo fazendo Romeu e Julieta]. Passar de cinéfilo a cineasta é um passo...
Como foi o seu?
Tinha um programa de perguntas chamado O Céu É o Limite. Me inscrevi para responder sobre cinema em geral, mas perdi no primeiro dia... Graças a Deus, [o dono da TV Tupi, Assis]Chateaubriand começou com aquelas coisas escrotas que fazia: uma campanha contra o José Ermírio de Moraes [dono da Votorantim, patrocinadora de O Céu...], que não queria dar mais dinheiro para o programa. Aí o Moraes foi para a TV Record e abriu um concorrente, O Dobro ou Nada.
E você foi lá?
Disse que era especialista em Charles Chaplin... Não sabia nada dele, tinha visto uns cinco filmes e só. Passei nove semanas concorrendo; na quarta, já tinha lido tudo escrito sobre ele. Sabia do cardápio de um jantar em Paris aos nomes das equipes técnicas dos seus filmes, e são uns 90 filmes... Era jovem e a memória funcionava, hoje não decoraria dois nomes. Levei um prêmio de 2000 dólares, era dinheiro pra caralho! Fui viajar pela Europa, e um amigo me inscreveu para uma bolsa do Idhec [Instituto de Altos Estudos Cinematográficos], na França. Isso foi em 57. Três anos depois, voltei pro Brasil e fui filmar para o CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE.
Cheguei em setembro, não tinha mais nada, não se notava nada nas ruas. Mas estive na Tchecoslováquia, em Praga. Isso foi choque, o resto é bobagem.
Quase tomei tiro! Fui convidado para um festival de cinema na Bulgária, e apareceu uma chance de ir a Praga. Cheguei uma semana antes da invasão. No dia, alguém me chamou às 10 da manhã, porque durmo tarde e não acordei nem com os tanques... Levantei e vi uma marca de tanque a meio metro da minha janela, na cidade universitária! Fui a pé para o centro, lembro da praça principal com a estátua do Kafka, o povo chorando e os tanques soviéticos. Uma hora, ouvi uns tiros e me escondi num prédio... Morrer na Tchecoslováquia, numa doutrina em que não acreditava muito?! Puta que o pariu!
Voltei pra cidade universitária, onde estavam outros cinco brasileiros. Enquanto a gente conversava sobre o que fazer, veio uma saraivada de tiros em direção à nossa janela! Juntamos todos os colchões do alojamento e passamos a madrugada debaixo deles... No dia seguinte, liguei para a embaixada brasileira. Imagina procurar a embaixada de um país com ditadura para sair de um país comunista [risos]... O cara me colocou num trem para refugiados, fui para a Alemanha e depois pra Paris. Não vi nada na História de importante, mas na franja da História vi isso.
[Rápido] Sou péssimo, não nasci pra isso. Falo mais depressa do que penso, então sai muita coisa que não quero dizer, depois leio e me arrependo. Espero que esta entrevista ajude as pessoas a se interessarem pelo filme. O filme é que interessa.
Tom Carroll
Um bicampeão mundial de surf, ídolo da cultura de praia dos anos 80 e 90, mergulha fundo no inferno das drogas – precisamente, cocaína e metanfetamina – e sai vivo para contar a história. Ela é contada por seu irmão jornalista, que, além da visão privilegiada dos fatos, tem a vantagem de ser um dos maiores conhecedores desse esporte no mundo. A junção de Tom e Nick Carroll deu origem a um livro imperdível, recém-lançado. O encontro de Nick com a Trip na Austrália, em janeiro, virou a conversa igualmente potente que está nas páginas a seguir Apesar de pontuar suas falas com uma risada algo nervosa e meio fora de tom, Nick Carroll parece ter encontrado certo equilíbrio aos 54 anos de idade. Do ponto de vista físico, não resta nenhuma dúvida. Seu corpo continua leve, exibindo uma combinação pouco vista nesta fase da vida. Musculatura tonificada com baixa presença de gordura, numa caixa compacta, de estatura pequena. O rosto tem a moldura quadrada acentuada pelas mandíbulas proeminentes, barba cerrada e os cabelos restantes nas laterais da cabeça raspados rente ao couro. Enquanto o escuto falar, nos fundos de um simpático café na praia de Newport, um dos belos subúrbios ao norte de Sydney, onde cresceu e vive até hoje, vejo que, ainda que sua aparência tenha mudado pouco desde quando fomos apresentados, no inverno havaiano de 89-90, a maturidade aparece em cada uma de suas frases, no ritmo tranquilo de sua respiração e na maneira de ler e compreender a vida e o mundo. A morte da mãe quando tinha apenas 9 anos, o simples correr do tempo, as horas e horas passadas sozinho no mar, as duas filhas, a atividade física, os livros, o casamento... Certamente são parcelas da soma de razões que resulta na clareza e na fluidez de seus pensamentos sobre a vida. Mas é muito provável que um fato tenha acelerado de forma decisiva esse processo: Tom Carroll, irmão mais novo de Nick, ex-bicampeão mundial de surf, um dos atletas mais importantes e festejados da Austrália e um ídolo mundial da cultura de praia nos anos 80 e 90, abraçou a cocaína com toda a força para, depois de alguns anos, se viciar em ice, uma espécie de versão de luxo do crack, mais conhecida nos meios científicos e policiais como metanfetamina. Assim como os efeitos do primo pobre, os do ice são mais que devastadores. Seu poder de adição é fortíssimo, e a capacidade de danificar rápida e violentamente o cérebro e o organismo como um todo é igualada por pouquíssimas substâncias conhecidas. As fotos de usuários “antes e depois” são aterrorizantes. Sem conjecturar o que acontece com a alma do adicto... Lidar com a impotência do irmão superatleta diante da droga, com as razões que o levaram a ela, viver seu drama e tentar trazê-lo de volta. Todo esse périplo conduziu Nick a um mergulho fundo e arriscado numa espécie de pântano embolado e gigante de dilemas éticos, campos movediços e emoções confusas. Da descoberta de traços de desequilíbrios psicológicos e de envolvimento com substâncias estupefacientes nos galhos mais altos da própria árvore genealógica ao questionamentos profundos sobre o próprio mundo que ajudou a criar e no qual vive até hoje, a cena profissional do surf, muita água correu nesse swell. Da revisão profunda das noções de sucesso e fracasso à dificílima experiência de expor publicamente as mazelas do irmão, dos amigos, da família e dele próprio. Nick parece ter saído desse mergulho um sujeito muito melhor. Está leve. Dá a impressão de ter exorcizado boa parte dos demônios que rondavam seu mundo nos últimos anos. E o principal instrumento utilizado para a execução desse complexo ritual de lavagem de alma é, ao mesmo tempo, um sucesso de crítica e de público. Lançado na Austrália em novembro do ano passado e prestes a sair nos EUA, TC, o livro escrito por ele, alterna em cerca de 300 páginas a visão dos dois irmãos sobre tudo o que viveram desde a infância até os dias mais calmos de hoje. As glórias conquistadas por ambos, a realidade acachapante dos bastidores do mundo do surf profissional e, claro, uma descrição detalhada de cada milímetro das paredes e do chão do fundo do poço da metanfetamina. Como ele mesmo diz, “nenhuma pedra ficou no lugar onde estava”. TC já vendeu mais de 100 mil exemplares em poucas semanas. O número já coloca a obra dos Carroll como a peça de literatura ligada ao surf mais vendida na história australiana. E isso não é pouco nesse quase continente onde praticamente todos descendem de gente que se dispôs a lutar pela vida encarando e decifrando o mar, e no qual existem pelo menos duas publicações dedicadas exclusivamente a analisar o universo literário e artístico com inspiração no oceano. Surf races Muito importante frisar: num universo de pouquíssimas unanimidades, Nick Carroll é considerado, por praticamente todo sujeito que tenha molhado o pé na água salgada e prestado a mínima atenção no mundo do surf nas últimas três décadas, o mais preparado, atuante e competente jornalista especializado nesse esporte do mundo. Mas sua capacidade vai bem além disso. Desde o início de sua carreira, quando emplacou seu primeiro trabalho, uma entrevista com o lendário surfista Gerry Lopez publicada na revista People em 1975, Nick sempre logrou saltar para além do cercado da praia, com um currículo que registra artigos e ensaios em verdadeiras instituições da mídia, roteiros para documentários, filmes, entre muitas outras obras notáveis. Ah, outro detalhe: entre suas horas de trabalho no pequeno escritório que mantém a cerca de cem passos da praia de Newport, numa sala simpática separada por apenas uma parede do gabinete de outra lenda do panteão praiano mundial, o cineasta Jack McCoy, Nick consegue tempo para surfar quase todos os dias do ano – seja na frente de casa, na Indonésia ou no Havaí – ondas de 2 a 20 pés e ainda para desempenhar a função de treinador da equipe campeã nacional das tradicionalíssimas e quase sagradas surf races, espécies de triatlos praianos disputados no mar entre salva-vidas e superatletas, que reúnem corrida na areia, natação e remada em diferentes tipos de instrumentos flutuantes. "No processo de reabilitação, Tom voltou a ser parecido com a pessoa que era antes, crescendo e aceitando suas responsabilidades. Hoje provavelmente estamos mais próximos do que nunca" Quanto a Tom, ele parece estar limpo e bem. No dia seguinte à entrevista, podia ser visto sentado na traseira de seu Mini Cooper no estacionamento da sua velha e boa Newport Beach. Ao mesmo tempo em que autografava livros trazidos por quem o reconhecia, preparava sua pranchinha fish de menos de 6 pés para uma queda num mar horrível, com ondas na altura do tornozelo, num swell miserável de vento soprando on shore e forte. Sinal claro de que está no apetite e de que o contato com o mar continua tão íntimo como quando o moleque baixinho cheio de sardas na cara e com short justo que realçava os quadríceps de jogador de futebol encarava e destruía Pipeline, Cloudbreak, G-land e qualquer outra onda assustadora como se fossem as merrecas daquele dia. Além disso, ao lado do amigo de infância e artista das ondas igualmente talentoso Ross Clarke Jones, protagoniza uma série para a TV chamada Storm Surfers, na qual, em resumo, a dupla se joga nas ondas mais difíceis, quadradas, dentuças, impensáveis e aterrorizantes que o planeta é capaz de produzir. A conversa com Nick na mesa dos fundos daquele café na Barenjoey Road no final de janeiro sobre a vida, pranchas de surf (ele é considerado um ph.D. no assunto e está para uma Channel Island assim como Robert Parker está para um Château Margaux), drogas pesadas, inveja, fama, surfistas brasileiros, corpo, felicidade, família e, claro, a busca por reviver o passado que norteia esta edição da Trip é o que você vai ver nas próximas páginas. As relações entre irmãos tendem a ser complexas. E nem sempre são amistosas. Como você descreveria a sua com Tom? Tom e eu temos uma relação muito complexa. É uma relação intensa, marcada por duas experiências de vida profundamente interligadas. Qual é a diferença de idade entre vocês? Dois anos e meio. Quantos anos você tem agora? Tenho 54 e Tom, 52. No livro que escrevi foi difícil descrever essa relação. Optei por fragmentar o texto alternando segmentos sobre mim e sobre Tom para que o leitor pudesse entender a relação entre os dois se formando e ganhando contornos conforme crescíamos juntos. As circunstâncias a fizeram extremamente complexa. Ele era o irmãozinho mais novo, mas costumávamos brigar muito quando pequenos. Nossa família foi muito traumatizada pela morte prematura da minha mãe. E realmente se tornou meu dever na vida cuidar do Tom. Seria muito fácil as pessoas pensarem, tendo ele conseguido muito sucesso como surfista profissional e eu não, que eu me ressentiria, mas isso nunca rolou. O que eu lamentava era justamente ver que havia essa percepção das pessoas a nosso respeito. Entre Tom e eu, ressentimentos desse tipo nunca existiram. Como está a relação hoje? Ela mudou bastante nos últimos sete, oito anos. Desde que Tom entrou na reabilitação, ficou “limpo” e entrou num processo de crescimento. Antes disso, tivemos períodos de muita distância. Por muito tempo eu não tinha ideia de que ele usava drogas. E ele tinha tanta vergonha daquilo que não conseguia falar. Até que ele percebeu o que estava fazendo e quis parar com tudo. No processo de reabilitação, percorrendo o caminho dos 12 passos dos Narcóticos Anônimos, Tom voltou a ser parecido com a pessoa que era antes, ao mesmo tempo crescendo e aceitando suas responsabilidades. Hoje provavelmente estamos mais próximos do que nunca. Até que ponto o livro expõe a realidade total? É completamente revelador. A narrativa fica indo e voltando, alternando minha voz e a dele. Posso dizer que falamos tudo. Não ficou pedra sem ser revirada. Quando ele descobriu que precisava de ajuda para lidar com as drogas? Os problemas tinham muitas fontes e raízes. Uma das maiores era a cultura meio tosca do surf dos anos 70, 80 e 90, em que o uso de drogas era quase obrigatório. Nos anos 80 isso cresceu, havia a sensação de que a cena do surf profissional era um ambiente charmoso e livre. Os surfistas viajavam pelo mundo e eram celebrados e mimados por todos por serem figuras “fantásticas”. Não ganhavam caminhões de dinheiro, mas tinham o suficiente. Ficavam uma semana em cada lugar e iam embora. Era um cenário sob encomenda para tudo isso acontecer. Indo além, muitos dos maiores surfistas dos anos 70, como nosso ídolo Michael Peterson, eram usuários recorrentes de drogas. Jimi Hendrix... Pessoas que considerávamos heróis na nossa cultura. Parecia normal usar drogas. E acho que o efeito da perda da nossa mãe quando éramos muito novos também ajudou. Como foi esse período? Minha irmã era um pouco mais velha e talvez tenha lidado melhor com o fato. Talvez as mulheres sejam mais “socialmente treinadas” para lidar com sentimentos mais sutis. Eu não sabia como sofrer. Lembro da minha mãe claramente, mas Tom era muito novo quando ela morreu, tinha 7 anos. E antes disso ela esteve doente por muito tempo. Acho que a morte dela deixou um buraco negro nele. Surfar o preencheu por um tempo, em algum grau, mas não inteiramente. E há o fator genético, minha mãe teve problemas com anfetaminas. "Tom se aposentou em 1994. Acho que o que mais o afetou nem foi deixar de ser famoso, mas o simples fato de não ter nada pra fazer. [...] Você precisa de algo para levar adiante sua vida. Senão, vai ficar lá trabado com suas memórias e seus troféus" Você tem lembranças disso? Não sabíamos disso até Tom ir para a reabilitação. Isso nos fez cavar o passado e revirar até antigos arquivos hospitalares. Tom não conseguia parar com a cocaína. Ele não conseguia ter uma visão mais analítica daquilo tudo nem se ver longe da fama por muito tempo. Além disso, as drogas em si mudaram ao longo dos anos. O que realmente derrubou Tom e o deixou de joelhos foi o ice [um dos nomes populares da metanfetamina]. Ele começou a usar essa droga como uma espécie de reação à ideia de crescer e amadurecer. Estava com três filhos pequenos, vivendo numa casa cara, cheio de responsabilidades, uma pressão enorme. O ice representava um escape, mas ao mesmo tempo ia destruindo sua vida. Até que ele percebeu que não iria longe e que aquilo custaria tudo o que havia conquistado. Custou seu casamento, por exemplo. E a casa maravilhosa que ele tinha na montanha e precisou ser vendida. Felizmente ele conseguiu reconstruir o relacionamento com as filhas. Amadureceu de uma forma que eu achei que nunca fosse acontecer. O que aconteceu com ele quando se aposentou e deixou o centro do palco no cenário do surf profissional? Tom se aposentou do circuito profissional em 1994. Sentia que era a hora certa, mas não conseguiu prever as reais implicações disso. Acho que o que mais o afetou nem foi deixar de ser famoso, mas o simples fato de não ter nada para fazer. Como profissional do surf, você tem uma missão. Um campeonato a cada duas semanas. Há um ritmo. De repente você aperta um botão e tudo acaba. Surge um vazio enorme. Acho que, hoje, os profissionais desse esporte estão mais espertos sobre esse assunto. Não havia muitos aposentados do surf profissional naquele tempo. Muitos pararam por um tempo, mas logo voltaram. Occy [apelido do australiano Mark Occhilupo, um dos maiores nomes do surf profissional em todos os tempos] voltou porque estava quase surtando. Tom achou que era a hora de parar. Tinha tido a terceira filha e não sentia mais a mesma compulsão por ganhar baterias. Mas acabou sozinho em casa, sem trabalhar. Todos de sua idade tinham trabalhos reais, uma rotina produtiva. É possível se preparar bem para isso? Ah, certamente. Há vários exemplos de profissionais que saíram da cena nos últimos dez, 12 anos, e seguiram o caminho certo. Tenha certeza de que você tem algo para fazer, esteja realmente convencido de que não quer mais competir. Isso é muito importante. E você precisa de algo pra fazer, de um lugar pra ir. Algo pra levar adiante na sua vida. Se não tiver essas coisas reais, vai ficar lá travado com suas memórias e seus troféus. Não sei como Kelly Slater vai lidar com isso [risos]. Muitas pessoas famosas parecem não conseguir viver sem gente ao redor, sem a aprovação dos outros. Como é isso no mundo do surf? Não posso falar por todo mundo. Com o Tom, sei que fama não era algo que lhe interessava muito. Ele arrumou um agente quando era novo, uma figura bem centrada que realmente viu uma oportunidade no surf para o meu irmão. Tom é talentoso, humilde, muito honesto com as regras e com as pessoas, uma combinação que vale ouro para um atleta profissional. O agente sacou isso e trabalhou muito. Realmente fez do Tom um superstar. Funcionou, mas acho que isso confundiu Tom um pouco. Como foi a relação entre vocês durante a produção do livro? Maravilhosa! Como jornalista, eu raramente entrevistei o Tom durante sua carreira, em parte porque sentia que conhecia o que estava acontecendo na vida dele mais do que seria necessário. Então, no início do processo desse livro, passei seis meses entrevistando meu irmão. Às vezes eram três ou quatro entrevistas por semana, outras vezes apenas uma na semana. Foi um longo período de entrevistas. Você mostrou o livro para ele antes? Qual foi a reação? Sim. Ele não falou nada. Era estranho, quanto mais eu escrevia, mais eu descobria coisas espantosas. O assunto era muito delicado e íntimo, havia segredos de família guardados por muito tempo. Tom tinha livre acesso ao manuscrito, mas ele evitava [risos]. Era uma coisa grande, emotiva. Estávamos expondo tudo, pela primeira vez. Como é usar ice, as dificuldades do processo de reabilitação, as pessoas que ele feriu ao longo dos anos. Olhando o livro ele tinha aquela expressão de “Caramba, acho que não devíamos ter feito essa merda...” [risos]. Mas era tarde demais para voltarmos atrás. Como você acha que o corpo dele foi afetado por todas as agressões? É difícil saber o quanto as drogas interferiram nisso. Acho que mentalmente as consequências foram piores. Os efeitos físicos talvez tenham sido mais sutis. Tom se sentia mal com as contusões crônicas, tinha um joelho detonado, passou por muitas cirurgias desde os 19 anos. Isso afetou seu surf nos últimos anos da carreira. Mas o grande desafio físico foi ter que mudar de um estilo baseado na adrenalina, em desafios extremos, para algo mais baseado no cortisol. Uma coisa mais calma, relax, de pensar antes de agir. Ele está um pouquinho mais pesado do que era. Seus movimentos são diferentes hoje. É interessante ver que ele até anda de um jeito mais calmo. Tem a ver com o fato de pensar mais antes de se mover. Antes, quando estava se preparando para ser o surfista perfeito, que espécie de treino ele fazia? Ele fez um treino com pesos quando voltou da cirurgia no joelho, aos 19, e descobriu ali o que o trabalho com pesos na academia podia fazer por seu corpo. Também fez muito trabalho aeróbico e de flexibilidade. E tinha uma dieta rígida, fez macrobiótica. Por muitos anos era um cara que carregava pouquíssima gordura no corpo. Ele continuou trabalhando com pesos, mas logo se adaptou ao que hoje as pessoas chamam de ginástica funcional, com bola suíça, pesos leves, faixas elásticas, barras. E também fazia ioga pra corrigir sua postura. Mudando de assunto: esta edição trata de certa tendência a recuperar coisas e valores do passado. Você faz algum tipo de reflexão sobre por que existe toda essa nostalgia agora? O que as pessoas estão perseguindo ao se voltarem ao passado? Cara, tenho pensado sobre isso. É interessante. Fico pensando se não estão um pouco assustados com o presente e com o futuro, como se não vissem muito para onde ir. O presente é uma coisa complicada, então vamos virar pra trás e ver se há algo ali para recuperar e nos ajudar a lidar com as complexidades da vida. Acho meio triste e ilusório. Por exemplo, se você for um jovem surfista, como diabos vai conseguir surfar melhor do que um Kelly Slater, um Joel Parkinson, esses caras? Como vai chegar ao topo? Você precisaria ser um John John Florence, um garoto que começou a surfar aos 3 anos, passou a vida inteira em Pipeline e não fez absolutamente nada além de se preparar para ser o melhor por 15 anos. Entende? Então vamos olhar pra trás, para 30, 40 anos atrás. Será que havia mesmo algo lá que fazia mais sentido e poderia dar um rumo ou uma sustentação mais consistente para nossas vidas? Eu acho que não. As pessoas só queriam ver até que ponto podiam ir. Mas, apesar de tudo, olhar para o passado procurando alguma consistência tem valor também. Pode ter a ver com certa saturação do modelo em que tudo é mercado, consumo? Não sei. O comercialismo do mundo moderno já estava presente nesse passado recente. Faz tempo que é assim. Nos anos 50 já era assim, em certa dose. Mas acho, sim, que o mundo nunca esteve tão complexo. Você é reconhecido como um dos maiores especialistas em pranchas de surf no mundo. Qual é afinal a ciência, a lógica por trás delas? Acho que a única coisa que consegui concluir sobre pranchas é o seguinte: quanto mais simples melhor [risos]. O que caras com pranchas antigas ou inspiradas no design antigo estão buscando? O sentimento que não existe nas pranchas modernas. Muitas delas são legais agora porque também estão se beneficiando de toda a evolução do design, que vem acontecendo desde 1974. Como as bicicletas? Exatamente. Essas bicicletas que não têm marchas são muito legais. Tudo é high-tech, mesmo parecendo simples. Elas custam US$ 400 e duram pra sempre. Não era assim com as bicicletas de 1974 [risos]. Algumas coisas são muito boas sob esse ponto de vista, mas, novamente, é como se as pessoas sentissem que aquela época é de algum modo mais autêntica e que hoje somos menos. Isso é um pouco triste, talvez seja um erro. O passado já foi o presente não autêntico. Tenho certeza que as pessoas em 1974 pensavam que o surf estava uma merda por não ser como nos anos 60. "O comercialismo do mundo moderno já estava presente num passado recente. Faz tempo que é assim. Nos anos 50 já era assim, em certa dose. Mas acho, sim, que o mundo nunca esteve tão complexo" Sua percepção não pode estar influenciada pelo fato de viver num lugar onde o lifestyle mudou pouco nas últimas décadas? Onde não há trânsito, poluição, pobreza... A praia está limpa, as pessoas voltam do trabalho às 5 da tarde com um bom dinheiro e tempo para curtir. Sim, é verdade. Mas esses valores ainda podem existir, você tem que procurar por eles. Onde estavam no passado, onde estão agora? O que era valioso de fato? Quais as armadilhas escondidas? O que interessava às pessoas antes e que se perdeu? O que queremos pras nossas vidas? Não acho que vamos encontrar essas coisas nos brinquedos, nos bens materiais. É preciso ser alegre aqui dentro, no coração, provavelmente com sua família. Que tipo de espiritualidade você e o Tom desenvolveram? Nenhum de nós era muito ligado a religião. Pensei muito sobre isso, não sei se Tom pensou. Ele achou que devia se tornar meio religioso quando largou as drogas. Pensou que seria a única maneira de parar com elas. Mas acho que ele encararia de forma bem diferente se não estivesse precisando tanto. Ele achava a noção de Deus muito dogmática, que leva a muitos julgamentos. A ideia de algo espiritual para nós surge de experiências da família, da ideia de que somos partes de um fluxo de gerações de pessoas conectadas... E de nossas experiências no oceano. O mar nos mostrou a presença de algo maior que nós. Todos têm de ter uma referência de algo maior, que mostre seu lugar em relação ao mundo. Se você pensa que é a maior coisa no universo, vai ter problemas em algum momento [risos]. O que o surf ensinou a você sobre humildade? Pra ser sincero, por muito tempo não aprendi muito nesse sentido. Nós éramos os “locais” aqui em Newport, vivíamos botando as pessoas pra correr, expulsando da água e outras idiotices. Era engraçado porque indo a outros lugares tínhamos que mostrar respeito pelas pessoas de lá. Com o tempo fomos adotando outro comportamento, mostrando respeito, ficando mais em silêncio, no nosso canto, na fila. E, independentemente disso, tanto eu quanto Tom fomos nos tornando enormemente humildes diante do oceano. Ele já nos mostrou inúmeras vezes quem manda no jogo. Já nos deu muita porrada. Provavelmente, ele vai nos matar um dia. Na verdade, acho que tem bem mais chance dele matar o Tom antes [risos]. Alguma vez você se sentiu preso numa espécie de cerca profissional, como jornalista ou escritor, por estar tão vinculado ao mundo do surf e do esporte? Ah, com certeza. Sempre tentei me resguardar disso escrevendo só sobre as coisas que realmente amo no surf, coisas que eu observava melhor do ângulo em que estava ou que valiam a pena ser ditas. Mas é fácil se sentir numa gaiola. Por isso passei um tempo trabalhando fora do surf também. Escrevi documentários pra TV, experiências interessantes com cinema, pratiquei o jornalismo fora do surf. Gosto disso. De ir e vir nesse cercado. Confesso que minha tolerância para assuntos do surf não tem crescido muito. Não quis, por exemplo, cobrir o Pipe Masters no Havaí este ano. Porra, fazer isso de novo? Talvez daqui a uns anos valha a pena novamente. Vamos falar de novo sobre pranchas. Uns anos atrás, entrevistamos o Robert Parker, aquele sujeito que dá notas aos melhores vinhos do mundo. Ele disse que 99,9% do que é escrito sobre vinhos é bobagem, incluindo o que ele escreve... [risos]. É mais ou menos assim com as pranchas. E essa coisa relativamente nova da medida do volume como forma de entender melhor as pranchas? É mais sobre superfície, na verdade. As máquinas de shapes computadorizadas conseguem dizer com exatidão quanto de espuma existe, quantos litros numa prancha, então de repente o volume se tornou uma grande coisa. Mas é só uma informação a mais num universo muito complexo. Você facilmente fica preso a esse pensamento do volume, imaginando que seja uma das coisas principais, mas, porra, não é verdade. O que você faz para se manter em forma? Aqui na Austrália o surf racing é um grande esporte. Envolve natação, remadas em pranchas e em surf skis, corrida na areia. Fazemos espécies de raias no mar e na areia para uma corrida envolvendo essas modalidades. Na Austrália, há centenas de milhares de pessoas nesse esporte. Eu sou o técnico da equipe aqui em Newport. Para treiná-los, comecei a nadar bastante, remar e todas essas coisas. Além do surf. Você vai à academia? Não. Você corre? Sim, um pouco. Gostaria de não ter que correr, mas não tenho escolha! Como alguém que acompanha o surf profissional de perto há tantos anos, o que você diria sobre a nova cena brasileira – Medina, Adriano e outros caras? O surf profissional brasileiro vai se tornar uma força muito maior nos próximos dez ou 15 anos. Gabriel definitivamente é um dos grandes candidatos ao título de número um do mundo. Ficarei surpreso se ele não ganhar um ou dois títulos. "Tanto eu quanto Tom fomos nos tornando enormemente humildes diante do oceano. Ele ja nos mostrou inúmeras vezes quem manda no jogo. Já nos deu muita porrada. Provavelmente ele vai nos matar um dia" De que brasileiros do passado você se lembra? Cauli Rodrigues surfava muito, me lembro dele. De Joca [João Maurício] Jabour... Sei que agora o filho dele também é ótimo. Jojó de Olivença era muito foda, difícil de vencer. Era um surfista fantástico, épico, não sei onde ele está agora. Provavelmente foi esquecido, imagino. Tinha uma galera nos anos 90... Fabio Gouveia é um ótimo surfista, Flavio Padaratz tinha muita energia, Guilherme Herdy talvez tenha sido um pouco subavaliado. Era um maravilhoso surfista, ótima leitura de ondas. Me lembra um pouco os surfistas de agora, inclusive sua constituição física. Enfim, muitos caras bons. Sei que alguns, como Miguel Pupo, têm filho agora no circuito. Deve haver algo de genético nesse talento. Você teve a chance de ver caras mais antigos como Pepe Lopes e Renan Pitangui no Havaí? Não, isso foi antes da minha geração. Vi Daniel Friedman, Rico de Souza. Daniel era impressionante, muito bom. Acho que saiu de cena quando chegamos. Fui a Bali este ano para ver o Oakley Pro. Senti um clima diferente. Jovens atletas focados e pensando mais no dinheiro, em como aparecer na mídia. Minha sensação vendo Joel Parkinson vencer era de que ele é provavelmente o último cara a ter um olhar e um comportamento diferentes. Você enxerga isso? Sim, Joel vive um surf diferente, mantém em seu jeito muitas linhas familiares aos surfistas dos anos 70 e 80. Talvez hoje as coisas sejam mais afetadas pelo dinheiro. John John é um cara que me impressiona e parece não ter se deixado sugar pela loucura da fama. Seria fácil um garoto como ele ceder às tentações. Um monte de gente dizendo que você é demais... Há um documentário chamado Happy que rodou o mundo tentando entender o sentido da felicidade. Qual seria sua definição de felicidade? É variável, não é algo que você deva procurar, mas algo que aparece. Se faz as coisas certas na vida, se cuida de você e de quem ama, a felicidade meio que aparece, é imprevisível. Todo mundo que vive uma vida ok sabe quais coisas, situações e pessoas trazem felicidade. No fundo, todos sabemos. Procurar é inútil. Você tem que ficar quieto e esperar ela chegar. Você falou sobre a ideia da morte. Qual sua relação com ela? É difícil pensar que vamos morrer, lidar com isso, mas não há por que temer a morte. Tem algo interessante que dizem nos funerais cristãos: no meio da vida, temos a morte. É isso, não dá pra haver vida sem haver a morte. Mas aceitar a própria não é fácil. Não quero morrer, porra! [risos] O medo de morrer faz a gente se aproximar da vida quando alguém que amamos morre. Mas sempre há espaço para rir num funeral. Se a pessoa é importante pra você, sempre lembrará das risadas que deram juntos. E quanto a ficar velho? Não é fácil abrir mão de algumas coisas. Mas minha experiência até agora tem me mostrado que todas as coisas de que tive que abrir mão criaram espaço para outras mais valiosas. Não queria surfar como surfava aos 20 anos, se para isso tivesse que deixar de ser quem sou hoje. Pergunta fundamental: Quantas pranchas você tem? Quarenta e duas em casa, seis na Califórnia, oito no Havaí. Seriam mais se certas pessoas me devolvessem as que levaram emprestadas [risos]. O que sua mulher acha das 42 em casa? Temos uma garagem lotada de pranchas e ela diz: “Ok, esse é o quarto dele”. Ela só gosta de uma prancha: uma Allan Byrne, com seis canaletas, 8’6, colorida com uma linda resina azul. Deve ter uns oito ou dez anos. Está pendurada na parede da sala. A única prancha que ela gosta! Tive que pendurar. Qual sua onda dos sonhos, a que mais gosta? Gosto muito de Sunset Beach. Também penso em Grajagan, na Indonésia, mesmo não tendo voltado lá em muitos anos. E algumas no Taiti. Que onda o assusta? Geralmente, a que eu não surfei. Não sou dos mais fáceis de intimidar. Mas uma onda pesada, que ainda não tenha surfado, talvez possa dar medo. Sua editora tem planos de publicar seu livro no Brasil? Sim, estamos pensando em traduzir para o português ou talvez fazer a versão on-line em inglês. Eu adoraria compartilhar com os brasileiros. Tem muito do nosso sangue nesse livro. "Gabriel Medina é um dos grandes candidatos ao título de número um do mundo. O que me preocupa sobre os competidores brasileiros é que, olhando para trás, me parece que eles acabam esquecidos no próprio país" “Era assustador” Trechos de TC (traduzidos livremente pela Trip), em que Tom Carroll fala em primeira pessoa sobre a incursão no mundo das drogas “Houve um tempo, em 2001, em que eu comecei a sentir novamente que tinha um problema sério com drogas. Eu não usava todos os dias. Mas estava usando praticamente todo fim de semana. Me sentia um lixo na segunda e na terça, depois dava a volta por cima e, no fim de semana, já estava na fissura de novo. Era muito difícil focar em qualquer coisa, eu ficava bem e mal muito rápido, um ioiô de emoções. Tenho certeza de que isso estava transbordando para as minhas relações. Mas eu negava tudo para mim mesmo, apenas para sobreviver.” “Eu odiava a sensação do ecstasy e a rebordosa depois. Era muito deprimente. Eu tentava encontrar um bom fornecedor, mas era muito difícil. E muito perigoso. Muitos comprimidos de ‘e’ vinham misturados a um coquetel de outras coisas – heroína, por exemplo. Virou uma experiência perversa, mentalmente arriscada. E eu estava por um fio. ‘Vou largar’, pensava. ‘Não vou me envolver com isso.’ Meu traficante não usava ‘e’. Ele apenas colocava um pouco de anfetamina na água e bebia. Então um dia eu disse: “Me dá um pouco disso”. Eu achava que não curtiria speed nem nada do tipo. Mas na verdade foi um combo perfeito para minha vida inquieta. Aguçava minha mente e me mantinha ativo. Parecia que aumentava minha capacidade de lidar com a realidade. Não demorou para eu ficar totalmente viciado” “Minha percepção era a de que eu não tinha mais energia. Minha percepção era de que eu precisava ser capaz de fazer cada vez mais. Pensava: ‘Como vou continuar com tudo isso?’ Demanda muita energia manter uma família unida. E a anfetamina é perfeita. É como uma xícara de café estendida. Afia sua concentração como cafeína. E essa descoberta parece ter combinado com a minha patologia melhor do que qualquer outra coisa. Eu consegui lidar com as anfetaminas por um tempo sem muito estrago.” “Eu me tornei mais e mais dissimulado, e me sentia melhor dessa forma. Eu poderia usar regularmente, mas não estava usando muito. Era um usuário funcional. Era o tipo de droga que eu não podia usar em quantidade muito grande. No entanto, eu estava numa espiral descendente, indo cada vez mais fundo. E, algumas vezes, você acaba querendo injetar, porque os efeitos começam a ficar mais fracos e você tem que usar mais.” “... Eu disse a eles: ‘Olha, estou fora do ecstasy. Tô pegando leve, me sentindo bem’. Um deles disse: ‘Tenho um bagulho muito, muito bom. Talvez você queira experimentar’. E porque não há distância entre meu pensamento e minha ação, tão logo eu tive aquela sensação, eu não poderia parar. Sem perceber, eu já estava experimentando metanfetamina. E a sensação que eu tive era muito mais pura. No início era um estado mental muito claro e cristalino. Nenhuma confusão. Um estado de concentração muito forte. Respostas certeiras para tudo. Ações eficientes, concentradas. Respostas imediatas do corpo. Sentidos afiados. Não é um barato que te deixa fora de controle, mas um barato de conseguir sentir tudo. O mundo em volta se torna mais nítido. Então imediatamente eu pensava: “Este é o lugar onde eu quero estar”. Eu não ficava apenas 10 minutos, 20 minutos ou 1 ou 2 horas – eram 10 horas no limite. Eu comecei a tomar oralmente. Tomava um pouco, pensando: ‘Vou tomar só isso’. Mas como a droga era muito traiçoeira, por se encaixar tão perfeitamente em minha patologia, eu já era. Eu já estava perdido. Estava tudo em minha natureza e o que foi desenvolvido ao longo dos anos – bum! – disparou um vício muito forte.” “No início aquilo parecia me ajudar. Parecia me apoiar em tudo. Eu estava presente para as pessoas, fazia o que tinha que ser feito, estava comprometido. Mas então você precisa daquilo para fazer as coisas, e então aquilo desaparece e você é deixado com você mesmo. Era assustador. Realmente assustador. Um outro nível de medo, que você não pode expressar a ninguém. Então comecei a estudar a substância que eu estava tomando, comecei a ler as histórias de horror e a ver tudo aquilo acontecendo comigo. Assustador. Mas continuei usando, porque tinha estabelecido uma obsessão compulsiva pela droga. Quando não havia a droga por perto, talvez um oitavo de mim conseguia pensar sobre o que estava na minha frente, enquanto o restante era consumido pensando: ‘Como vou conseguir? Tenho que pegar o telefone...’.” “Eu lia mais sobre a metanfetamina e pensava: ‘Ah, é exatamente o que está acontecendo comigo’. O que eu estava lendo me apavorava. Pensei: ‘Não posso continuar fazendo isso’. Mas não conseguia parar.” “Eu estava prestes a perder minha sanidade mental. Prestes a perder a minha família, prestes a perder a minha casa. Meu emprego, minha carreira, quem eu era. Eu ainda não tinha perdido tudo, mas estava indo ladeira abaixo, muito rápido. Eu sabia que precisava de ajuda. Ajuda em grupo. Eu precisava de pessoas ao meu redor. Mas também estava superapavorado com isso.”
Uma coisa que me preocupa sobre os competidores brasileiros é que, olhando para trás, me parece que eles acabam esquecidos no próprio país. Me pergunto se isso está acontecendo agora. Eles surgem com grande impacto, mas são rapidamente esquecidos. Será que os brasileiros que já apareciam no ranking mundial em 1976 são lembrados hoje, como lembramos aqui de Mark Richards ou Michael Peterson? Será que os mais antigos estão vivos na memória das novas gerações de brasileiros? Se você não reconhece ou não valoriza o histórico de quem veio antes, fica difícil.
O despertar de Sidarta
Pioneiro no estudo da consolidação da memória durante o sono, o neurocientista Sidarta Ribeiro largou uma carreira brilhante nos EUA para dirigir o NatalNeuro, um dos mais arrojados institutos científicos do país. Trip conversou com ele sobre sono, sonhos, educação, capoeira - e o que o Brasil deve fazer para acordar de seu berço esplêndido
Quem caísse de um disco voador naquela roda de capoeira em um resort de Natal acreditaria estar presenciando uma sessão de macumba pra turista. Não era bem isso. Pra começar, o mestre da roda não era só um jogador de capoeira, mas um doutor em neurociência. Participavam da roda alguns dos mais renomados cientistas do mundo — como os israelenses Idan Segev e Eilon Vaadia, que estudam a plasticidade do cérebro. Na platéia, havia gente do calibre de Henry Markram, de Lausanne, que propõe a construção de um modelo cerebral no Blue Brain Project; o japonês Gordon Cheng, que cria robôs humanóides; o argentino Martín Cammarota, que pesquisa como as memórias podem ser extintas... e alguns dos 700 estudantes de biologia, medicina e afins que viajaram até o Rio Grande do Norte para o II Simpósio Internacional de Neurociência, em fevereiro de 2007. Todos eles batiam palmas e entoavam os pontos de candomblé que o mestre pacientemente ensinava, sempre demostrando nuances de cada passo, em inglês e português.
O ET que tivesse caído na roda demoraria a entender que para o mestre, o neurobiólogo brasiliense Sidarta
Ribeiro, 35 anos, ciência, capoeira e orixás são coisas absolutamente orgânicas. Ano passado, em entrevista à Trip, ele já provocava controvérsia ao elogiar Freud, o pai da psicanálise — uma heresia para quem pensa que biologia e psicologia são ciências antagônicas. Sidarta adora uma polêmica e não tem medo do perigo — “a capoeira me ensinou a cair”, diz. Foi assim que este cientista, que tem um estudo pioneiro provando como o sonho consolida a memória, trocou uma carreira estelar num laboratório de ponta norte-americano, na Duke
University, pelo risco de dirigir uma instituição científica distante do eixo Rio—SP. Claro que teve parceiros à altura: um dos idealizadores do InstitutoInternacional de Neurociência de Natal é justamente seu chefe na Duke, o paulistano Miguel Nicolelis — o homem que conseguiu fazer um macaco mover um braço remoto apenas usando a força da mente.
Desde 2004, Sidarta dirige o NatalNeuro mirando n ão só nas idéias inovadoras de Nicolelis como em pesquisas relacionadas a sono e memória. Outro destaque do instituto é provar que ciência pode ser o motor de uma revolução econômica, aliando alta tecnologia à integração educacional com a comunidade — daí Sidarta ser também instrutor de capoeira de crianças carentes de uma favela próxima ao NatalNeuro. Para entender como o sono é indispensável à saúde, tanto mental quanto física, e desvendar a vigília deste cientista pouco ortodoxo, Trip conversou com Sidarta Ribeiro em duas partes. Procure um lugar bem confortável, relaxe e boa leitura.
FL: Como é que as oito horas do sono influenciam as outras 16 da vigília? Bom, qualquer pessoa normal, com um mínimo de introspecção, sabe que isso é verdade. Sono não é descanso. Tem uma hora para acontecer, tempo para durar e ciclos internos. Se você não dormir três dias, vai ficar péssimo. Não é optativo, é obrigatório.
FL: Pra que serve o sono? Você só tem claramente definido o aparecimento do sono nos répteis, o sono de ondas lentas, um sono tranqüilo, restaurador... Se acordar a pessoa durante esse sono ela estará parada, mas vai ter pensamento rolando. Inclusive com certa lógica. Isso aparece nos répteis, provavelmente pela invasão do ambiente terrestre: o animal que está na água não tem dia e noite. Quando os répteis conquistaram a terra, passaram a ter ciclos claramente marcados — e tiveram de desenvolver o sistema visual. Assim, vão se esconder à noite, quando não há visão. O sono aparece como uma pressão ecológica para aqueles animais se recolherem. Mas, já que vai ficar parado, deve ter alguma vantagem. Primeira: economizar energia. Segunda: repor moléculas que usou durante o dia. Quando você está acordado de manhã e suas idéias estão superlegais, começa a trabalhar e logo vai cansando, perdendo a capacidade de reagir a estímulos novos. Essa capacidade é dada por neurotransmissores — por exemplo, a noradrenalina, parente da adrenalina. Qual a solução? Dormir para que a noradrenalina que gastou possa ser refeita. Isso a gente chama de “recaptação de neurotransmissores”. Você gasta serotonina, que te faz feliz, gasta noradrenalina, que te faz atento, a dopamina... Tem uma coisa mais legal que pode acontecer quando você desliga seus impulsos sensoriais e pára de sofrer influências do mundo exterior: a capacidade de ativar internamente suas memórias mais importantes e ativá-las e repeti-las “offline” para fortalecer essas memórias. Que é o que os répteis provavelmente desenvolveram.
FL: E, cortando para os dias de hoje, em que a noite, por exemplo, foi muito controlada... Desregula tudo. O sono tem a ver com a regulação hormonal... A pessoa que vive fora do padrão normal está totalmente alterada.
FL: Um guarda noturno há 25 anos, mesmo que durma oito horas por dia, terá um sono diferente do sono do cara que dorme à noite? A qualidade é pior, o nível de hormônios é diferente, há uma consolidação de memórias diferente... Você até pode fazer uma inversão, se acostuma, só que, quando você compara uma série de indicadores metabólicos, hormonais, psicofísicos, psicológicos — o tanto que esse cara aprende, o tanto que ele consegue prestar atenção —, vê que a galera que dorme de noite está melhor. É uma insalubridade: o cara tem que receber mais porque prejudica o coração, o sistema reprodutivo, o cérebro, o aprendizado... E está sendo retirado do convívio social normal
GW: Mas e os caras que dizem que virar a noite traz outro tipo de esperteza, que a noite é o lugar deles, que gostam de dormir de dia, se sentem mais felizes assim? São cronotipos. Tem gente que é notívaga, gente que é matutina. Tem gente que nasceu para viver de noite. Sou um caso desses. De manhã não faço nada, de noite estudo.
FL: Tenho a impressão de que TV dá insônia, porque você está com sono, mas fica colado naquele negócio, não consegue ir para a cama... Tenho um projeto de pesquisa em que será provado que TV e hipnose são a mesma coisa. Só tenho minhas impressões, mas estou convencido. Passei dez anos sem TV por opção, sou suscetível. Agora, o povo quer ver TV. Acho perigoso, não é interativo, você entra em um fluxo contínuo.
GW: E a internet? O computador aceita os meus pensamentos. É outra história, uma mão dupla, muito mais saudável.
GW: O sono muda com a internet? Está todo mundo online o tempo todo. Isso é ruim. O sono tem que ser preservado, porque tem uma função criada há milhões de anos, se a gente quiser mexer com ela, vai se ferrar. A gente deveria ter sono como matéria obrigatória, da infância até o doutorado.
FL: Você tem um “sonhário”, Sidarta? Faço um sonhário, sim. Não todo dia, mas anoto todos os sonhos relevantes que tenho. Tenho sonhos coletados há dez anos. É fantástico! Quando você está vivendo situações importantes, com dilemas, eles freqüentemente te avisam o que vai rolar. Só que avisam de uma forma que geralmente você não entende [risos].
GW: Aprender dormindo existe? Sou cético em relação a isso. Você pode fazer isso num rato, mas não estou convencido de que isso seja mais eficaz do que a pessoa prestar atenção acordada e depois tirar uma soneca.
FL: Não tem nada comprovado? Você consegue ensinar um condicionamento clássico, tipo Pavlov, para um animal de laboratório, aplicando estímulos elétricos no cérebro dele quando está dormindo, e mostra que seu cérebro está aprendendo. Agora, quando o estímulo vem de fora, pelos ouvidos, tem que passar por barreiras que atenuam sua percepção. O cara consegue perceber, só que você precisa calibrar muito bem porque, se vier fraco, ele não chega a nada. Se fizer forte, ele acorda. Fica uma coisa subliminar, interferindo com os processos normais: o cara lá sonhando e vem aquela interferência: “The book is on the table, the book is on the table…” [risos].
FL: E esse estado entre o sono e a vigília? Isso é a coisa mais legal que a gente vai falar aqui. Na transição da vigília para o sono você passa para um estado hipnagógico. É parecido com o sonho. Todo mundo aqui já experimentou, é uma situação que, às vezes, dá um susto, dá a sensação de que se está caindo. Tem imagens que nem sempre são agradáveis, tem imagens-problema. É um sonhozinho curto que faz a transição para você entrar no sono de ondas lentas do início da noite — sem sonhos — com a tela apagada e tal. Ele é um microssono REM [Rapid Eye Movement], um estado instável, não dura.
GW: Acontece na volta também, quando você está acordando? É um pouco diferente. A maior parte das pessoas volta sem se dar conta de que veio de uma transição de um sonho dentro de um sono REM: a pessoa tem um último sonho durante a noite, aí acorda. Nesse sentido, não tem esse sono hipnagógico, não tem transição. Ela está num sonho que dura 40 minutos, às vezes 50 minutos, aí acorda. Porém, dependendo da prática da pessoa — há uma disciplina da ioga tibetana que é só para isso —, pode evoluir do sono REM, que é um sonho normal, para o sonho lúcido. Num sonho normal, você é um personagem. Já o sonho lúcido é o em que você tem consciência de que sonha e tem controle parcial ou total do enredo. Já tiveram esse sonho?
PL: Eu sou fã. As melhores ondas que já peguei foram nesses sonhos... Voltando, esse é o sonho que, se pudéssemos ter toda noite, teríamos. É Matrix, é Second Life com alto grau de nitidez, sensações de toda ordem, o embrião de um novo estado de consciência. Os tibetanos fazem isso há milênios — só que agora a gente pode desenvolver sabendo o que acontece no cérebro.
FL: Como isso muda a vida das pessoas? Um aluno meu está começando a estudar isso. Só um cientista até hoje estudou o sonho lúcido, o Stephen LaBerge, que depois parou de publicar artigos científicos para vender workshops de ioga para milionário californiano, montou o Instituto de Lucidez, totalmente new age... Meu desejo é estudar isso em paralelo. Para que vai servir, não sei. Quero estar nessa fronteira. Tem psicanalista que diz: “Ah, mas você vai estragar o sonho do cara, sonho não pode ser controlado...”. Mas acho que, se você tiver um sonho lúcido por semana, isso serve para poder treinar como entra melhor na onda, para dar um salto mortal na capoeira, para sair com a sua atriz predileta... Entendeu? É um supersono REM com alto nível de acetilcolina, com alto nível de dopamina e, eventualmente, com ativação pré-frontal aumentada. São coisas para a revolução neurocientífica do século 21.
PL: Como é o inverso disso? Quer dizer, passar 15 horas dormindo melhora ou piora a vida? Dormir demais não é bom. Faz quase tanto mal como dormir pouco. Todo mundo já passou pela experiência de dormir duas horas a mais e ficar “bodeado” o dia inteiro, né? Você tem um pico de cortisol às 7 horas da manhã, quando está saindo do seu último sono REM, aí volta a dormir. Seu cortisol cai, e, quando você acordar novamente, serão outras condições hormonais. Fazer isso uma vez por semana não tem problema, o lance é que as pessoas começam a fazer todo dia.
GW: E o cara que dorme drogado, que toma ansiolítico...? É terrível! Tem gente que só dorme com Lexotan... Quando você adiciona muitas substâncias com regularidade, para fazer coisas simples como dormir, é complicado. A dependência é séria.
PL: O que acontece com as pessoas que vão vibrando até mais tarde e se recolhem mais tarde e dormem menos?Vão ficar menos atentas, menos felizes, mais cansadas, mais obesas, mais brochas — você fica
mais brocha se não dorme, não come e não bebe água.
PL: Que contribuição a qualidade do sono traz para a felicidade? Gosto de trabalhar com o conceito de homeostase. É um conceito de biologia que fala do equilíbrio de tudo. Quantas substâncias químicas em equilíbrio dinâmico existem no nosso corpo? Milhões, talvez bilhões. Para você ter um equilíbrio, é preciso que obedeça ao que manda os nossos ancestrais dinossauros, répteis e protomamíferos, que inventaram o sono REM e adaptaram nosso organismo ao ciclo dia/noite. Aí a gente inventou a luz, inventou a lâmpada. Agora não temos mais o dia e a noite tão claramente marcados. Vai demorar milhares de anos para que esse novo Homo sapiens encontre todos os mecanismos metabólicos para sentir-se bem adaptado. No tempo dos nossos avós não tinha tanta iluminação. Isso é tudo muito recente. Os genes ainda não mudaram.
PL: Por que a mídia ignora o sono? Porque o patrão não ganha nada quando você está dormindo. Ele ganha, mas não sabe disso. A pessoa bem descansada é importantíssima. Imagina, piloto de avião que não dormiu, controlador de vôo que não dormiu. É grave!
GW: Tem algumas empresas fazendo experiências de botar camas para os funcionários, não? Tem. E esses são os bons patrões que entenderam que a máquina funciona melhor assim. O sono não é valorizado na sociedade porque a gente vive numa sociedade com resquícios de exploração... O cara é porteiro, você não deixa ele dormir, ele dorme, o ladrão vai lá e rouba. No mundo ocidental, a gente tem pouca introspecção. A pessoa que acorda de manhã, que vai fazer um sonhário, vai pensar na vida, não é um trabalhador-modelo. O cara vai chegar às 6 horas da manhã para começar a trabalhar, como vai fazer isso? Tem ainda a idéia de que o sono tem a ver com indolência, com o cara não querer trabalhar, Macunaíma...
PL: Se você privar o cara de sono por um período ele vai morrer? Se privar completamente um animal de sono, ele fica mal e eventualmente morre. Se privar só do sono REM, não morre, mas tem uma série de problemas, desequilíbrio térmico e tal. É uma tortura clássica, existe há milhares de anos, e hoje em dia é utilizada nas melhores delegacias do ramo [risos].
RB: Sidarta, falamos bastante de sono. Daqui em diante, fui encarregado de te perguntar sobre a parte de ficar acordado [risos]. Vamos começar pelo trabalho: você é um workaholic? Gosto de trabalhar e tenho muita coisa pra fazer. Mas já não deixo mais de fazer exercícios, alongar, relaxar, dormir bem, comer direito. Às vezes viro uma noite ou outra. Por muito tempo, até o doutorado, virava sempre, sempre no limite, sem dormir, sem comer.
"Precisamos liderar em áreas estratégicas. Correr atrás de um líder não é uma opção. [...] Temos de pesquisar célula-tronco, nanotecnologia, interface cérebro-máquina e a questão energética"
Mas voltemos um pouco no tempo... Você nasceu em Brasília, em plena ditadura, não? Sim, de pai carioca e mãe mineira — minha mãe, teosofista, foi que me deu esse nome, inspirado no livro do Herman Hesse. Eles se encontraram lá, começaram a trabalhar como taquígrafos do Congresso. Meu pai morreu quando eu tinha 5 anos. Teve um aneurisma aórtico, aos 28 anos. Tenho um irmão mais velho, Júlio, e uma irmã do segundo casamento da minha mãe, com um economista. Ou seja, nasci cercado pelo ambiente político. Me lembro que em 1984 a polícia jogava gás lacrimogêneo na escola...
Era ligado em política? Em 1987 entrei pro PT. Mas o ponto máximo da minha atuação foi o combate ao Collor. Ele começou a ser derrubado em Brasília. Logo na primeira sexta-feira que ele desceu a rampa, dois anos antes de o Pedro fazer as denúncias, a gente pintava a cara, saía na porrada com a polícia, o couro comia... Eu era parte de um grupo de uns 30 estudantes que anarquizavam geral. A gente bloqueava a Esplanada dos Ministérios às 5 da tarde... [risos].
Pegou a efervescência do rock de Brasília?
Sim, sou Geração Coca-Cola! Vi os primeiros shows de Legião, Paralamas, Plebe Rude... era amigo do pessoal da Elite Sofisticada. Era esquisito, porque gostava de rock nacional, nas festas ouvia Ramones, Clash, mas em casa a gente ouvia muita música clássica, Rachmaninoff, Beethoven. Era CDF demais, meio intelectual. Rock estrangeiro eu só comecei a gostar no doutorado. Hoje gosto de tudo, sou onívoro.
É sufocante ser adolescente em Brasília? Sim, lá a molecada classe média ou vira vândalo de direita e vai queimar índio ou vira vândalo de esquerda e faz pichação, derruba outdoor, briga com a polícia, que nem a gente. Ou você se rebela ou vira fascista. A adolescência é sair na rua procurando festa. Aí você chegava na festa, só tinha homem, saía porrada... por isso eu ficava na minha.
Era CDF? Estudei em muita escola pública. Estudei no Sigma, no Marista, no Ceam... fui expulso... Só fui me tornar CDF mesmo na universidade. Gostava de literatura desde cedo, queria ser escritor. Ganhei o concurso na Radio France Internacional, entrei em contato com o Luis Fernando Verissimo, que era jurado, e ele me ajudou a publicar meu primeiro livro.
Como é esse livro [Entendendo as Coisas, L&PM]? É um livro brutal, meio dark... São contos, eu tinha 26 anos quando publiquei. Gostava muito de Rubem Fonseca, de Edgar Allan Poe e Guimarães Rosa, claro. Com o concurso, fiz minha primeira viagem internacional. Mas a minha viagem mais importante foi a que fiz com vinte e poucos anos.
Foi para onde? Foi logo depois da graduação, tinha uns 21 anos. Já era biólogo, mas entrei em crise. Resolvi que tinha de largar a carreira e enfiei na cabeça que tinha de ir para a Índia. Mas acabei não indo [risos]... Juntei US$ 1.500 e passei seis meses viajando pela América Latina. Encontrei amigos na Argentina e fui descendo de carona até as Torres del Paine. Voltei, fui pro Atacama, na Bolívia fui onde o Che foi assassinado, fui pro Equador, Colômbia e voltei a Brasília via Amazonas. Foi nessa viagem justamente que decidi estudar neurociência. Conheci o Eduardo Maturana, um neurobiólogo chileno... mas o importante foi que descobri os estados alterados da consciência [risos]. Foi na ilha de Chiloé. Mas não posso entrar em detalhes... Só digo que eu era muito cartesiano até então, achava que o mundo era só o que eu via. Mas não quero falar muito disso não...
Pode dar o nome do santo ou só descreve o milagre?
O nome do santo a gente omite [risos], porque estou numa posição de muita responsabilidade, você entende. Mas o milagre é que eu estava com amigos, tomando vinho, numa festa, é uma ilha muito mágica, e de repente tive uma desconexão entre o que estava ouvindo e o que estava vendo. Meus sentidos ficaram todos desfragmentados, assim como meu sentido de tempo. E aí descobri que isso era possível — até então não achava.
Nunca tinha experimentado nada, digamos, psicodélico? Eu era muito arrogante, achava que a ciência explicava tudo. Daí em diante só fiquei com mais dúvidas.
Aí resolveu estudar neurociência. Fui para um laboratório de neurociência em Brasília, fiz mestrado no Instituto de Biofísica na UFRJ e daí pulei pro doutorado na Universidade Rockefeller, em Nova York. Lá conheci Cláudio Mello, que foi meu orientador. Eu queria estudar cognição. Se não fosse para lá, iria estudar com o Iván Izquierdo [um dos maiores especialistas do mundo em memória].
Como foi a mudança de país? Não foi fácil, mas foi boa. Mudou tudo, me deu régua e compasso. Uma coisa curiosa é que fui muito bem recebido pelos guardas da universidade. Eram todos negros, afro-caribenhos. Fiz amizade com eles instantaneamente. Eles me disseram onde comprar móveis, onde era mais barato. Aí saquei: no Brasil, eu era branco. Lá, eu era negro. E a adaptação ao inglês também não foi fácil...
Você não manjava inglês? Sabia, mas eles falavam rápido demais! Era frio, eles falavam, falavam, me dava um sono... Daí, voltava pra casa e dormia. Como dormia! Dormia às vezes 12, 18 horas direto. Tinha sonhos louquíssimos! Eu me sentia deprimido. Dividia o quarto e o banheiro com um russo que era horrível, sujava tudo, levava a namorada de noite, fazia barulho... Eu quase não tinha amigos. Então, eu me refugiava no sono. Aos poucos, fui vendo que nos sonhos treinava inglês, biologia molecular, decorava o nome das pessoas... Aí fui ler sobre isso. peguei o Princípios de Neurociência, do [Prêmio Nobel] Eric Kandel, a bíblia do assunto. E ele dizia que a ciência sabia muito sobre a origem do sono mas não sobre as funções do sono. Achei estranho, porque tinha uma lembrança de cultura geral de que privação de sono causa problema de aprendizado... e Freud, claro. Resolvi voltar a ler Freud e percebi que era o Kandel que estava errado: ele é que não sabia nada. Comecei uma linha paralela na universidade — na época, estudava, com o Cláudio, o canto dos pássaros [tese pioneira que Cláudio Mello e Sidarta desenvolveram, estudando o aprendizado dos pássaros canoros]. Terminei a tese e dei continuidade ao meu estudo, que é meu carro-chefe até hoje.
E a capoeira, foi também em NY que você descobriu? Comecei na UnB, quando tinha 20 anos. Me achava ridículo, me sentia velho... Não tem nada mais tolo do que um pós-adolescente [risos]. Aí, na segunda metade do meu doutorado, achei que tinha de fazer algo pro corpo. Tive um revés pessoal... que não quero falar aqui... e achei que precisava aprender a cair. Levei muito tempo pra reagir e intuí que a capoeira ia me dar alguma proteção. Em Nova York tem uma cena forte de capoeira, então fui atrás. Comecei com o contramestre Caxias, depois treinei com os mestres Boneco e João Grande. Foi uma terapia.
Falar em terapia, já fez psicanálise? Faço há três meses.
Algum motivo? Olha, foi um outro revés... mas também não queria falar nada disso não...
Você não gosta de se expor, né? Quer dizer, por um lado precisa, por outro, não gosta... Isso é algo interessante. A comunidade científica pega no pé quando a gente aparece demais. Claro, tem o lado do ego, que há muito tempo comecei a minar, porque é ruim. Por outro, a gente consegue atrair a atenção de investidores e aliados justamente porque está na mídia. O Miguel Nicolelis é um mestre nisso. Quando chega na vida pessoal é complicado. Tudo que sai na imprensa pode ser usado contra a gente. Tem essa crítica, dizem que somos muito pop. O Miguel, coitado, é bombardeado.
Os outros cientistas ficam em cima... Agora, depois desse simpósio em Natal, falei pra minha equipe baixar a bola. Senão a gente nem trabalha. Porque pra mídia pode ser interessante uma pesquisa em andamento, mas para a comunidade científica só quando o resultado aparece.
Voltando à análise... como é sua ligação com religião? Eu era ateu. Mas hoje tenho uma religião própria, tenho um altar em casa...
Que tem ali? Oxum, Oxalá, Nossa Senhora de Aparecida, Ogum, Oxóssi, Xangô, alguns santos, Salomão... tem a ver com a capoeira, mas é uma concepção própria. Tem dois tipos de deus. Um, infinito, que é Olodumaré, o universo. Sou parte dele, não adianta rezar para ele. Ele é o grande mistério, só merece contemplação. E tem os milhares de deuses que os homens criam, poderosíssimos, que são internos. São arquétipos, complexos de memórias. São como plantas: se você cultivá-los, eles estão lá. Se dou uma oferenda, cultivo — é como se regasse uma parte do meu cérebro que não sou eu. É uma outra coisa, com autonomia. Se você for médium, pode falar pelo seu corpo e falar pela sua boca. Mas não acredito que seja externo. É bem herético falar isso [risos]...
Acredita nisso por experiência própria ou por necessidade? Por ter entrado em estados alterados de consciência, abri um espaço para minha religiosidade. Em casa, não tinha isso, minha mãe era teosofista, eu achava rezar “pai-nosso” o fim da picada, uma coisa careta, primitiva. Com a capoeira, me interessei por nossos ancestrais e resolvi praticar uma religião. Hoje, acho lindo quando vejo uma cerimônia religiosa bacana, gosto de ir numa igreja, num templo budista, num terreiro.
Você consegue fundir neurociência com religião através da capoeira? Sim, foi uma interpretação neurocientífica dessas crenças. Xangô existe mesmo, existe com atributos autônomos na cabeça de quem acredita nele. Acho totalmente compatível. Não estou presumindo nenhum tipo de matéria extrafísica. Acho que os orixás são idéias, realidades biológicas dentro de um corpo neuronal. Não acredito em espíritos no sentido de ser externo ao corpo, mas... quem sabe? Eu não sei nada. Ninguém sabe nada. Você me diz que a gente veio do Big Bang. E antes do Big Bang? Ninguém sabe porra nenhuma. Temos que ter humildade.
E você tem um ritual? Sim, rezo antes de sair de casa e quando chego. A reza tem essa função: agradecer pelo que passou e planejar o que vem. É uma maneira de você focar seus objetivos, mobilizar suas energias para chegar aonde quer. Provavelmente, todo mundo que é de religião organizada vai falar que é um absurdo, mas... tudo bem, cada um na sua. Isso foi uma escolha minha: procurei os aspectos estéticos e musicais da religião iorubá para sincretizar com minhas crenças pessoais e assim ocupar um vazio espiritual.
Você poderia fundar uma religião, Sidarta. Taí um ótimo projeto pra depois dos 50 anos [gargalhadas]...
Por falar em projetos, como está o NatalNeuro? Ganhamos um excelente financiamento de entidades privadas e públicas agora, o que nos garante um horizonte de alguns anos para trabalhar. O difícil são as próximas etapas. Agora estamos treinando os estudantes para fazer estudos de grande qualidade. Daí temos de publicar essas teses. E temos de repetir isso muitas vezes, até criar uma tradição. Vim para Natal para ficar 30 anos. Minha missão é de longo prazo. Estamos vendo a germinação de sementes, mas o que queremos é ver uma grande floresta.
Deu uma vertigem quando você trocou os EUA por Natal? Foi difícil. O Miguel foi inspirador. Ele certamente é um maluco, assim como eu, mas uma loucura que faz falta — tem que ter no Brasil gente que corra riscos. Ele nunca deu pra trás, sempre me deu coragem. Não fosse o líder, isso não seria possível — nenhum de nós tem um vigésimo do peso científico dele. Teve uma vertigem quando lançamos o projeto, em 2003 — eu poderia achar empregos nos EUA em outras universidades, coisa que me abalou o ego: seria muito mais cômodo. Aqui, correria riscos. Mas eu não vim pra cá pra fazer o possível: vim fazer o melhor do mundo — aqui. Sabemos que falta muito, mas estamos no caminho. Se estivesse hoje nos EUA, estaria ralando pra ter dinheiro num laboratório com três pessoas. Hoje, temos aqui um futuro centro de excelência com um viés social fortíssimo, com 12 alunos, indo pra 20. E estar no Brasil me dá uma voz muito grande.
Acha que o Brasil passa por uma fase boa? Passamos por um momento crítico. Temos uma estabilidade econômica e política, a esquerda entrou em consenso com teses do centro e da direita, temos condições para um futuro brilhante. Estamos na “hora e vez de Augusto Matraga” [risos]. Os EUA estão conflitados, a Europa em crise, a gente tem terra, água, sol, álcool, biodiesel, está agregando valor a produtos... não podemos perder o bonde da história de novo. A China e a Índia não vão esperar.
Temos condições de brigar com eles? Eles estão à frente em termos de ciência. Mas a superpopulação deles atrapalha. Nós temos condições de liderar em áreas estratégicas. Temos um parque científico instalado, o Brasil tem descoberto sua vocação capitalista, mas precisamos liderar em áreas estratégicas. Correr atrás de um líder não é uma opção. Disputar todas as brigas não é uma opção. Disputar brigas já vencidas também não é uma opção. Então, quais são as áreas em que podemos ser os melhores no futuro?
Quais? Acredito que sejam quatro: pesquisas em célula-tronco, nanotecnologia, interface cérebro—máquina e a questão energética.
Em células-tronco há controvérsia... Recentemente, o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles criticou a pesquisadora Mayana Zatz com critérios religiosos (Ele disse: “A doutora Mayana Zatz tem também uma ótica religiosa, na medida em que ela é judia e não nega o fato. Na religião judaica, a vida começa com o nascimento do ser vivo. Então, ao defender a posição dela, ela defende a posição religiosa dela, que é judia e que a gente tem de respeitar”)... Horrível isso, uma vergonha. Há muito obscurantismo, gente que não entende nada. Essa questão da célula-tronco tem de ser observada do ponto de vista científico, não moralista. Somos um Estado laico. Está lá na bandeira nosso positivismo, Ordem e Progresso. Só faltou o amor, como diria o Jards Macalé [risos]. Esse avanço de célula-tronco no Brasil é heróico. E isso vai mudar tudo, né? Junto com a internet, as pessoas vão viver 200 anos e estar conectadas o tempo todo. Já imaginou?
E o que vamos fazer com esses “novelhos”? Estamos numa encruzilhada, um momento único da espécie. Podemos ir pra cucuia, se formos incapazes de entrar em harmonia... o planeta vai ficar gripado: frio siberiano na Inglaterra, mares subindo dez metros nos trópicos, todo esse apocalipse. Isso é realmente possível. Daqui a três anos podemos não ter mais esqui nos Alpes. E temos uma Terceira Guerra em curso. O couro come do Marrocos ao Paquistão, uma guerra global sem centro e fragmentária.
A gente vive uma guerra aqui no Brasil, também... Sim, além da guerra do Império com povos que detêm riquezas, temos uma outra, que é a guerra dos pobres contra os ricos. Se não dermos um salto de qualidade, podemos ter um futuro à William Gibson muito mais rápido: ricos vivendo mil anos e pobres vivendo 15. De certa maneira, isso já aconteceu! Por outro lado, pela primeira vez temos conhecimento para dominar a ecologia do planeta. Se a gente se organizar, pode transformar isso aqui num grande parque, não só para nós como também para as plantas e os animais. Atualmente, a situação default, eu diria, aponta pra dar merda [risos].
Falando em riquezas... você tem algum sonho de consumo? Rapaz, queria um dia ter um veleirinho. Sou uma pessoa muito pouco consumista. Detesto comprar. E, com o tempo, comecei a acumular menos coisa, ficar mais leve. Eu velejei muito quando adolescente, no Paranoá. Uma vez vim para Tamandaré, aqui em Pernambuco, e fiquei com isso na cabeça de morar num veleiro.
Como é sua rotina? Vou dormir meia-noite, acordo umas seis, sete. Daí vou pra praia, moro na beira da praia. Umas dez da manhã chego no Instituto, e fico aqui até umas dez da noite. Três vezes por semana faço capoeira de manhã. E fim de semana é igual.
E livros? Não tenho tido muito tempo. É mais no banheiro [risos]. Tou lendo o Federico Andahazi, argentino. Eles são muito bons, né? No cinema também.
A Argentina deu um olé na gente na literatura... Eles fizeram uma revolução educacional, no começo do século 19. Estive lá agora, não tem comparação. Tem problemas.^^~-_- mas eles têm três Nobel em ciência, a gente não tem nenhum.
Esse negócio de tecnologia de ponta em país pobre... Há quem diga que tem que resolver primeiro o problema da fome... Xiiii... é ruim essa história. A tecnologia ganha sempre. Pra que ter 5.000 tacapes? Basta uma metralhadora. A coisa funciona em termos não lineares. Se você avança na célula-tronco, muda toda a medicina: pra que tratar um fígado podre? Joga fora e cria outro [risos]! Imagine se o Brasil pensasse “Vamos investir primeiro em feijão, depois a gente pensa em internet”. Fodeu! Isso me dá uma preguiça... muita gente pensa assim. Este é um país muito pouco educado. Mas vejo com bons olhos, por exemplo, o atual programa de educação do governo. É nisso que temos de pensar: educação. Temos de ter urgência com a educação, não podemos vacilar, aproveitar que está todo o mundo de olho na gente pra acordar. Agora!
Karim Aïnouz
Em Praia do futuro, novo filme de Karim Aïnouz, um rapaz cearense se muda para Berlim. A sinopse é a mesma da vida do diretor, que saiu moleque de Fortaleza, perambulou pelo mundo e, há cinco anos, vive feliz na cidade alemã, de onde não pretende sair mais – pelo menos por enquanto Tudo a ver com a história de Karim. “É, eu sei que é totalmente autobiográfico, mas eu finjo para mim mesmo que não é, para não ser muito egoico”, ele ri, em um café próximo à casa onde mora com o namorado, Mario Brandão, companheiro de viagem há dez anos. A sinopse parece, sim, a vida de Karim, o menino filho de uma bióloga cearense com um engenheiro argelino. Os dois se conheceram quando a mãe do cineasta fazia pós-graduação nos Estados Unidos. “Ela voltou para Fortaleza grávida, e o meu pai, que estava fugindo da Guerra da Argélia, logo voltou para lá porque a situação se normalizou.” O menino do filme que olha para o mar quer conhecer o mundo e encontrar o irmão mais velho. “Eu sei, é igual à minha história com meu pai. Afinal, ele foi embora, nunca mais voltou, e só fui conhecê-lo de novo em Paris, quando eu tinha 18 anos”, ele diz. Karim, que foi criado pela mãe e pela avó, recebia cartões-postais do pai mandados de vários lugares do mundo. E, segundo ele, nasceu para botar o pé na estrada, coisa que fez com 16 anos e nunca mais voltou. “Acho que quando a gente sai da cidade natal é uma ruptura. É muito difícil voltar.” Karim morou em Brasília, Paris, Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo. “Agora acho que estou na minha última parada”, ele diz. “Adoro perder avião” Quer dizer, mais ou menos. Apesar de amar Berlim loucamente, Karim não para na cidade. O cinema de Aïnouz é um cinema de viagem. Ele é autor de O Céu de Suely e Viajo porque preciso, volto porque te amo. Os dois se passam nas estradas do Nordeste. “Eu tenho, sim, essa coisa com viagem e ruptura. Inclusive porque eu amo viajar, amo um aeroporto, amo avião. Sabe o que eu mais gosto? Quando o táxi que vai me levar para o aeroporto chega na minha casa. Amo aeroporto, conexão longa, tudo. Esse é um momento bom da vida, porque a gente não tem que controlar nada. Se o avião atrasar, não é culpa nossa, se tiver trânsito, também não, pega outro.” Sim. Eis o primeiro homem na Terra que gosta de perder conexão e é capaz de escolher voos com várias conexões. “Esses são os mais gostosos.” Ele consegue ficar, no máximo, três semanas sem viajar. No dia seguinte à entrevista, daria uma palestra em uma cidade do interior da França. “Eu até podia não ir, mas, sabe, acabo falando sim, porque vai ser legal, tem que pegar um avião para Paris, depois um trem que dura 4 horas, e eu adoro tudo isso.” Um diretor de cinema controla muita coisa, por isso, Karim acha bom perder o controle de vez em quando. “Eu gosto de mandar, claro que gosto, senão, não seria diretor de cinema.” E ele é centralizador.Gosta de ter a ideia, sempre muito pessoal, de escrever o roteiro junto com colegas, filmar. Mas o que ele gosta mais é de editar. Esse é um momento de introspecção. É como um artista pintando. Ele edita em Berlim, perto da sua casa. Mas continua, sim, com os dois pés no Brasil. De dois em dois meses, viaja para Fortaleza para coordenar uma oficina de roteiro e visitar a mãe, de 82 anos. “Adoro, fico com ela, cuido, gosto de trabalhar no Brasil.” Em Praia do Futuro, Karim conseguiu o inimaginável. Juntou uma equipe alemã e brasileira. Deu certo. O diretor é premiadíssimo: já ganhou mais de 30 prêmios internacionais e hoje desfila com tranquilidade no tapete do Festival de Berlim, com amigos na cidade como o cineasta Wim Wenders, que o convidou para o projeto Catedrais do futuro, coordenado por ele. Em uma exibição de Viajo porque preciso, volto porque te amo, em Berlim, Karim foi aplaudido de pé e teve o filme elogiado publicamente pelo cineasta de Asas do desejo. Era 2010. “Nossa relação começou ali.” A voz do metrô Karim se apaixonou pela Berlim de Asas do desejo em 2004, quando morou na cidade após ganhar uma bolsa de estudos do Estado alemão e viver na cidade por um ano. Quatro anos depois estava de volta, com dois gatos e tudo mais que tinha em São Paulo. “Eu queria demais morar aqui. Mas na hora em que estava tudo empacotado em casa em São Paulo eu olhei para o Mario e comecei a falar: “Meu Deus, o que estamos fazendo? Estava tudo bem aqui, tínhamos uma casa, tudo direito... Por que a gente está indo?”, ri. Hoje, não se arrepende nem por um momento da escolha que fez. "Amo aeroporto, conexão longa, tudo. É um momento bom, porque a gente não tem que controlar nada" “Estou numa fase muito boa. Tenho 48 anos e moro em uma cidade onde você pode ser jovem com qualquer idade. Aqui é como uma cidade do interior. Compro meu bilhete de um ano de metrô, ando a pé. Em São Paulo estava ficando doente, engordando, porque tudo o que fazia era ir a restaurante.” A relação de Karim com a cidade é daquelas apaixonadas. “Lembro que, depois de ter morado aqui, vim para ficar só uns quatro dias e na hora de ir embora não parava de chorar, de tão desesperado que estava por estar indo embora.” Ele diz que para fazer um filme precisa sentir tesão pela cidade. E é isso o que ele sente por Berlim. Principalmente pelos terrenos abandonados (reflexos da guerra e da queda do muro de Berlim). “Esta é uma cidade que ainda está sendo construída. Isso é muito maravilhoso.” Se sente esse tesão por Fortaleza, onde filmou e nasceu? “Sinto especialmente pela Praia do Futuro, esse lugar que está acabando porque o mar está destruindo as dunas.” Terrenos baldios, dunas, essas são as paisagens de que Karim mais gosta. Uma vez, em São Paulo, o encontrei na padaria do bairro de Pinheiros, onde ele morava. “Estou com uma saudade de Berlim”, ele disse. “De quê?” “Daquela voz que fala no metrô.” A voz é uma gravação de uma mulher que fala em alemão algo como “Saia de perto da porta”. “Pois é. Claro que eu botei a voz no filme, né?”, ele diz. “São esses detalhes todos que fazem a gente amar uma cidade.” Praia do Futuro, afinal, é ou não é autobiográfico? O personagem principal, assim como você, é de Fortaleza e se muda para Berlim... A coisa mais autobiográfica de todas é essa de sair de casa e ir para o mundo. Claro que o filme é sobre a minha casa e sobre a casa onde eu decidi viver. Mas é mais amplo. É sobre quando você sai de casa. Acho que, quando você sai, não pode mais voltar. E eu saí de casa muito cedo. Fui para Brasília, Nova York, Paris. Agora estou em Berlim. Eu fui inventando essas casas na vida. Uma amiga dizia que alguém tem que morar em muita casas para não ter uma vida chata. E eu acho que é verdade. A coisa central do filme é sair de casa e se reinventar. No filme, o personagem desaparece e inventa uma nova vida. Essa é uma fantasia sua? Eu sempre tive vontade de sumir. Essa é uma fantasia. Começar sem passado. Isso é impossível, o passado sempre volta e te assombra. Eu queria, precisava, filmar Berlim. Esse filme só podia ser aqui. Esta cidade é nova. Filmei por amor. Filmar, para mim, é foder o lugar. Tenho que ter tesão. E precisava fazer isso com Berlim. O que faz você se apaixonar por uma cidade? Coisas pequenas. A voz do metrô, por exemplo. Eu coloquei no meu filme duas vezes. É tão lindo... Queria também filmar meu bairro. E os terrenos baldios, que eu adoro. Berlim está sendo construída ainda. Tem a coisa das bombas... Hoje eu estava voltando do médico, andando por uma rua que conheço. Olhei para dentro de um portal e era um lugar que provavelmente foi bombardeado. Olha isso! Quando morei aqui em 2004, escrevi o roteiro de O Céu de Suely, mas fotografei muito a cidade. Tenho centenas de fotos. Esse filme foi como voltar para essas fotos. Eu gosto dos sons, dos não lugares. Falar que é um hino de amor à cidade é muito pretensioso. Mas digamos que eu escrevi uma carta. "Filmar, para mim, é foder o lugar. Tenho que ter tesão e precisava fazer isso com Berlim" E é uma carta de amor a Fortaleza também? Não para Fortaleza. Mas para a Praia do Futuro. Esse era um lugar muito importante na minha infância, e é uma praia que está acabando. O filme começa com um cara olhando para o horizonte. Ele é salva-vidas, mas a praia é vazia. Você era tipo esse menino quando morava em Fortaleza? Outro dia achei uma coisa interessante na casa da minha mãe. Ela vinha para a Europa todo ano, porque é pesquisadora de bioquímica. Achei um livro que eu fiz assim que comecei a escrever, com 6 ou 7 anos. Ela ficava tipo dois meses fora e me mandava muito cartão-postal. O primeiro livrinho que eu fiz para a escola foi com os lugares que eu queria ir. Eu ficava com a minha avó. E morria de inveja [risos]. Tinha a coisa do meu pai também... Qual é a história do seu pai? É uma história muito louca! Meu pai é de uma tribo da Argélia. Ele largou a gente e foi para a Argélia, depois para a França. E ficava me mandando cartão do mundo todo. Ele era engenheiro, ia para Tóquio, Arábia Saudita, só esses lugares sensacionais. Na verdade ele queria que eu fosse encontrar com ele. Mas minha mãe não deixava, tinha medo de eu ir e não voltar. Eu tinha esse imaginário do mundo, sempre esteve muito presente em mim. E, uma hora, eu comecei a rasgar essas cartas do meu pai [risos]. Teve um dia, com 8 anos, que eu rasguei várias. Tipo assim: “O que esse cara pensa? Isso é uma tortura! Fica me mandando essas cartas e não vem aqui”. Eu já queria ir, mas não podia... Onde seus pais se conheceram? Meu pai conheceu minha mãe nos Estados Unidos. Minha mãe fazia doutorado e ele, mestrado. Isso foi nos anos 60, logo depois da Guerra da Argélia. Na verdade, meu pai foi condenado à morte e meu avô também, pelos franceses. Meu avô mandou meu pai para os Estados Unidos para ele estudar e ficar protegido. Eles casaram lá, namoraram por dois anos e foram morar no Colorado. Ele voltou para a Argélia, porque a situação já estava melhor. E lá ficou. Minha mãe voltou grávida para Fortaleza e eu fiquei com ela. Esse desejo de ir embora está no meu DNA. Fui criado para me largar. E Berlim é a minha ultima parada. Por enquanto, né [risos]. Você pensa em se mudar daqui? Não acho que saio daqui tão cedo, viu? Tenho uma rotina tão gostosa, estou tão feliz... Mas viajo o tempo todo. Eu falo: “Vou ficar três semanas sem viajar”. Mas não consigo. Por que não? É esquizofrênico. Estou sempre falando: “Que legal ficar aqui, vou ficar dois meses sem viajar”. Aí de repente aparece uma coisa para fazer, eu aceito e entro no avião [risos]. Tipo amanhã eu vou para Rennes, na Bretanha, para uma retrospectiva. Na verdade, não precisava ir. Mas eu não aguento. Pegar avião é tão gostoso! Estou coordenando também uma oficina em Fortaleza, então vou para o Brasil a cada dois meses. Isso para mim é perfeito, porque tem a parte da ruptura que eu adoro. Aqui eu meio que me escondo. É muito fácil de desaparecer. Estamos no leste, longe. Mas estou muito presente em Fortaleza. Acho que eu nunca fui tanto ao Brasil desde que moro fora. É incrível. E o avião parece que é um trem. Você não fica cansado de pegar tanto avião? Não. Eu adoro avião! Adoro! Quando chega o táxi para me levar para o aeroporto é o momento de maior felicidade da minha vida. Essa viagem para Rennes, por exemplo, é ótima, porque tenho que pegar um avião, depois um táxi, ir para a estação de trem... Tudo isso em uma viagem que vai demorar só 3 horas. Então você gosta de viagem que demora? Adoro! Amo conexão. E amo ainda mais perder conexão. Juro [risos]! Eu amo hotel de aeroporto. Minha vontade é ficar um ano entrando e saindo de avião. Tô amando que nessa viagem para a França tenho 4 horas no [aeroporto] Charles de Gaulle. Já estou pensando no que vou escrever lá, planejando. Adoro viagem pingada [risos]. Essas de ir para o Brasil, amo. Faço Berlim, Munique, Lisboa, Fortaleza. Eu amo, amo mesmo. Você gosta de trocar de avião? De fazer conexão? Sério? Sim, é meio louco. Mas eu adoro. Na volta tem 6 horas de espera no aeroporto. É uma casa para mim o aeroporto de Lisboa. Mas paraíso para mim mesmo é o aeroporto de Frankfurt. Amo o aeroporto de Frankfurt. Amo [gritando]! E o de Guarulhos? Não gosto. É muito vermelho e marrom. Prefiro ir por Fortaleza para não ficar preso em Guarulhos. Mas eu gosto de voo longo, de tomar café da manhã. Não ligo para classe econômica, nada disso. Eu me preparo. Entro, brinco de casinha. Tenho um kit. Coloco aquele travesseirinho que eu assopro, a máscara e o cinto. Quanto está taxiando, eu já dormi. Adoro! E gosto cada vez mais porque não tem telefone, internet. São os poucos momentos em que a gente consegue desligar. E avião tem outra coisa maravilhosa: a gente não tem que controlar nada! Os outros que controlam. Se atrasar, se cair, não é problema nosso. Estou entregue. Se tiver trânsito e eu perder o avião, é culpa do táxi, não minha. Pego outro. Eu sei que é meio maluco. Mas eu amo [risos]. Imagina, horas sem responder e-mail! Isso é maravilhoso! Você tem fobia de receber e-mail? Tenho visto muita gente sofrendo disso hoje em dia. Não gosto de receber e-mail. Você já recebeu um com alguma notícia boa? Falando que você recebeu uma grana, ganhou um prêmio? Nunca. É sempre um pedido, uma cobrança. A carta tinha uma coisa bonita, de contar história. E-mail é sempre cobrança. Coisa que você tem que resolver. Você nunca recebe um e-mail que você se deleita. É muito chato. E isso de ter pessoas com acesso direto é muito louco. Eu não consigo não responder. Sofro com isso. É horrível. "Eu não tenho tanto conhecimento de cinema assim. Não tenho vergonha de falar isso" Você disse que gosta de não ser o responsável por controlar as coisas quando viaja. No set você tem que controlar tudo, não? Sim, eu concentro tudo. Sou centralizador. E, quando não estou, parece que dá errado. Estou na ideia, no roteiro. Em todos os processos. Tenho tentado não estar com as duas mãos no processo. Mas é difícil para mim. Preciso fazer teste de elenco. Preciso estar perto. E, por exemplo, eu superencano com o pôster. Por isso eu acho que eu não conseguiria fazer um cinema comercialzão. Meu pôster normalmente não é o mais comercial. Eu fico pirando. Fiz com um cara e ele, de julho a novembro, me mandava coisas. Eu estava no avião, no mais gostosinho, de Lisboa para Frankfurt. E quando cheguei em Frankfurt, como sempre, tive uma epifania! Aqueles corredores de granito, a voz daquela mulher em alemão. Aí pronto. Veio a ideia do pôster. Eu gosto de controlar, gosto, sim, de mandar. Adoro mandar. Eu fiz colégio militar, né? Como assim? Fiz colégio militar, vê se pode? E por ideia minha. Imagina, minha mãe era de esquerda e não queria de jeito nenhum. Fiz por vontade própria, para me rebelar, né? Imagina, coitada da minha mãe, dando aula na universidade, tendo que falar que o filho estudava no colégio militar. Imagina que vergonha. Claro, um ano depois eu desisti. E ela não deixou. Falou: agora fica até o final! E era horrível? Cara, deve ter sido. Mas eu não lembro de ter sido horrível, não. Tenho uma coisa Pollyanna com as memórias e acho que tudo foi meio bom, apesar de que deve ter sido meio ruim [risos]. Mas tinha um lado legal. Aprendi muita disciplina. E isso é fundamental no set. No set você tem que ser militar. Qual a parte do processo de fazer um filme que você mais gosta? Eu gosto de tudo. Gosto do ofício. Mas acho que o que mais gosto é a montagem. É uma hora de se recolher. Você fica igual a um pintor. Você tem aquele material e pode mudar tudo, se quiser. Eu gosto dessa coisa do controle. E no set você não tem. Tudo pode dar errado. O ator pode cair, pode começar a chover. Em última instância, você não tem controle nenhum. Quando você decidiu fazer cinema? Quando eu era adolescente nem passava pela minha cabeça fazer cinema. Essa profissão não existia. Então, como queria sair de casa, resolvi fazer arquitetura. Queria ir para São Paulo. Mas eu tinha uma prima em Brasília, por isso fui morar lá. Minha mãe não tinha dinheiro para me bancar em São Paulo. Depois de dois anos em Brasília pensei: “Nem morto, preciso sair daqui!”. E fui continuar a faculdade em Paris, foi quando eu encontrei meu pai. Tive que voltar porque a minha mãe não me deixou ficar, mas fui para Brasília. Para Fortaleza, mesmo, nunca voltei. Acho que a gente só volta para casa para visitar mesmo. E depois você foi morar em Nova York... Um dia meu pai me deu um presente. Ele me mandou um cheque de US$ 5 mil. Imagina, US$ 5 mil para um adolescente! Eu fui para os Estados Unidos para trocar o cheque, vê se pode! Porque tinha câmbio negro, aquelas coisas. Você acha que eu voltei? Claro que não, né? Eu tinha 21 anos e estava em Nova York com US$ 5 mil na minha mão. Comecei a fazer mestrado em arquitetura e a fazer uns cursos de teoria de cinema. Mas não era para fazer cinema. Nem tinha tanto interesse no assunto! Era mais para estudar psicanálise, arte, outras coisas. Aí fui me encantando, mas pelo viés teórico. Fiz mestrado em cinema e, na hora do doutorado, comecei a encher o saco de tanta teoria. E vi que era possível fazer. Conhecia pessoas que faziam curtas, essas coisas. Imagina, ninguém no Brasil fazia isso. Nem existia cinema no Brasil! E você começou? Entrei em um projeto de estudo legal e conheci o Todd Haynes [diretor independente americano]. Aquilo me deixou muito encantado. Pensei: “Tem gente fazendo filme com boneco, que legal”. Sabe o que eu fiz? Bati na porta da casa dele e pedi um estágio. Ele aceitou na hora. Fui para limpar lata de lixo, claro. Mas foi maravilhoso. Eram pessoas idealistas, que faziam cinema para mudar o mundo, tinha um projeto coletivo. Eu até hoje acredito nisso, em trabalhar com amigos. Isso foi fundamental para a minha formação. Sempre faço cinema com idealismo. Ele era guerreiro. Fazia filme de US$ 80 mil com efeito especial. Acho que continuo a fazer cinema por causa dessa experiência. E cinema dá dinheiro? Lembro que esse filme dele deu dinheiro. Custou R$ 80 mil, e deu R$ 300 mil de bilheteria. Comecei a aprender um pouco sobre mercado e vi que o cinema poderia ser uma coisa viável. Aí pensei: “Também posso”. E comecei a fazer meus curtas. Mas não era um projeto de carreira. E não tenho tanto conhecimento de cinema assim. Não tenho vergonha de falar isso. Você nunca foi um cinéfilo? Não. Quando eu morava em Brasília, o lance era ir ao cineclube. Eu ia, mas não porque eu era cinéfilo. Eu ia para paquerar, porque era sexy. E no meio-tempo, claro, fui me encantando, vendo ciclos de Herzog, um monte de coisa. E quer saber? Até fazer Madame Satã eu não sabia nada de cinema [risos]. Foi um blefe [risos]. Se você não sabia nada de cinema, como conseguiu levantar dinheiro para o filme? Eu “obcequei”. Sou muito teimoso. Comecei a pensar que as pessoas deveriam conhecer a história daquele cara, me apaixonei pelo Madame Satã. Achava que era um absurdo todo mundo saber sobre Chateaubriand, Getúlio Vargas e não saber sobre ele. Eu sou teimoso. Muito teimoso. Encarei isso como uma missão: “Tenho que contar a história desse cara!”. E achei que pelo cinema era a maneira mais glamourosa de contar. Fiquei seis anos tentando, enchendo o saco das pessoas. Uma hora desisti e resolvi estudar business em Nova York. Pensei: “Estou louco, estou há seis anos tentando fazer essa merda. Chega!”. Aí começou a entrar dinheiro... "Achava um absurdo todo mundo saber sobre Chateaubriand, Getúlio Vargas e não saber sobre Madame Satã" E por que foi um blefe? Eu trabalhei em uns três filmes em set e era um péssimo assistente de direção. Trabalhei com montagem por muito tempo, era bom, mas era péssimo como assistente. Como montador, comecei a ver muito filme, alugava mesmo, em VHS. Mas nunca tinha feito set. Fiz o dever de casa, muita pesquisa, storyboard. Mas, quando eu cheguei no set no primeiro dia de filmagem, não sabia o que fazer. E, menina, eu tinha mobilizado dezenas de pessoas! Não era um orçamento de R$ 80 mil, era uma produção de R$ 1 milhão! Estava o Walter Carvalho, era uma produção de uma festa, então tinha bicho, umas frutas. Fugiu do meu controle. Eu não conseguia fazer. Sabe quem salvou? O Lázaro Ramos, que fez o Madame. Ele estava fazendo aquilo com tanta verdade que cumpri o dia. Voltou para casa desesperado? Pensei que tinha jogado tudo no lixo, né? Não tinha experiência. Fiz planos sem foco. Foi ridículo [risos]. No dia seguinte, a gente filmou em uma delegacia de polícia. E aí eu pensei: “Agora eu vou fazer tudo direito”. E fiz. Quando cheguei na linha de montagem e vi como tinha ficado, usei coisas do primeiro dia no filme. Porque podia não ser correto, mas tinha muita verdade. Eu aprendi fazendo o filme. Eu não sabia o que era lente. Pensa que absurdo! E eu devia saber, né? Vamos combinar? Como eu me meti a fazer cinema sem saber isso [risos]? E agora, você sabe? Fui aprendendo. Tenho um domínio muito maior do cinema do que tinha antes. Nesse filme, acho que já dá para perceber que eu tenho um domínio maior. Mas você não tinha em O Céu de Suely, seu filme mais premiado? Não, quer dizer, acho que eu tinha bem mais ou menos, né [risos]? Mas aí volto para esse meu começo de pessoas fazendo filme por idealismo. Sei lá, se você faz de verdade, acaba dando certo. O que você acha da atual situação do Brasil? Acho que não está desesperadora, está melhor do que foi em muito tempo. Quando a gente era criança, tinha aquela coisa: o FMI, a inflação. Mas, ao mesmo tempo, acho que as coisas estão muito estranhas. E não é só no Brasil, é no mundo. Eu fico abismado com essas passeatas na França contra o casamento gay. Gente, o que está acontecendo? E o número de crimes homofóbicos no Brasil, esses Felicianos? Acho que tem uma virada à direita muito grande. Eu realmente não consigo entender o que está acontecendo. Sempre acho que a história anda para a frente, e isso não está acontecendo. O mundo anda muito conservador, esquisito. Não estou entendendo o projeto do Brasil. Existe um plano para o futuro? Existe um projeto para São Paulo? Existe transporte público, arquitetura? Não, deu tudo errado. Então, é isso, está tudo melhor. Mas, ao mesmo tempo, não estou conseguindo decifrar certas coisas. Acho que a gente tem que olhar com cautela. Vai ver é só um momento estranho. O Brasil cresceu no susto. Ninguém imaginava que o país fosse crescer economicamente, nem em sonho. E nesse filme você fala do amor entre dois homens... Eu faço questão de falar dos temas que me interessam. Acho que as pessoas estão com muito medo e tento mostrar isso. O filme mostra, sim, uma cena de sexo forte entre dois homens. Eles estão tentando se salvar. Mas quis falar sobre homem. O Céu de Suely e Abismo prateado são sobre mulheres. As mulheres são muito importantes na minha vida. Fui criado pela minha mãe e pela minha avó. Mas tive essa vontade de falar sobre o masculino. De mostrar que homem chora, sente, sofre, se ama, se ajuda, se fode. Quis, sim, fazer um filme masculino. Praia do Futuro só tem três personagens. Mas eles passam por experiências que a gente não associa à masculinidade. Fiquei com vontade de mostrar homem marrento, mau, rebelde. Tem homem que é super-herói, homem que é covarde. Sempre quis fazer um herói covarde, acho isso bonito. Pensa, peguei um salva-vidas, um clichê de um super-herói, e fiz esse salva-vidas fazer bobagem. Em todos os seus filmes você fala sobre viagem... Todos os meus filmes falam sobre a mesma coisa: viagem e abandono. Esse resolvi contar de outra maneira. Agora, meu sonho é fazer um “Estou em um momento da vida em que me sinto mais livre para experimentar”. Antes eu pensava que tinha que fazer um cinema com olhar crítico sobre o mundo, ainda acho isso. Mas agora acho que estou mais livre. Você é filho único? Eu sou filho único, mas tenho uma irmã. Minha mãe tem o maior problema com isso. Ela viajou uma vez para Paris e descobriu que o meu pai tinha se casado de novo e tinha uma filha. Ou seja, meu pai é bígamo, porque nunca se separou da minha mãe. Eu tenho uma boa relação com meu pai. Quando vou a Paris, janto com ele. Mas é uma relação meio distante. Você é muito próximo da sua mãe? Totalmente. Muito mesmo. Ela está velhinha agora e doente. E, como sou filho único, tomo conta de tudo. Filho único é tão difícil, né? Às vezes, acho que devia ser proibido por lei. Essa é uma das razões de eu fazer esse trabalho em Fortaleza. De dois em dois meses, vou ver a minha mãe, fico na casa dela, levo no médico, tomo todas as decisões. Estou aqui em Berlim, mas, se ela precisar de mim, vou para Fortaleza correndo. Você está casado com o Mario (Brandão, artista plástico) há muito tempo. Isso te dá segurança? Totalmente! Imagina, estamos juntos há dez anos. Nos conhecemos em Nova York. Tenho para onde voltar nesta minha vida louca de viajar o tempo todo, isso é muito, muito importante para mim. "Tenho para onde voltar nesta minha vida louca de viajar o tempo todo. Isso é muito, muito importante para mim" Às vezes você se arrepende de morar fora do Brasil? Olha, vou te contar uma história. Eu fiquei quatro anos obcecado, querendo voltar para Berlim. Convenci o Mario, que não estava assim tão certo. A gente estava morando em São Paulo e eu estava com um trabalho estável [fazendo a minissérie Alice, para a HBO]. Mas desalugamos o apartamento e empacotamos tudo. Tive um ataque. Olhava aquele apartamento todo empacotado e falava para o Mario: “Meu Deus, por que a gente está fazendo isso? Estamos loucos, estava tudo bem aqui. Por que estamos indo?” [risos]. Mas, assim que eu cheguei, vi que tinha feito a escolha certa, e não penso em ir embora tão cedo. Hoje estou muito feliz, fui ao médico e ele disse que estou com a saúde ótima, que posso viver mais 50 anos. Aí vim no metrô pensando: “Que ótimo, eu posso viver mais 50 anos em Berlim” [risos].
No novo filme do diretor Karim Aïnouz, Praia do Futuro, um menino olha para o infinito do mar por minutos. Esse menino poderia ser Karim, cearense e viajante de alma. Praia do Futuro, que se passa em Fortaleza (cidade onde nasceu) e Berlim (cidade onde mora há cinco anos), conta a história de um salva-vidas (papel de Wagner Moura) que vive uma paixão intensa com um alemão, viaja para vê-lo e nunca mais volta. Anos depois, seu irmão mais novo vai ao seu encontro na mesma Berlim.
Anderson Silva
Quando o assunto é racismo, Anderson Silva costuma fazer como nos ringues: mais esquiva do que ataca. Mesmo assim, não escapou de passar por situações de preconceito ao longo da vida. Quais? ele conta a seguir. E fala também sobre aposentadoria, homossexualidade e de como ficou careca depois de tanto alisar o cabelo Anderson Silva tinha 16, 17 anos, um currículo que incluía aulas de capoeira, tae kwon do, balé e sapateado, e fazia o melhor cover de Michael Jackson das festinhas black de Curitiba. Ele montou com os amigos um conjunto que imitava as coreografias dos grandes grupos de funk, soul e disco americanos; sua tia Edith costurava as roupas, todas iguaizinhas, com a indefectível calça meia canela acompanhada de meias brancas. Mas Anderson só saía de casa depois de um ritual sagrado: aplainar o cabelo crespo com generosas quantidades de creme Alisabel. Problemas de autoimagem? Racismo às avessas? Imposição da sociedade de consumo? Desejo inconfesso de se tornar branco como seu ídolo Jackson? Anderson tem uma explicação mais singela: “Eu só queria poder jogar meu cabelo nas festinhas”. O resultado foi desastroso: os cachos alisados à força foram substituídos por uma lustrosa careca – que, por ironia, acabou virando marca registrada. Até hoje há quem ache que o lutador raspa a cabeça para atemorizar adversários. A verdade é que Alisabel venceu Anderson por nocaute. Para um garoto negro, pobre e que havia sido enviado de São Paulo pela desesperançada mãe, aos 4 anos, para ser criado por uma tia e sua família, não foi moleza crescer na pálida Curitiba. Anderson diz ter enfrentado inúmeros episódios de racismo durante a infância e a adolescência. Houve a vez em que um policial o abordou num ponto de ônibus, lhe deu um peteleco na cabeça e um soco no estômago – porque ele, único pele preta num grupo de amigos brancos SÃO SEBASTIÃO DE BERMUDAS Corta para um estúdio de São Paulo, março de 2014. Anderson posa calado e paciente para o fotógrafo Marcos Vilas Boas com seis flechas cortadas e coladas a seu corpo, com sangue falso escorrendo pela regata branca. A imagem produzida pela Trip homenageia a clássica capa da revista norte-americana Esquire de abril de 1968, em que o boxeador Muhammad Ali aparece em pose que remete ao martírio de São Sebastião, o militar que foi flechado por ordem do imperador Diocleciano por proteger cristãos. Naquele momento, o martírio de Ali – célebre por sua luta pelos direitos civis dos negros e contra o racismo – era político: ele havia sido preso e destituído de seu título de boxe por se recusar a se alistar na guerra do Vietnã. Já o martírio de Anderson hoje é sobretudo físico: ele se recupera de uma delicada cirurgia depois da chocante fratura de sua tíbia e sua fíbula esquerdas durante o combate de dezembro passado contra Chris Wideman, em que perdeu a chance de reaver o cinturão dos pesos médios do UFC (Ultimate Fight Championship). Embora seus estilos de boxeadores-bailarinos se assemelhem, Ali e Anderson são bastante distintos nos posicionamentos políticos. Ao contrário do americano, o brasileiro se recusa a levantar bandeiras quando o assunto é racismo. Seu discurso remete ao de outro grande atleta negro, Pelé – que, ao fazer seu milésimo gol em 1969, dedicou-o às criancinhas brasileiras, em frase que à época foi tachada de demagógica pelas patrulhas ideológicas. “Quando perguntam minha opinião, eu dou, mas prefiro evitar polêmicas”, afirma Anderson. “Há outras coisas mais importantes em que a gente tem que focar, como as crianças do nosso país.” "Me arrependi de usar alisabel, perdi meu black power" Depois de meia hora parado como um São Sebastião de bermudas brancas e bíceps inflados, Anderson pede pressa porque começa a sentir câimbras – ainda um efeito colateral da delicada cirurgia por que passou há três meses. Considerado por muitos o maior lutador da história do MMA (artes marciais mistas), prestes a completar 39 anos neste 14 de abril, ele dá nota 9 para a recuperação da sua perna, confirma que pretende voltar a lutar no ano que vem, mas ainda não sabe dizer quando e como pretende encerrar sua carreira. De certeza, apenas uma: na ativa ou aposentado, nunca mais veremos seus cabelos encaracolados. “Me arrependi de usar Alisabel, perdi meu black power.” Você acaba de refazer uma foto clássica do Muhammad Ali, que é um dos seus ídolos. Além de um grande boxeador, ele foi um cara que usou a fama para combater o racismo. Você às vezes sente vontade de fazer o mesmo aqui no Brasil? Quando sou abordado para falar sobre qualquer assunto político, seja racismo ou não, eu dou minha opinião. Mas prefiro me manter calado e evito polêmicas nesse sentido. Por quê? Não acho legal. Não que não seja importante. Mas tem outras coisas mais importantes em que a gente tem que focar e gastar mais energia. No esporte, na família? Na família. Nas crianças do nosso país. Hoje eu fui ao hospital do Graacc [Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer] e vi um monte de crianças que estão ali passando por milhões de dificuldades, muitas sem perspectiva de vida, mas lutando para ser felizes. Então eu prefiro focar nessas coisas. Serve para que a gente entenda que nossos problemas são tão pequenos perto do que algumas pessoas passam. O jornalista Ali Kamel, da TV Globo, escreveu um livro chamado Não somos racistas. Você concorda com a afirmação do título? O Brasil não é racista? Eu não acredito que o Brasil seja um país racista. Nós temos casos isolados de racismo. O Brasil tem muita coisa pra melhorar em relação ao racismo, política, saúde, educação. Mas acredito que a gente tem chances de mudar. Só não podemos perdê-las. Você se lembra da primeira vez em que foi tratado de forma diferente por causa da cor da sua pele? Houve várias situações. Mas eu nunca tive problema com isso porque lá em casa a gente sempre foi muito bem instruído pela minha tia Edith a lidar com essas situações. Que tipo de coisa sua tia falava? Ela sempre reforçou que somos todos iguais, independentemente de ser negro, branco, amarelo, roxo, de ser rico, pobre. Quando você tem essa consciência, tem capacidade de lidar com certas situações. Por mais que elas acabem te deixando um pouco constrangido, por mais que elas te magoem, você aprende a lidar. Mas você pode falar de alguma situação específica? Uma vez eu trabalhava como atendente em uma lanchonete, e um cliente perguntou: “Não tem ninguém para me atender?”. Eu respondi: “Estou aqui para atendê-lo”. Aí ele falou: “Eu não quero ser atendido por um negro”. Fui até meu gerente e falei que tinha um senhor que não queria ser atendido por mim. O gerente foi até o balcão, e o cliente falou: “Não quero ser atendido por um negro, isso é um absurdo”. Aí o gerente respondeu: “Se você não for atendido por ele, você não vai ser atendido por mais ninguém aqui”. Aí aquele senhor saiu da loja meio bravo. "Nós estamos vivendo um momento em que não cabe racismo no mundo" Hoje, olhando esse caso tantos anos depois, você acha que tomou a melhor atitude na situação ou acha que deveria ter processado essa pessoa? Caberia esse processo. Mas aí eu iria perder meu dia de trabalho, teria que ir até a delegacia e não daria em nada. Porque nossa lei, por mais que exista, é muito falha. Principalmente em relação a esse tipo de coisa. Na época, meu caso não teria nenhuma repercussão. Agora, sim. Mas antigamente eu era uma pessoa comum. Hoje em dia eu tenho uma vida um pouco mais restrita, tem alguns lugares aonde não vou, por causa do assédio. Nos últimos anos, não tenho passado por nenhum constrangimento desse tipo. Você acha que a fama que conquistou nos últimos anos protege você do racismo ou você acaba sendo mais visado? Depende muito das situações. Quando se fala em racismo, a fama acaba me deixando mais visível e mais desprotegido em alguns sentidos. Mas depende muito da sua postura, da forma como você lida com isso. Você agora mora em Los Angeles, mas passa muito tempo no Rio. Você acha que o racismo é mais grave no Brasil ou nos Estados Unidos? Racismo é ruim em qualquer canto do planeta. Nos Estados Unidos existe também, até muito mais que no Brasil. Eu nunca tive problema com racismo em Los Angeles. Acho que as coisas estão mudando, as pessoas estão aprendendo que todos são iguais perante Deus, independentemente de cor, de raça. Eu costumo dizer que o confronto é inevitável no homem, que a cor é só uma desculpa para desencadear essa loucura, essa falta de respeito que as pessoas têm umas com as outras. Eu sou muito bem resolvido com essa coisa de racismo. Nós estamos vivendo um momento em que não cabe racismo no mundo. Houve alguns exemplos recentes muito duros de racismo envolvendo atletas. O jogador de futebol Tinga foi xingado no Peru, o Arouca foi ofendido no Brasil, jogaram bananas no carro de um juiz. Quando você lê notícias como essas, como se sente? É triste, é desagradável. Nós estamos numa era de evolução. Mas não adianta. São coisas que vão acontecer. Muitas vezes as pessoas nem sabem o que estão falando. No caso do juiz, elas estavam ali porque eram torcedores e queriam atingir o juiz de alguma maneira. Como ele era negro, foi a maneira que encontraram de hostilizá-lo. Se fosse outro juiz, japonês, branco, não ia sofrer a mesma coisa, mas ia sofrer algum tipo de vandalismo. Quando você começou nas artes marciais lá em Curitiba, era um meio que... Que tem muito racismo... Como foi sua entrada, um rapaz pobre e negro, nesse universo? Minha tia e meu tio me ensinaram a entrar e a sair dos lugares de cabeça erguida. Em todas as academias que eu frequentei, sempre fui muito bem recebido por ter a disciplina e a educação que adquiri na minha casa. Quando comecei a treinar tae kwon do, na academia tinha muito coreano e branco, eu era talvez o único negro. Eu limpava a academia e treinava de graça. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito dentro da academia. Sempre fui bem recebido, sempre fui respeitado. Tenho grandes amigos que fiz nas academias até hoje. Dentro do ambiente esportivo, você tem que aprender a conviver com diferentes opiniões, diferentes raças, classes sociais. É todo mundo igual. Então no esporte você não sofreu racismo. Mas e nas ruas de Curitiba? Você sofreu muito com batidas policiais? Várias vezes. Teve outra situação em que sofri racismo. Eu estava voltando do treino com amigos, fui passear no shopping e estava no ponto de ônibus, de bermuda e chinelo, com uma mochila nas costas. Parou uma viatura de polícia. Um PM desceu e me abordou, perguntou de onde eu estava vindo. Eu respondi que vinha do shopping. “Como assim do shopping?”, ele perguntou. Ele poderia ter feito isso com todos os outros meninos, mas fez só comigo. Eu era o único negro. Pensei: “Vou responder o que ele precisar e tá tudo certo”. Ele foi um pouco rude, mas eu não dei muita bola. Como você se sente ao ler outras notícias de violência policial contra negros, como o caso da Claudia Silva Ferreira, que foi arrastada no asfalto pendurada em um camburão no Rio de Janeiro? Foi um episódio horrível. Como sou de família militar, acho que houve despreparo dos policiais. O que a gente pode fazer é abrir os olhos e prestar atenção nas coisas que estão acontecendo todos os dias e tentar mudar isso. Não adianta fazer manifestação e, depois que começa o Carnaval, está tudo certo. Não adianta fazer manifestação, ter feriado de Copa do Mundo, e está tudo certo. Estamos entrando numa época em que temos a oportunidade de fazer mudanças. É importante que as pessoas tenham consciência para exercer seus direitos, fazer manifestação sem serem violentas, agressivas, e sendo objetivas. Fica muito vago quando as pessoas são vítimas de alguma coisa, fazem um estardalhaço na mídia e depois deixam aquilo passar. Outros casos de violência e de racismo passaram, ficaram por isso mesmo. Acho importante as pessoas pararem um pouco e observarem o quanto elas podem mudar o país, as leis, o quanto a gente pode ter um país melhor. Você perdeu seu cabelo usando Alisabel. Como foi isso? O problema não foi o Alisabel. O problema é que eu passava Alisabel todo dia! Minha tia falava: “Para, vai cair seu cabelo, você vai ficar careca”. Mas eu continuava passando todo dia, porque achava legal ficar com o cabelo liso, ir para os bailinhos. E, aí, de repente, caiu. Quantos anos você tinha? Tinha 16, 17. Por que você queria ter cabelo liso? Pegava mal cabelo crespo na época? Na minha turminha todo mundo tinha cabelo lisinho, eu queria ter igual, pra poder jogar o cabelo nas festinhas. Depois me arrependi de não ter meu black power. Não tinha nada a ver com problemas de autoimagem, de querer parecer menos negro? Não era nada disso, até porque na minha turma havia pessoas de várias raças, japonês, árabe. Nunca foi por conta de ser negro que eu alisava o cabelo. Você tinha um conjunto que fazia as coreografias do Jackson 5, né? Meus irmãos tinham um grupo, e minha turma sempre os via dançando, ensaiando. Aí a gente resolveu montar nosso grupinho e dançar também. A gente se reunia na garagem de casa e ficava fazendo as coreografias. Quando tinha as festinhas americanas, a gente saía dançando. "Tem vários homossexuais no MMA que não se revelaram ainda" Dizem que você é um bom dançarino. Eu já fui. Hoje em dia não mais. Sua tia colocou você para fazer balé na infância, não foi? Poxa, que fase... No começo eu não gostava não. Foi um castigo. Nenhum amigo fazia. Eu fazendo balé? Hello? Não era muito legal. Meus amigos ficavam: “Ah, menininha, mocinha”. E ainda com a minha voz fina... Sofri muito bullying. E depois você começou a gostar do balé? Comecei a gostar, sim. Minha tia me botou também nas aulas de sapateado. Sou grato a ela porque me ajudou muito na luta. O [boxeador] Evander Holyfield fazia balé. Não tem muito a ver essa coisa, não. Você quer fazer balé, você faz balé. Quer fazer esgrima, faz esgrima. Você resolveu virar gay, vira gay, está tudo certo. Você respeitando o espaço das pessoas, elas respeitando teu espaço, está tudo certo. No MMA tem muita discriminação contra gays? Acho que não tem preconceito, mas tem homossexuais no MMA. Tem vários que não se revelaram ainda. Eles estão no armário porque, se saíssem, ia pegar mal nesse meio? Acho que hoje em dia é uma coisa tão boba não expressar o sentimento. Desde que você respeite o espaço das pessoas, respeite seus limites. Você tem que viver sua vida em paz e ninguém tem nada a ver com isso. Quando entrevistei o Minotauro, há dois anos, ele disse que preferia não treinar com gay. Você treinaria? Claro, desde que me respeitassem, está tudo certo. Acho que não tem muito a ver. O fato de o cara ser gay não quer dizer que ele vai te assediar. Ele pode ser gay, ter um relacionamento, pode conviver em grupo com caras que não são gays. Ele faz o que quiser da vida particular dele. Você é assumidamente vaidoso, metrossexual. Tiram muita onda com você na academia? Tiram. Às vezes a galera acha que eu sou gay. Várias pessoas já me perguntaram se eu sou gay. Eu respondo: “Olha, que eu saiba não. Mas eu ainda sou novo, pode ser que daqui um tempo eu descubra que eu sou gay” [risos]. Eu tomo muito cuidado com as minhas coisas, ponho todas as coisas na minha bolsa, coloco sabonete, passo um creme quando acaba o treino. A galera acha frescura. Mas é de cada um. Não quer dizer que você é mais macho ou menos macho, mais gay ou menos gay. Você disse que sua tia Edith o orientou a lidar com o racismo. O que você fala para seus filhos sobre isso? Falo para eles não deixarem ninguém desrespeitá-los e para tomar cuidado para não desrespeitar ninguém. A vida se resume a dar para as pessoas respeito e receber de volta. Seguir por onde você resolver andar com a cabeça erguida, determinação e honra. É isso que eu passo pros meus filhos. Eles já sofreram com o racismo? Eu acredito que não, porque teriam me falado. Nunca me falaram. Nos Estados Unidos, elas estudam em colégio público, convivem com outras crianças negras, brancas, japonesas, russas. Não têm essa proteção que tinham aqui. No Brasil, elas estudavam em colégio particular, mas nunca aconteceu nada. Na infância, você gostava muito de quadrinhos, principalmente do Homem-Aranha, o que acabou lhe dando o apelido de Spider. E muita gente encarava você como um super-herói mesmo. Agora, com a lesão dessa última luta, você acha que estão encarando você de forma mais humana? Você virou o Peter Parker de novo? Acho que os últimos anos, as últimas lutas fizeram as pessoas entenderem isso, que sou uma pessoa comum como todas as outras, que não sou uma máquina, que eu posso falhar a qualquer momento e que estou tentando superar meus erros. Como todo brasileiro, todos os dias. Você nunca caiu nessa de que era invencível? Nunca, jamais. Quando você pensa dessa forma, é o começo do fim. Você reviu a luta da lesão? Eu vi uma vez, com olhos técnicos. Vi algumas coisas que eu poderia ter feito diferente. Aquele chute você faria diferente? Hoje eu faria. Eu tentaria não fazer o chute tão isolado. Dei um chute isolado, sem colocar nenhum tipo de golpe antes. Foi falta de atenção naquele momento da minha parte. Como você lidou com a dor? Ouvi dizer que você preferiu não se medicar para não se viciar. É verdade? O remédio que os médicos me deram pra dor era muito forte. Eu tomava o remédio, dava uns 3, 4 minutos, e a dor ia embora. Depois ela voltava. Tinha alguns momentos em que eu estava sem dor e estava tomando remédio. Eu resolvi parar, ficar com a dor e ver o que ia dar. Quando ela voltava, eu enchia a banheira de gelo e botava a perna dentro até passar. Fiz esse esforço para não viciar no remédio. "[Depois da contusão] eu cheguei a me perguntar: 'será que vou conseguir voltar?'" Você achou que não ia conseguir voltar? Eu cheguei a me perguntar: “Será que vou conseguir voltar?”. Mas o Marcio Tanure, meu médico e do UFC, que me trata há anos, me disse: “Relaxa, isso é mais fácil que cirurgia no menisco”. Aí eu fiquei mais tranquilo. O Ronaldo, seu amigo e sócio da 9ine [que gerencia a carreira de Anderson], ajudou você nesse momento? Ele falou sobre como superou as cirurgias dele? A gente conversou bastante, ele falou da experiência que ele teve. Foi bacana, importante. Foi mais fácil lidar. Como você está fisicamente? Fisicamente estou 100%. Minha perna, de 0 a 10, está 9. Estou me sentindo forte, treinando todos os dias. O que falta pra perna ficar 10? Tempo. Mais alguns meses eu estou zerado. Estou fazendo a fisioterapia, já estou mais seguro, estou chutando. A única restrição é que eu não posso pular nem correr. Como você enxerga sua carreira daqui pra frente? Eu tenho mais oito lutas no meu contrato. Estou com a cabeça boa, com o coração bom. Tô com muita vontade de continuar. Mas as coisas vão surgir com o tempo: os medos, as frustrações, a vontade, a falta de vontade de lutar. Por enquanto, eu estou bem, estou com vontade de continuar fazendo o que eu faço e não tenho mais nada para provar pra ninguém. É ir lá e fazer o que eu amo, independentemente do resultado. A volta é para 2015? É. Este ano não. Estão começando a falar de lutas com nomes como o [boxeador] Roy Jones Jr. Faz sentido? Muito. Agora o Roy Jones é o maior objetivo na minha carreira. É um sonho pessoal que eu tenho. Ele foi o melhor boxeador na época dele. Eu gostaria de ter essa oportunidade de fazer uma luta de boxe com ele, nas regras do boxe, fora do contrato com o UFC. Ele já se pronunciou e acha que seria fantástico. Esse contrato de oito lutas com o UFC pode ser quebrado? Pode. Eu posso parar na hora que eu resolver parar. O tempo vai dizer. As oportunidades vão aparecendo, as limitações. O Jon Jones deu uma declaração forte por esses dias, dizendo que você deveria se aposentar, fazer palestra, seminários. Como bate esse tipo de declaração? Cada um tem sua opinião. Minha mulher e meus filhos também acham que eu tenho que me aposentar. Lá em casa tem um pé de “acho” que nunca dá nada. Ninguém pode falar para você o que fazer dentro daquilo que você ama. Você é que tem que saber do seu limite e da sua hora de parar. E, no caso do Minotauro, você acha que ele deveria se aposentar? O Rodrigo [Minotauro] é um cara que tem uma história dentro desse esporte e só ele pode dizer a hora de parar. Ninguém pode dizer. Eu não acho que seja um bom momento para ele parar, ou para qualquer pessoa parar, quando não sente isso dentro do coração. A gente conversa muito sobre isso, eu, Rodrigo, o Rogério [Minotouro]. É uma coisa que tem que surgir de cada um. Eu fiz minha história, estou caminhando, estou correndo atrás. Ninguém pode dizer para mim que é hora de eu parar. O Dana White não pode me aposentar, ele não tem esse direito. Ele pode cuidar do negócio dele, das coisas dele. Quem sabe quando e como parar é o atleta. Uma geração de ídolos do UFC está perto do final da carreira. Você, o Georges St. Pierre, o Minotauro. Vai ser um baque pro UFC quando vocês pararem? Não houve uma renovação, não houve um trabalho de base com novos atletas. Os novos talentos já apareceram famosos. Assim fica difícil ver alguém que vá fazer algo diferente lá dentro. Tudo que está aparecendo hoje no UFC é normal, ninguém vai assistir a um cara porque acha que ele vai fazer algo diferente. As pessoas lutam com a regra, mostram que estão ali para fazer o trabalho delas, não demonstram um talento acima da média. É a evolução do esporte, é um negócio. Na minha época era uma coisa. Com as novas gerações é diferente. Você se destacou pelo seu talento, mas também pelas polêmicas. Muita gente reclama das suas provocações, das brincadeiras no octógono, de lutar de guarda baixa. Hoje você faria diferente? Para mim, entrar no octógono, lutar e fazer o que eu faço é uma diversão. Tem que assumir o risco e entender que aquilo é seu jeito, você tem que estar feliz com o que está fazendo. Eu sempre fiz tudo com muita tranquilidade, com verdade. Não fazia para acharem que era melhor que meu adversário. Fazia porque eu gostava. Quando comecei a lutar, nunca tive pretensão de chegar ao UFC. Eu treinei para ser tão bom ou até melhor que meus professores, para ser melhor que eu mesmo no dia anterior. Acho que esse foi o caminho do meu sucesso dentro do octógono. As oportunidades foram aparecendo, nunca desafiei ninguém, nunca fiz menção de que queria lutar com esse ou aquele. Deus me deu aquilo que ele achava que era meu de direito. Eu achava que era um jogo mental para desestabilizar o adversário... Era uma coisa que eu via nos meus ídolos, no Bruce Lee, no Muhammad Ali, até mesmo no Roy Jones Jr. Mas nunca fiz isso para me vangloriar sobre meus adversários ou para criar uma barreira psicológica. Fazia porque gostava, porque achava legal, porque me divertia. Sempre entro ali pensando na minha diversão. Esqueço meus fãs, esqueço as pessoas que estão à minha volta e tento fazer o que eu treinei, com respeito aos meus fãs, ao meu país. Mas eu não luto pelos meus fãs, eu luto por mim, eu luto porque eu amo lutar. Depois vêm as outras coisas, vêm os fãs, a fama, o dinheiro. Como você vê o Anderson daqui a 20 anos? Um velho chato, enchendo o saco dos meus filhos, talvez brigando muito com meus netos. Não, tô brincando. Me vejo feliz, com meus filhos bem-criados, formados, cada um trilhando com sucesso o caminho que decidiu trilhar. E vivendo minha vida em paz, com dignidade. O jornalista Eduardo Ohata, que ajudou você a escrever sua biografia, disse que sempre o viu mais como um professor do que como um lutador. Ele está certo? Está sim. Acredito que sou melhor professor do que lutador. Ainda tenho meus alunos, sei exatamente a forma de conduzir alguns treinos. Sei lidar muito mais com a coisa de ensinar do que com a coisa de lutar. Eu tenho dificuldade de relacionamento com os treinadores de uns anos para cá porque tem coisas que eu percebo que não vão funcionar e que eu acho que não devem ser treinadas. Quando você decidir que é hora de parar, a ideia é que você seja um professor? Não sei se vou ter tempo de continuar fazendo isso depois de me aposentar. Eu gosto de ensinar, eu ensino meus filhos, apesar de nenhum querer ser lutador. Mas eu não sei se teria tempo para dar aula todos os dias. Minha vida mudou muito. Como está o plano de fazer cinema? Tá bacana. Fiz uma participação no filme brasileiro Até que a sorte nos separe 2, ao lado do Leandro Hassum. Acabei de filmar o Tapped com o Lyoto Machida, sobre o mundo do MMA. Estou recebendo alguns roteiros, estudando qual vai ser melhor fazer. Acabei de assinar contrato com a ICM, terceira maior agência de atores em Hollywood. No Brasil, eu tenho aulas com o Luiz Mario, preparador de atores, com ajuda do Johnny Araujo, que é um excelente diretor. E, quando estou em Los Angeles, também tenho aula de acting. O Steven Seagal deu uns toques a você sobre luta. Ele também está ajudando na atuação? O Steven Seagal é um amigo distante, que aparece quando pode. Numa época ele esteve mais perto, porque estava tranquilo no trabalho. Deu uns toques sobre treino, sobre luta. Mas, como ator, ainda não deu nenhuma dica. Quando você parar de lutar, vai deixar inimigos no UFC? Espero que não. Eu não tenho inimigos dentro do UFC. Respeito todos os funcionários como parte da minha família. Quando parar, deixo uma história bonita e um legado. Há uma grande chance das novas gerações do UFC olharem para trás e falarem: “Eu tenho esse cara como exemplo. Ele fez a diferença”.
ali reunidos, havia tido a desfaçatez de dizer que voltava de um shopping naquela longínqua era pré-rolezinho. E também a ocasião em que era atendente do McDonald’s, e um cliente se recusou a ser atendido por um negro. E ainda a desconfiança de que o pai de uma namorada, por quem foi profundamente apaixonado, não apertava sua mão, não o recebia em casa e sabotou o relacionamento por causa de sua cor.
Nando Reis
Fama, sucesso, dinheiro, álcool, cocaína, sexo, mortes: dos venenos que há no mundo, Nando Reis provou todos – e parece imunizado. Há mais de um ano sem se drogar e casado pela segunda vez com a mãe de seus quatro filhos, de quem ficou separado por quase uma década, o cantor e compositor onipresente no hit parade nacional falou à Trip sobre família, amor, música, loucura, duas tentativas de suicídio, a relação com os ex-colegas de Titãs e a sensação de experimentar a vida sob este novo ângulo: a lucidez Deve ser para organizar a narrativa da própria vida que Nando Reis escreve. Suas canções são tão intensamente autobiográficas (num esforço de memória, ele só consegue se lembrar de uma que não tenha sido construída a partir de experiências muito pessoais) que toda conversa com ele parece uma reedição em prosa de hits que o grande público conhece bem, como “Relicário”, “All Star” e “Cegos do castelo”. Nando desenha sua história em público. Também estão expostos nas canções todos os seus venenos. O ato da composição sempre foi para ele algo intimamente ligado ao álcool e à cocaína. A ponto de ter de parar de compor (e lançar um álbum só de covers, Bailão do ruivão, em 2010) para também tomar distância dos vícios. Nesta entrevista – concedida na casa ampla e cheia de discos e obras de arte em que mora, no Pacaembu, em São Paulo – ele equaciona essas relações tão perigosas com o amor pela vida e o medo da morte. Apesar de tudo o que já experimentou e do tão fundo que foi, não veste a fantasia puída de “roqueiro autodestrutivo”. Já morreu muitas vezes (e foram duas tentativas reais de suicídio), mas só foi até o ponto em que ainda era possível voltar atrás. Esse personagem, no entanto, apareceu com frequência também no palco. Em muitos dos shows que fez na carreira, estava completamente chapado, expurgando em cena as angústias descritas nas letras. Esse tipo de experiência, ele diz, vem desde os tempos primordiais com os Titãs, banda que fundou em 1982 e com a qual rompeu 20 anos depois para seguir em carreira solo. E foi no pós-Titãs que sua vida profissional tomou dimensões inimagináveis. Desde a segunda metade da década passada, Nando frequenta, ano a ano, a lista dos maiores arrecadadores de direitos autorais do Brasil. Segundo a tabela oficial do Ecad, o compositor é o oitavo no ranking dos titulares com maior rendimento em shows em 2013. Chico Buarque é o nono; Caetano Veloso, o 11º; Paula Fernandes, a 14ª; e Djavan, o 15º. Os números impressionam mais se levarmos em conta que Sei, seu álbum de inéditas mais recente, foi lançado um ano antes de maneira completamente independente, à parte de uma grande gravadora – as 15 faixas foram lançadas na internet, pelo preço que o comprador achasse justo pagar. Por que letras tão herméticas ganharam o gosto popular? Não há uma explicação muito segura. Mas alguns fatos certamente ajudaram a construir esse caminho de consagração. Um deles, quando Nando ainda estava nos Titãs, foi a gravação de canções suas por Marisa Monte, então sua namorada, no álbum Mais (1991). “Diariamente”, incluída nesse trabalho, pode ser considerada um clássico do pop brasileiro. Depois veio Cássia Eller (1962 – 2002), cujos álbuns de maior repercussão foram produzidos por ele – Com você... Meu mundo ficaria completo (1999), Acústico MTV (2001) e o póstumo Dez de dezembro (2002). Dali, eclodiriam hits nacionais como “O segundo sol”, “Luz nos olhos”, “Relicário” e “All Star”. Mas não foram somente as cantoras que serviram de combustível ao compositor popular que Nando se tornaria. Foram determinantes no percurso as inclusões de canções dele nos álbuns dos mineiros do Jota Quest e do Skank. Talvez o público nem se dê conta disso, mas hits absolutos dessas bandas, como “Do seu lado” (Jota) e “Resposta”, “É uma partida de futebol”, “Dois rios” e “Ainda gosto dela” (Skank) são de autoria de Nando Reis. Hoje, aos 51 anos, José Fernando Gomes dos Reis, um são-paulino apaixonado que já foi colunista de futebol, parece interessado em reescrever sua história com outras tintas. E isso inclui a sobriedade. Ele conta que está “limpo” há um ano e três meses. Retomou o casamento (em casas separadas) com Vânia Reis, a mulher que conheceu ainda na adolescência e com quem tem quatro filhos – Theodoro, 28 anos, Sophia, 25, Sebastião, 19, e Zoe, 14. Ismael, seu quinto filho, tem 8 anos e mora no Rio Grande do Sul com a mãe, Nani (Nando tem também uma neta, Luzia, filha de Theodoro). Toda essa família nós já conhecemos pelo rádio. Ou pelos discos. “Back in Vânia”, “Sophia/ Meu medo é te ver machucada/ Errei por ter te machucado/ Seu pai é um homem indomável/ Um provável homem doce”, “Tenho cinco filhos, fiz uma família/ Trouxe de Saturno um anel de leão/ Onde, hoje, moram minha mãe Cecília/ Cássia e Marcelo/ Dentro do meu coração”, “Meu mundo não teria razão/ Se não fosse a Zoe”, “O mundo é bão, Sebastião”. Tudo parece biografia, mas é música. Mesmo que ele quisesse muito, não haveria nada que Nando Reis pudesse esconder. O que é veneno pra você? E que veneno mais o modificou na vida? Tem muitas definições do que é veneno. Você pode partir do que faz mal, mais do que o que te altera. Parto do princípio de que veneno deve ser isto: aquilo que não circula bem dentro do seu organismo e da sua cabeça. Acho que a coisa que mais me machucou foram as mortes. Há três mortes muito determinantes na minha vida. Primeiro a da minha mãe, que morreu de câncer. Eu tinha 26 anos, a Sophia [sua filha] tinha acabado de nascer e os Titãs tinham estourado, realizado o sonho de ver nossa música popularizada, fazendo turnê pelo Brasil. Fui bem atingido por isso. Eu estava distante, muito deslumbrado, e a morte dela se deu sem que eu tivesse me dado muito conta do próprio processo da doença. Isso deu uma quebra que eu associo, inevitavelmente, à relação com a cocaína, que é uma droga que eu usei muito e que se misturou muito com a minha vida. Mas não era só você que usava cocaína na banda. Os Titãs usavam drogas, teve o episódio da prisão do Arnaldo [Antunes]… E até um certo tempo eu era amedrontado com isso. Eu era moralista, meio careta, achava que era uma coisa que não devia ser feita. Tinha fumado maconha, mas parei cedo, porque ela começou a despertar em mim uma paranoia. Eu não posso fumar. Engraçado… Recentemente eu tive um sonho em que eu tinha voltado a fumar e isso me fazia bem. Tem esse ranking das coisas que são mais poderosas e deletérias e te agridem mais, como se a maconha fosse inofensiva e a cocaína o demônio. Mas o impacto e a maneira como cada um usa é tão particular. Bem, mas voltando para a resposta original, daquilo que mais me machucou e me intoxicou, no sentido de deixar algo correndo nas minhas veias, raiva, foi a morte da minha mãe e, anos depois, a morte do Marcelo [Fromer] e da Cássia [Eller]. No ano de 2001, acho… sempre confundo. A Cássia foi em dezembro de 2001. O Marcelo… Foi uns seis meses antes. Isso foi um negócio que teve um impacto violento. Despertou muita raiva também e foi determinante pras minhas reações. A minha reação a essas duas mortes se deu no meu desentendimento com os Titãs, na cristalização da nossa separação, que era um processo. Mas, já que eu falei de drogas: eu me envolvi muito com isso. Usei muita cocaína e álcool. Estou há um ano e dois meses sem beber, porque eu também achei que estava dando muito problema. Essa percepção de quão tóxicos estavam se tornando esses dois elementos na minha vida, que sempre se misturaram com a minha relação de trabalho… Sempre bebi, desde pequeno. Há algo na minha família, essa coisa do glamour… Diferentemente do meu pai e do meu avô, que tomavam seu uísque e tal, eu bebia a trabalho, sabe? O trabalho era meio uma razão pra fazer isso. Era. E eu sempre fui tímido, o álcool era útil para essa desinibição, que tem a ver com as loucuras, inseguranças e tudo o mais. E um efeito muito prazeroso. A questão das drogas tem a ver com isto: elas sempre me deram prazer. A lícita e a ilícita: o álcool, que é permitido, e a cocaína, que não é. Elas sempre se misturaram na minha relação com o trabalho. A decisão de cortar tem a ver com a idade, com o corpo, com o uso abusivo que eu sempre fiz... e a percepção de que não está funcionando tão bem. Embora fiquem registrados na minha memória os picos de prazer. E, no meu caso, a produção... porque eu sempre fui muito produtivo com cocaína. Sempre usei muito pra compor e tudo o mais. Mas uma hora começou a atrapalhar, fiz shows ruins. Ano passado, percebi que estava tudo ruim e que eu nunca tinha experimentado essa perspectiva que estou tendo agora. Não que eu nunca tivesse feito tentativas. Já fui ao AA, carrego a fichinha do AA na carteira desde que fui pela primeira vez. Você é alcoólatra? Sou um pouco reticente com essa questão da nomenclatura de alcoólatra, não alcoólatra. A própria literatura é. Resolvi experimentar a abstinência do álcool e me dei conta de que eu vivia uma abstinência de muitas outras coisas que eu não tinha percebido. A abstinência da relação afetiva. A abstinência do próprio prazer físico, das atividades, da lucidez. Estou abstinente de álcool, e de cocaína consequentemente, mas ganhei outras coisas. Estou muito satisfeito com isso. Quando você pergunta se eu sou alcoólatra, acho que essa não é a definição. Bem, pode ser que sim... Mas não faz muita diferença pra mim. Pretendo experimentar voltar a beber. Tenho uma atração por estados alterados. Fico reticente de declarar isso publicamente... não quero a vigilância de ninguém, a não ser a minha. Mas, enfim, estou de férias! "Estou feliz por não me intoxicar mais, embora não saiba o quanto isso é definitivo" É uma espécie de ano sabático. É, um enorme sabático dessa relação com tudo. Espero que tudo que venha a acontecer se reorganize em outros moldes. Os moldes em que estava já foram suficientemente vividos. Repetir aquelas situações, principalmente de insatisfação, é muito doído. Mas nunca fui adepto de reverter o estágio de cocaína tomando remédio. “Vou tomar um Rivotril pra dormir, um Lexotan pra interromper.” Eu vivia tudo, achava que era importante… loucuras. Tenho 51 anos. Estou bem feliz por não me intoxicar mais, embora não saiba o quanto isso é definitivo. Você falou de compor com cocaína. Como está a história da composição hoje? Está bem. Compor ou não compor sempre foi uma das coisas que mais me angustiam na vida. A ideia de não fazer uma música, de não gostar da música, sempre esteve presente. E continua. Tem coisas… Este ano eu concluí um trabalho com o Samuel [Rosa]. O Skank deve lançar um disco agora, eu fiz nove músicas. Acho que entraram cinco ou seis no disco. Trabalhei bem. Sóbrio. Fiz músicas interessantes, boas. Mas é difícil, muitas vezes eu tenho vontade de cheirar pra compor. A lembrança do quanto deu certo não se apaga da memória. Nunca teve aquela história de fazer uma coisa loucão e na hora em que acorda ver que não era tão bom quanto você achava? Mais ou menos. Tenho uma autocrítica ferrenha, às vezes paralisante, e o álcool, a cocaína ou qualquer outra substância que atenue esse impacto sempre foram bons. O disparador, o começo. A coisa chata de fazer muito drogado é que às vezes você não se lembra de como foi e parece que foi uma coisa meio mágica. Mas eu sou um trabalhador. Tenho um lado obsessivo de gostar, de quando eu pego o violão, me debruço sobre uma música, escrevo muito. Você falou dos shows que estavam ficando ruins. Mas também fez ótimos shows quando estava bem maluco, não? Nesse período de total sobriedade, fiz grandes shows. De mergulhar naquilo que se está fazendo sem deixar outro pensamento te dispersar. A coisa que mais fode um show é você estar cantando e ter um pensamento paralelo. A sobriedade é muito melhor pra cantar e eu, que nunca fui um grande cantor, com recursos técnicos, tinha uma ideia de que só se ficasse doido eu teria interesse pelas coisas. Isso é falso. Durante muito tempo também eu estava tão doido que eu queria acabar o show pra ir pro hotel cheirar. O show às vezes era um martírio. Um show bom pra mim é quando eu me comunico não só com a plateia, mas também com a banda, e quando eu não deixo que a minha armadura se feche nos meus pensamentos e me ponha num lugar onde não estou. Você é um dos dez maiores arrecadadores do Ecad… Será que ainda estou na lista? Está. E faz tempo. Não é maluco que o Brasil, em certo ponto tão careta, reacionário, absorva tão bem sua personalidade outsider? Eu nunca fui mesmo sóbrio, convencional. Usar ou não usar drogas, beber ou não beber nunca foi o que me fez ser careta ou louco. Dizem que as músicas que eu faço são o que eu sou… É engraçado, às vezes eu acho que eu tenho um “não lugar” na história da música brasileira. Grande parte do meu repertório, que me coloca nessa lista, é muito popular. Mas parece que aos olhos da produção cultural brasileira isso me descredibiliza, como se eu fosse um artista pop de segunda linha. Não sou o cult, tenho 51 anos, tenho uma carreira de 30 e tantos anos, já fiz músicas de sucesso com os Titãs, muitas músicas minhas fizeram sucesso na rádio. Mas não sou premiado em nada. Nas edições do prêmio do José Maurício Machline [Prêmio da Música Brasileira], que deve comemorar 25 anos, nunca fui indicado. Ano passado acho que fui indicado a melhor capa... Vai tomar no cu! É ridículo. Você se ressente desse não reconhecimento? Não estou reclamando… Estou fazendo uma observação do lugar estranho em que estou. É como se eu fosse visto, pelo fato de eu ser popular e fazer muitos shows, é como se isso não tivesse um primor de trabalho ou poético ou melódico ou de composição que merecesse qualquer tipo de olhar. Acho estranho, esquisito. Gosto de ser um dos dez mais, mas isso é somatória. Provavelmente tem uma participação grande das pessoas que gravaram as músicas que eu fiz com o Samuel, muitas delas foram hits estrondosos de rádio. Seu trabalho é muito autobiográfico. Seu último disco é quase completamente dedicado à volta do seu casamento com a Vânia. Queria que você falasse dessa relação. Esse casamento é seu antídoto? Bicho, a monotonia pode ser um puta veneno. E um casamento… Eu acho que nunca me separei da Vânia, mesmo estando afastado dela. Não só por conta dos quatro filhos, mas pelo tempo, pela amizade, pela admiração, pela afinidade de pensamento e pelo cuidado durante a separação, que durou quase oito anos nesse último período. Tive até um filho, o Ismael, com a Nani, que não é fruto de um casamento. Nossas vidas poderiam de fato ter se estruturado para outros casamentos e relações, mas isso não aconteceu. Eu voltei pra ela muito feliz, embora a gente tenha duas casas. Há quanto tempo vocês estão juntos? Conheço a Vânia desde que eu tinha 15 anos. Atravessei tantas coisas, criei tantas coisas… Ela me dá tranquilidade. É a pessoa que sempre consulto para fazer as coisas e com quem eu, atualmente, estou nessa nova organização que a minha sobriedade trouxe. Não me lembro de ter passado um dia sem ter falado com ela ao telefone, mesmo separado, ou ter deixado de pensar nela, sabe? Fui pra um lugar lindo e pensei na Vânia. Queria comentar as coisas com ela, mesmo estando namorando, envolvido com outra pessoa… E ela identicamente. Fico feliz de estar ao lado de uma pessoa que eu sempre trouxe dentro de mim. É um sentido maior. Muda muita coisa na relação, depois de tanto tempo? Mudou bastante. Os quatro filhos que tenho com a Vânia cresceram… E é engraçado, ando pensando nisso. No fato de ter tido primeiro o Theodoro e a Sophia, que hoje têm 28 e 26 anos, e depois, num outro momento, o Sebastião, que tem 19, e a Zoé, de 14. Acho que eu tive a crise dos 40 aos 50. Não no sentido de uma mudança externa, na percepção de “ah, estou perdendo cabelo”, mas pensando na finitude das coisas. Fiquei um pouco de saco cheio na minha ideia de sempre estar postergando a felicidade ou criando planos. As músicas que eu escrevo falam muito mais de um ideal. Muito mais daquilo que persigo do que do que vivo. Isso me aborrece um pouco. Por quê? Eu não quero viver tanto de planos, essa ideia de ficar completamente apaixonado, criando coisas. Quando eu me separei da Vânia, fiquei anos... Namorei a Anna Butler em três períodos diferentes, namorei a Nani, a mãe do Ismael, depois namorei a Adriana. Eu tava sempre imaginando que ia formar uma nova família, casar de novo. E, sempre que essas relações se desenvolviam, uma hora tinha um impedimento meu de que elas se concretizassem. E uma certa desconfiança também, não da legitimidade do afeto que eu tinha por essas mulheres. Uma desconfiança do projeto no qual estava me lançando com elas, então vinham as interrupções. "Eu penso muito agora: quero viver! O próximo passo é parar de trabalhar tanto" A coisa destrutiva das drogas também não interferia? Não é porque usei drogas que tenho uma relação destrutiva. Eu sou um ser vital, construí um monte de coisas, não é justo comigo que eu não usufrua dessas coisas. Minha volta com a Vânia, ainda mais depois dessa tarefa de criar os filhos, tem isso. Eu penso muito agora: quero viver! Meu próximo passo é parar de trabalhar tanto. Minha vida custa muito caro, minha estrutura é cara, o que me aborrece. Tenho medo de criar uma relação predatória com meu próprio trabalho. Não tenho mais saco para deslocamentos, por exemplo. E você ainda viaja muito. Nesta semana tenho que viajar. Cinco shows em cinco estados diferentes. Tenho a sensação de que vivo muito uma coisa e deixo de viver outras. Quero ser mais equilibrado. Então, meu casamento com a Vânia, uso ele quase como um símbolo. Um símbolo de um casamento com a vida, e não só com o trabalho. Você tem discos pra todas as namoradas. Seu trabalho, por ser autobiográfico, tem relação com o que acontece na sua vida amorosa? Tem. Meu trabalho tem esse lado vital, que eu falo e defendo. É um traço muito antigo meu. A música que eu mais gosto do disco Sei é a “Pré-sal”. Porque ela descreve muitas coisas relacionadas com a minha infância. O título foi dado pela minha irmã. Um dia reuni meus irmãos aqui e mostrei as músicas que eu ia gravar. Minha irmã olhou e falou: “Acho que essa música deveria chamar ‘Pré-sal’, porque ela é tão profunda, é anterior à consciência”. Como é essa relação com seus irmãos? Tem dois episódios muito determinantes na história da minha família. Eu sou o quarto filho de cinco. Carlito é o mais velho... meu pai e minha mãe se casaram muito jovens, ela tinha 19 anos. Com 21, já tinha três filhos. O Zeco, o terceiro, teve meningite e ficou surdo. Cinco anos depois eu nasci, ruivo. Não há nenhum ruivo na história da família, eu sou um acidente genético. E três anos depois de mim nasceu a Lulu, Maria Luiza. Ela teve meningite também, que degenerou para uma encefalite e deu uma paralisia cerebral. Ela foi superafetada por essa paralisia. O Zeco, apesar de surdo, sempre estudou em escola normal. Minha mãe sempre foi defensora da inserção, da inclusão. Que ele não ficasse restrito ao gueto dos surdos e mudos, da linguagem de sinais. O caso da Lulu era mais grave, então ela ia a uma escola especializada, para pessoas com problemas neurológicos e motores graves. Conviver com isso foi marcante na sua vida? Ela tinha surtos de agressividade, uma coisa terrível. Então era um pouco constrangedor pra mim, meus amigos iam lá pra casa e se assustavam com aquilo. Nossa vida familiar foi muito marcada por esses episódios. Somos paulistanos de classe média alta... mas eu sempre fui estranho. Pela ruivice, pela minha família, pela minha história. Essa estranheza, nem facilitadora, nem dificultadora, foi a minha marca particular. Minhas músicas autobiográficas sempre estão em primeira pessoa porque são de fato a minha história. Cada um de nós precisa se haver com aquilo que é. E essa é talvez a força política da minha música, a defesa do indivíduo. Não no individualismo contra o coletivo, pelo contrário: pra você se incluir coletivamente de uma forma saudável, você precisa ser satisfeito com o que é. Em uma banda de oito, era preciso se colocar... Eu nunca fui bom, eu sempre perdi lá dentro. Tanto que eu tive que fazer muitas coisas fora. O Marcelo [Fromer], ele que me alertou: “Bicho, você faz um monte de coisa. Por que você não compõe?”. A quantidade de músicas que eu apresentava pro Titãs e era gravada era pouca. Eu era um autor minoritário dentro do grupo, não era bom na competição lá dentro. Acho que fui engolido muitas vezes e desenvolvi vinganças. Tem um lado estranho da minha personalidade, da minha relação com os Titãs. E é paradoxal: sou um sujeito que se arrisca muito. Mas meus riscos são meio calculados. Já quase me fodi nessas de saber até onde posso ir. Por exemplo? Já tentei me matar. Saca? Evidentemente era a infelicidade da vida que eu levava, somada a uma raiva, somada a um foda-se... E, claro, muita droga. Tentou se matar como? Exagerando na droga? Não, não. Eu tenho uma resistência física absurda. Nunca tive ressaca, sou daqueles caras que cheiravam, cheiravam, e depois iam fazer coisas. Nunca faltei em um show, nunca perdi hora, raramente perdi um voo. É uma característica minha. Tentei me matar foi porque eu estava bebendo muito, minha vida estava desorganizada. Eu tava separado da Vânia e ela falou: “Do jeito que você tá, não vai pegar as crianças”. Isso foi o fim. Tomei duas caixas de Lexotan. Tive uma intoxicação e fui socorrido. Também já cheguei a ficar na beira de um prédio, olhando pra baixo. Já fui salvo, sobrevivi. Nunca bati o carro... Tudo isso pra dizer que, embora eu tenha me arriscado muito, eu sabia que eu ia voltar. Sempre voltei. "Impossível retornar aos Titãs, mas eu queria muito retornar a amizade, a convivência" Como é estar exposto assim, diante dos filhos? Tem uma música sobre a Sophia... Essa música é muito explícita sobre essa relação difícil. A Sophia sempre reagiu negativamente, apontando “eu não gosto que você fique muito doido”. Se afastou de mim, nunca se esquivou desse assunto. Nenhum filho gosta de ver pai bêbado, ausente. É deprimente. Ela sempre falou: “Acho uma merda você beber, cheirar”. E a música, eu escrevi muito louco, aliás. Há mensagens subliminares sobre esse assunto em várias outras músicas minhas. “Cegos no castelo” é uma. Todo mundo acha que eu estou falando sobre os Titãs. Mas é muito da minha cegueira, meu isolamento. Castelo é um lugar onde metaforicamente eu me encastelava. Falava de mim e da minha relação com a cocaína. Está tudo certo entre você e os Titãs hoje? Tá, supercerto. Adoro todos eles, adoro a nossa história, os discos que a gente fez. Era muito apaixonada a minha relação com eles, durante muitos anos. Uma separação é sempre desagradável e claro que vieram à tona coisas que não precisavam ter vindo, a dor de cada um dos lados, a raiva de cada um pela incompreensão. A minha saída tinha a ver com me sentir incompreendido, ver o meu espaço cerceado, naquele momento parecia isso. Depois eu vi que eu tava querendo mais espaço e uma necessidade absoluta de controle, de não ter que dividir tanto. Você só pode estar numa banda se você deseja aquilo, a coisa democrática. Tava ficando chato, eu era sempre a voz dissonante. Mas não há mágoa. Vocês se veem? Estive com Paulo [Miklos] há dois meses, a morte da Raquel [mulher dele] me tocou profundamente, me fez sentir saudades deles todos. Impossível retornar aos Titãs, mas eu queria muito retornar a amizade, a convivência. Com o Paulo, por exemplo, a gente passou uma noite aqui em casa, 5, 6 horas conversando, bebendo cerveja sem álcool, que eu adoro. É muita afinidade, sabe? Há muitas coisas que eu vivi com eles, da forma de pensar, da maneira de ouvir música, de comentar. Tenho vontade de ligar, sabe? Não tô falando só de nostalgia, tô falando de linguagem. Eu admiro muito a forma, a inteligência de todos eles. O Paulo Miklos é um sujeito brilhante. É um dos caras mais engraçados que eu já vi. No Natal, fomos almoçar eu e ele na casa do Arnaldo, eu adoro. Relações como essa podem se manter mesmo sem contato, que elas estão intactas. Tenho certeza, com todos eles. Com Paulo, Charles, Arnaldo, Brito, Branco, Belotto. Lamentavelmente não posso encontrar o Marcelo. Você tem medo de morrer? Ando pensando muito na morte, sim. Acho que principalmente… Meu pai tá com 83 anos e a sua saúde sofreu um ligeiro revés. Então olhar pra ele e pra mim, os filhos crescendo… Tenho pensado nisso, sim. Não tem coisas que eu nunca fiz e preciso fazer antes de morrer, sabe? O que incomoda são sinais de mudança no próprio corpo. Eu treino, faço musculação, academia, mas claro que é diferente hoje. Essa percepção do tempo passando e de que não há como reverter, isso aflige, incomoda. Incomoda, não: assusta. A mudança de hábitos, de parar de beber, de ver que cheirar não dá mais, tá relacionada com isso também. De percepções de que passou um tempo. Mas tenho um pouco de raiva de ter que parar. Eu gostava daquela infinita energia e alegria que as drogas e o álcool me traziam, mesmo que ilusória. E tem a coisa da vaidade? Sim, tenho questões que sempre me acompanharam e que agora exijam talvez mais... Antigamente eu cheirava e ia treinar, sabe? Na academia. O que é bastante estúpido de certa maneira. É uma coisa impensável hoje. Se eu cheirar tenho que ficar dois dias de molho, é um horror. Acho detestável trocar, nesse cálculo racional, bem objetivo e realista, dois dias que eu perderia por uma noite de farra, sabe? Não quero perder as coisas boas em nome de algo que eu já fiz bastante. Pra parar de beber e cheirar você tem que botar um negócio no lugar, pra segurar a onda? Vou ser bem honesto: eu não bebo porque eu tô tomando um negócio chamado antietanol. Pra que serve? É um remédio que você toma e para de produzir uma enzima que metaboliza o álcool. Então, se você ingerir álcool, é tão tóxico que você vai parar no hospital. Eu sei que a minha força de vontade não seria suficiente pra eu parar de beber, então eu decidi experimentar esse negócio. Se eu pus coisas no lugar? Acho que comecei a fumar mais cigarro, mas quero controlar. Um dos meus pânicos com a idade é sofrer doença. Não sou um cara que vive bem com dor e com doença. Preciso estar apto, não só porque tenho muita coisa pra fazer, mas porque gosto dessa aptidão, entendeu? Você começou a tomar esse remédio só pra parar de beber? Fui lá no Rodrigo Bressane, meu psiquiatra, e ele me passou esse remédio. Que se eu beber eu passo mal. Fiquei muito intrigado e pensei: “Pô, não quero ser castigado”. Mas queria parar de beber, experimentar esse outro barato. E é bom. Porque tem uma certa contabilidade pra uma pessoa pra beber como eu bebia, que usou drogas como eu usei e que já tem 51 anos. Percebi uma queda de qualidade em alguns aspectos, nas relações afetivas e tudo o mais. Já não sei por que eu tô falando isso... Você estava falando do barato de não ter barato. Ah, sim. Teve um resgate com a minha essência, vamos dizer assim. Continuo sendo a mesma pessoa, não tive nenhuma depressão, não fiquei mal-humorado, não fiquei chato, não tive síndromes. Nenhuma. Pelo contrário, fiquei eufórico, comecei a achar graça em um monte de coisas. Resgatei um monte de coisas que estavam de lado. Minha casa voltou a ficar cheia, minhas relações ficaram boas. Por outro lado, a vida normal é um saco, velho. Não é assim essa maravilha... Mas não é nem com drogas, nem sem drogas. Então vamos combinar que é uma escolha. Tô muito satisfeito com essa escolha. Eu tava sofrendo muito com a vida que eu levava. Você falou das novas músicas que fez com o Samuel Rosa. Você vê diferenças nessas canções, feitas nessa fase de sobriedade? Não... acho que aquilo que dá qualidade ou uma marca às minhas músicas é a forma como eu penso, ou mesmo como eu lapido o trabalho. A droga sempre foi uma ótima despertadora de apetite, mas, a partir do momento em que estou envolvido, tanto faz o processo mental. Nunca fui bobo de achar que uma coisa estaria boa apenas porque eu estava doido. Ou porque tô careta. É muito mais na hora de “tá bom, vamos abrir o violão e pegar essa coisa”. É pra esquentar. Pra responder mais objetivamente: não há diferença de qualidade, de característica. Minha forma de pensar é minha, careta ou louco. Não muda.
Xico Sá
Christian Gaul
Devoto de padre Cícero, existencialista fã de Sartre, repórter investigativo, cronista de futebol, comentarista de mesa-redonda, conselheiro sentimental, celebridade da internet, figura da televisão, boêmio inveterado, apaixonado pelas mulheres. Francisco Reginaldo de Sá Menezes, o Xico Sá, não nega que a folha corrida é intensa, mas diz que é um “macho convencional brasileiro”
O jornalista e escritor Xico Sá tem 51 anos. Mas o dia em que ele nasceu é um mistério. “Eu sei, claro: ou foi dia 3 ou dia 6 (de outubro)”, ele diz. A confusão é só uma das muitas lendas que permeiam a vida do cronista que virou referência de dois assuntos fundamentais para o país: futebol e amor. Xico, um boêmio nascido no Crato, no Ceará, vive a vida intensamente e escreve semanalmente sobre o esporte na Folha de S.Paulo, onde tem coluna e blog. Também fala de futebol no Sport TV e de relacionamento no programa Amor e Sexo, da TV Globo.
Figura “mal diagramada”, como ele se define, é amado pelas mulheres por escrever declarações de amor para moças dos mais variados estilos (“a boterinha”, “a prozaquinha”), dar broncas nos homens e criar personagens como “o homem do predinho antigo” (o sujeito que mora em um apartamento todo bonitinho, em um prédio de design) ou o “homem ervas finas” (o cara que planta sua própria horta e gosta de um bom vinho). As crônicas, ele explica, são escritas em forma de manifesto. “Eu sou exagerado, então, vou lá e faço um panfleto, seja pela boceta sem depilação ou pelo Ronaldinho ter o direito de sair com travesti.”
Ser conselheiro sentimental é a atividade que pratica há mais tempo. Ele diz que herdou a habilidade da mãe, até hoje conselheira da vizinhança em Juazeiro do Norte. Xico virou algo parecido, não só por razões profissionais: ele “atende” várias amigas por SMS, chat do Facebook ou WhatsApp. A jornalista que escreve este texto, amiga de Xico há 24 anos, já foi uma dessas pacientes e sabe: Xico tem mesmo muito saco para ouvir coisas como “ele não ligou, ele é um canalha” e seus conselhos são excelentes. Está em dúvida em relação a começar um relacionamento? “Segura na mão de Deus e vai.” Tomou um pé na bunda? “Perder no amor é ganhar.” Foi alvo de um cafajeste? “Mas o homem não existe!” Nesta entrevista concedida em São Paulo, logo depois da sessão de fotos em que posou com dez garotas nuas (e quase morreu de vergonha), ele solta algumas pérolas como “o homem é um ser ‘agropastoril’”, que serve para cortar lenha, cuidar do pasto, mas que é limitado.
"Aceito tudo que é trabalho porque a sombra da pobreza está sempre atrás de mim. Fui pobre, não sei como as coisas vão ficar depois"
O que Xico fala em tom de panfleto talvez seja explicado pelo que ele chama de “tendência ao fanatismo”. O menino religioso que fazia promessas sérias para o Padre Cícero na infância, com direito a chapéu do “padinho”, virou depois um comunista ferrenho. Hoje ama futebol apaixonadamente, a ponto de ir a qualquer jogo, mesmo sem ser do Santos, seu time, só por gostar demais de um estádio. Há um ano morando no Rio de Janeiro, vai inclusive “àqueles fodidos, que ninguém vai”. Também já foi fanático por política. E um dos repórteres investigativos mais importantes do Brasil. Foi ele que descobriu, por exemplo, o paradeiro de PC Farias (tesoureiro da campanha de Fernando Collor de Mello quando eleito presidente da república, em 1989, e depois foragido). Ao mesmo tempo em que trazia os furos no “Collorgate”, trabalhando de terno e gravata, hospedava em casa amigos de adolescência – entre eles a turma das bandas Nação Zumbi e Mundo Livre S.A. Chegou a fazer música com Fred Zero Quatro, que conheceu na faculdade de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, para onde se mudou aos 16 anos para ganhar a vida, “como todo mundo fazia”.
Na cidade grande, o menino criado na zona rural, em uma casa sem luz elétrica, foi ajudante de trânsito e “homem de crediário” da Mesbla, onde aprovava financiamentos sem checar muito bem – já era comunista. Prestes a lançar um novo livro (O livro das mulheres extraordinárias, pela editora 3 estrelas), Francisco Reginaldo de Sá Menezes é bem-sucedido e famoso, mas diz não esquecer a sombra da pobreza. “Aceito tudo que é trabalho porque a sombra da pobreza está sempre atrás de mim. Não sei dizer não, fui pobre, não sei como as coisas vão ficar depois.”
Você é considerado um homem que entende muito de mulher. Inclusive, escreve sobre e para elas e dá conselhos sentimentais na TV. De onde você acha que veio isso? Aprendi isso com a minha mãe. Quem tá com alguma dificuldade vai lá em casa. Minha mãe dá conselho para todo mundo. Só que ela é mais firme do que eu. Ela fala mesmo. Eu ainda fico meio assim... Ela é radical: “Você tem que largar esse cabra safado!” Era isso todo dia no café da tarde. Acho que aprendi ali. Então, sempre tive mais amiga que amigo, as meninas me achavam o cara delicado, aí iam falar comigo. E eu já era de entender as mulheres. Eu já conversava com as mulheres sobre coisas que os homens em geral não conversam.
E na vida real, com suas amigas, você faz o mesmo que faz na televisão. Já fazia isso na rádio Cariri. E faço até hoje. Conselheiro sentimental é a minha profissão mais definida. Fora isso, tem o atendimento informal. Atendo muitas amigas pelo chat do Facebook. Todo dia tem uma. E é foda, porque às vezes acho que a mulher está a fim de mim e é só um pretexto [risos]. As pessoas se sentem muito à vontade para falar comigo. Sei lá, acho que é porque eu gosto de ouvir narrativa. E isso me alimenta as crônicas. Eu acompanho a vida de muita gente, uns big brothers.
Você costuma dizer que “o homem não existe”. O que você quer dizer com isso? Nós, homens, somos pobres. Não temos grandes sofisticações de pensamento. Fomos feitos para ir para a guerra, pegar lenha. O homem é um ser meio agropastoril [risos]. Tem que ser do campo. Profissões de homem: pastor de ovelha, pequena agricultura, motorista de caminhão [risos]. Mulher é mais interessante, mais complexa. Homem é só: “Tomei um pé na bunda, o Corinthians vai inaugurar o Itaquerão”.
Você acha o brasileiro machista? Nós somos muito machistas. Muito mesmo. Pega o caso da bandeirinha de futebol que foi bandeirar e o cartola do time disse: “Ela tem que ir para a Playboy, aqui não é lugar de mulher”. Ela estava condenada naquela arena de macho. A gente ainda não admite certas coisas. A gente tem um machismo infernal. Mas acredito nas novas gerações. A geração pós-Los Hermanos. No mundo desses meninos de barba do Rio de Janeiro, acho que existe uma quebra. Mas da minha geração, vixe! Querem mulher para desfilar na churrascaria. Esse é o clássico. Mas eles se fodem mais porque não está mais tão fácil encontrar mulher assim. Quando encontram uma mulher inteligente, que tenha poder de decisão, que não dependa psicologicamente deles, se fodem. O que eu vejo de homem chorando por aí...
Mas você é admirado por homens também. É pelo que eu escrevo mesmo, é muito sincero. Eu gosto de ser até panfletário mesmo, em alguns momentos. Escrevo: Carta aberta aos homens, estão falando mal da gente... Eu ouvi muitas histórias ao mesmo tempo, de fraqueza masculina, de fuga, de coisa errada. Escrevo querendo melhorar os homens, tento dizer pra eles. Mas tem muito choque; os caras me escrevem: “Tá louco, pô? Tem que ser assim agora? Não exagera”. É coisa bem jesuíta, mesmo, eu acho que só exagerando você é ouvido. Só sabem que eu escrevi sobre boceta cabeluda em defesa da Nanda Costa porque eu falo com muita ênfase. É um discurso, um panfleto radical, eu quero comunicar aquilo. E eu dou dura nos homens, porque acho que é o lado ainda mais absurdo de comportamento... A própria ausência masculina... Por que que todos esses programas governamentais dão as chaves das casas pra mulher? Repara a foto da entrega dessas casas... Os homens não estão nas fotos oficiais. Ou vazaram já.
Você acha que os homens estão ferrados? Acho até que deviam estar mais, pra aprender. A história muda a força. A gente não está mudando só porque a gente é bonzinho. Estamos mudando porque, se não, nos fodemos. Às vezes a gente fica achando que esse é um debate da classe média, mas não, quando eu vou lá nas minhas primas na zona leste, tá minha prima botando o cara pra tentar pelo menos diminuir o machismo dele. E o cara muda, porque ele tem medo de ser abandonado, traído. Programas como o Bolsa Família deram uma independência para a mulher, ela não vai mais ficar lavando cueca de homem. Ela aguentava pelo poderio econômico. Tinha que segurar a onda. Eu vejo pelas minhas tias. Hoje, se um marido trata mal a filha, elas já dizem: “Está sendo bruto, então larga”.
Arquivo Pessoal
O pai, Francisco Nildemar, pagando promessa em Canindé, Ceará
Você vem de uma família pobre do sertão. O que mudou por lá nos últimos anos? Eu nasci no Crato e fui criado no Cariri e em Juazeiro. O que aconteceu ali foi a invenção do capitalismo. O Bolsa Família foi a invenção do capitalismo! Por exemplo, meu tio tem uma venda. Ele está vendendo mais. Então, tem que comprar mais do cara que cria bode. O que aconteceu foi uma política de pós-guerra. E o Nordeste estava mesmo em guerra. Tudo mudou. Se você não vai lá, não sabe. Os liberais falam em comunismo, mas na verdade é capitalismo. Muitos primos meus têm mercado, bar. A vida deles mudou.
Como foi a sua infância? Minha origem é rural, sítio, nasci em lugar sem energia elétrica. Esse negócio de luz, não tinha isso não. Meu pai era um pequeno agricultor, tinha uma venda. Minha mãe com 12 anos tava na roça, tem uma história mais fodida ainda. A guerra, a resistência, é ela. Qualquer lamúria nossa, ela começa a contar a história dela e a gente desiste, vai beber água... E faz isso até hoje. Falo com ela toda semana, tem o vício do domingo, que é dia de falar com a mãe. E vou pra lá toda hora, agora cada vez com mais constância. O mundo mudou, saio daqui e tem voo direto pra Juazeiro! A primeira vez que eu vim pra São Paulo foi de ônibus. E várias vezes. Hoje tá muito perto. Eu saio daqui às 5 da manhã e vou tomar café com ela.
Em que os seus pais trabalhavam? Meu pai herdou uma terrinha do avô. Minha mãe nem isso tinha, mas sempre foi muito forte em comércio, era ela quem tocava as coisas. Ela é quem governa e manda. Até hoje, é voz de comando o tempo inteiro. E é uma mulher muito forte, sempre tida como muito forte, de opinião. Se eu acreditasse em horóscopo, diria que é porque ela é virginiana.
E essa história de que você nasceu em dois dias diferentes? Você sabe que dia você nasceu? Fui registrado em dias diferentes. Eu sei quando nasci. Ou foi 3 ou foi 6 [risos]. É porque cada apuração que eu faço dá num dia. Eu acho que foi dia 3 [de outubro] pelos sinais da minha mãe, porque teve eleição ali perto e não sei quê. Minha mãe disse que foi dia 6... Fica isso o tempo inteiro. Você registrava precisamente aos 6 anos, pra estudar. Então não tem horário. Eu lá sabia que ia encontrar Barbara Abramo 30 anos depois? [Risos.]
Você foi embora da casa dos seus pais muito cedo, para Recife. Como foi isso? Fui cedo, sim. Com 16 anos. Isso pode parecer triste e dramático, mas era a rota que todo mundo fazia. O filho, em geral o mais velho, ia para a capital estudar e trabalhar. Fui morar em uma pensão, onde estavam já primos e amigos de Juazeiro. Meus pais me deram algum dinheiro, mas tinha que trabalhar. Trabalhava e estudava. Como era um exímio datilógrafo, fui trabalhar na Mesbla, na seção de crediário. Eu tinha que ligar no SPC para aprovar os crediários. Imagina eu aprovando os crediários. Imagina se ficou alguém sem crediário [risos]. E brincava com os amigos: imagina se eu ia deixar aquela família sem comprar, estou destruindo o capital. Porque éramos comunistas mesmo. Antes disso, fui assistente de trânsito. Ficava na rua falando: o trânsito não está bom para lá, melhor para o outro lado. Tipo um assistente da CET [risos].
"Eu era um beatozinho, usava aquele chapéu de romeiro do Padre Cícero. Minha mãe não estava nem aí, eu era o mais religioso da família!"
Por que você virou comunista? Foi com a chegada em Recife. Antes era um menino que pagava promessa para o Padre Cícero. Qualquer situação ruim que acontecia, eu pegava meus irmãos, coitados, e inventava uma promessa. Obrigava todo mundo a pagar a promessa que eu tinha feito. A mais radical foi subir o Santuário de Juazeiro, que é uma escadaria gigantesca, de joelhos. Os meninos chegaram lá, coitados, sangrando. Eu era beatozinho mesmo, era igrejeiro. Eu usava muito aquele chapéu de romeiro do Padre Cícero. E minha mãe não estava nem aí, eu era o mais religioso da família [risos]. Aí, quando mudei para o comunismo, virei fanático também.
Na infância você já levava jeito para escritor? Eu gostava muito de ler, sempre. Era bom em redação, bom aluno. Talvez por isso eu tenha sido escolhido para estudar fora. Quando cheguei em Recife, descobri tudo. Em Juazeiro, li todos os cronistas, os romances. Em Recife, comecei a ler filosofia, Marx, meus amigos eram punks. Era uma misturada de coisa.
Você já escreveu que o filósofo Jean Paul Sartre acabou com a sua juventude. Eu amava. Eu lia Sartre e Camus, com minha primeira namorada, a Isa. A gente lia A náusea, O muro. Coisas chatérrimas! Eu odiava Carnaval, não ia à praia. A plataforma era de punk com literatura. O Jean Paul Sartre me tirou da putaria de acampamento! Quando eu fui para acampamento, todo mundo já tinha comido todo mundo. E eu lá, lendo Jean Paul Sartre. Mas eu acreditava naquilo mesmo. Eu troquei uma religião por outra. Troquei a batina de Padre Cícero pela barba de Marx e o enfezamento de Sartre [risos].
Você pegava muita mulher na faculdade? Não, era tímido. E imagina timidez na roça! Quando cheguei na faculdade era tudo diferente. Fiz amigos por causa dos livros e teve uma coisa que foi importante. Quando o professor de filosofia deu Umberto Eco, eu virei o maior especialista em Umberto Eco do bairro da Várzea [risos]. Acho que eu tenho mesmo essa tendência para o fanatismo. Virei fanático por Umberto Eco, aí começaram a gostar de mim. Mudou tudo, foi fundamental.
Como foram suas primeiras experiências sexuais? Minha geração tinha iniciação sexual em puteiro. Fui com amigo mais velho, com tio. Era sempre assim. Mas, quando cheguei no Recife, praticamente não sabia o que era mulher. Aí, claro, conheci a putaria das faculdades. Tinha os Enecons [encontros de estudantes de comunicação]. Teve o Enecon em Fortaleza. Aí comi minha primeira Brizolista lá.
Depois de se formar você trabalhou como repórter de política em Brasília, foi um dos repórteres mais importantes do Collorgate, na Folha de S.Paulo. Você que descobriu o paradeiro do PC Farias! Aquilo foi uma fase. Era um choque para meus amigos. Lembro de uma vez que encontrei o Chico Science [amigo de adolescência] no aeroporto e eu estava atrás do PC, do Collor, sei lá, de terno. Parou o Chico e toda a Nação Zumbi na minha frente e eles ficaram tipo assim: “Xico, mas o que é isso?”. Aí eu vi a careca do PC e saí correndo e eles me pararam. E o Chico: “Que é isso, cara, vai casar?”. Para eles, eu era um maluco. Uma pessoa que não tinha a menor capacidade de fazer aquilo. Eu era um poeta, fazia performance.
Você sente saudade do tempo de repórter de política? Em alguns momentos, sinto. Mas acho que não é mais possível fazer o jornalismo que eu fazia. Os repórteres decidiam muito. A gente acabava de almoçar, saía cada um com uma missão e a gente falava: “Somos a cavalaria russa” [risos]. O repórter derrubava matéria, quase mandava mais que o chefe. Era totalmente diferente e todo mundo era cheio de ideal. A gente era muito amador, não existia uma escola de investigação.
Como você ficou próximo do PC? Por não ser um jornalista sério. Minhas fontes eram os porteiros, os garçons, quem ficava com essa parte de entrevistar ministros, por exemplo, eram os jornalistas sérios. Eu ia atrás do terceiro escalão. Fiquei muito colado com o mordomo do PC, cozinheira, o Coquetel Drinks, o puteiro onde eles conheciam todo mundo do governo Collor. Eu peguei mais furo no Coquetel Drinks do que em outro qualquer lugar da minha vida. O advogado do PC era minha fonte, comecei a ficar parado na casa dele. Um dia, eu e PC tomamos um porre de uísque juntos. Ficamos bebendo a noite toda. Uma coisa que qualquer manual de redação vai falar que está errado [risos]. A gente falou de cabaré, de boate, do tipo de mulher que ele gostava. O PC nunca pegava a mulher que era convencionalmente a mais bonita do lugar. Ele pegava a mais estranha [risos]. Não me considero repórter investigativo, com aquele casaco Humphrey Bogart. Eu ia para o bordel. O Coquetel Drinks era mais importante para o Collorgate do que o Tribunal de Contas da União.
"Um dia, eu e PC (Farias) tomamos um porre de uísque juntos. Coisa que qualquer manual de redação vai falar que está errado"
Mas como você descobriu o PC? Eu tava em Maceió num bar, numa barraca de praia onde iam muito as pessoas que trabalhavam com ele. E ouvi um papo atrás de mim: “Ah, o PC está em Londres, os filhos não estão”. Aí confirmei com a família e fiquei tentando falar com ele. A Globo também estava atrás dele, com um batalhão de repórteres. Todo mundo perguntava para mim onde tava o PC . Eu chegava no trabalho e os boys: “Porra, Xico, cadê o PC?”. Ligava para a minha mãe e ela: “Meu filho, mas cadê PC?”. Se eu não achasse ia ser muito ridículo. Aí vim para São Paulo, consegui falar com ele e fui encontrá-lo na Tailândia.
Nessa época você já era boêmio? Era uma época muito boêmia. Ao mesmo tempo que fazia isso, estava virando noite na Love Story, na Torre do Dr. Zero. Acho que foi a época que eu fui mais boêmio na minha vida. Era a mesma época em que o Chico Science e o Mundo Livre começaram a fazer sucesso. Ficava a banda inteira na minha casa, tipo dez pessoas, em um apartamento de um quarto na rua Frei Caneca. Eu deixava a chave com eles.
Você já sabia que seus amigos eram muito importantes para a música? Eu não sabia o que estava acontecendo com eles, nem eles comigo. Porque eu olhava e falava: “Ah, é o Fred, ah, é só o Chico”. Pra mim, ah, eram só os meus amigos. Eu abri show do Mundo Livre em Recife lendo poemas, vários deles.
Onde você conheceu os garotos do Manguebeat? Conheci o Fred [Zero Quatro] na faculdade. Eu morava na casa do estudante. A gente fazia um jornal chamado O Príncipe. O Chico, eu conheci na noite. Eu não via que eles eram especiais, não. Mas o Chico, ele falava com muita determinação: “Porque eu vou fazer a nova música do mundo, a base vai ser em Chicago!”. Ele sabia a roupa que ia usar, tudo. Ele tinha total consciência de que estava fazendo uma coisa importante. E o Fred tinha a consciência política, de que ia mudar o mundo. O Otto, a gente também não levava a sério. Hoje é um dos caras mais importantes da música brasileira. Agrega todas as turmas, tem um puta pensamento político, o Otto é foda. Mas demora um tempo para você descobrir isso quando o cara é um dos seus melhores amigos e tá cantando na sua casa.
E como foi deixar de ser um repórter sério? O jornalismo mudou, o repórter já não tinha tanta importância. Normal, as coisas mudam. Aí, fomos sendo vazados. Acabei voltando mais para a poesia, que é o que eu já fazia antes. Foi doloroso, sempre é. Quando eu saí da cavalaria russa e fui trabalhar em casa, eu acordava e tinha que botar sapato de couro, camisa. Às vezes tinha que botar até gravata! Não conseguia escrever de chinelo [risos]. Aí comecei a fazer o Carapuceiro [blog que fez com sua ex-mulher, Adriana Vaz] e voltei para a minha zona de conforto, para o Manguetown. Comecei a escrever para tudo que é lugar. Fiz crônica para o Posto Graal. Era ótimo! Eles diziam: “Você escreve para a Folha, não vamos ter dinheiro para te pagar”. E, quando eu via, era muito mais do que eu ganhava na Folha. Fiz revista Cães e Gatos, todas as revistas do universo.
Você consegue falar não para trabalho? Não. A sombra da pobreza fica na cabeça. Fui formado na hiperinflação, você sempre acha que vai foder tudo. Faz muito tempo que não fode nada. Mas, mesmo assim, se faço uma temporada de Amor e sexo e ganho uma grana legal, que não estou acostumado – porque, claro, ainda estou acostumado com o pouco dinheiro de Gutemberg – eu acho que aquele dinheiro pode virar pó. Eu pego esse dinheiro e tento diminuir um pouco os trabalhos chatos. Ano passado, peguei tanta palestra para fazer que enlouqueci. Não ficava mais em casa. Quando via, tinha duas palestras no mesmo dia, uma em cada lugar do Brasil. Porque se me ligavam eu sempre falava: sim! Ainda é muito difícil falar não para trabalho. É a pobreza na alma.
Arquivo Pessoal
Xico e a então namorada Rita Wainer, no Rio, no réveillon de 2001
Quantas vezes você já casou? Já morei cinco vezes junto. São namoradas importantes que, mesmo tendo morado por pouco tempo, considero que morei junto. Esses casamentos acabaram acontecendo meio por contingência: se rolar, não me furto. Mas também não é uma coisa que eu persiga. Adoro curtir sozinho a minha ressaca! Esse direito é sagrado. Que nenhuma mulher me tire isso. Como amo a minha ressaca! Atualmente eu namoro, namoro firme.
Você tem fama de pegar muita mulher, e mulher bonita. Eu tive com mulheres diversas de todo tipo, de idade, de tudo. Tenho uma amiga que dizia: “Porra, você é corajoso! Pegou essa mulher?”. Até tenho algumas mulheres bonitas na minha história, mas meu gosto é múltiplo. Tem de todo jeito, de qualquer região, orientais, negras, brancas, pretas, amarelas, mais esquelética... É de verdade, na prática.
Tem uma história sua de botequim de que você, com 20 anos, teve um caso com uma sexagenária. Sim! E foi legal! E desmente um pouco essa coisa, é como a música de Martinho da Vila, “já tive mulheres de todas as cores”... Eu acho assim: tem uma hora lá, você bebe, dança. O olho sendo safado, pode ter a idade que tiver, ser do jeito que for, eu acredito muito na safadeza como o grande atrativo da mulher. Vai passando uma mulher de 70 anos, que me encontra e diz uma safadeza no meu ouvido... É claro que eu vou com essa mulher! Dito de uma forma tão sacana, tão interessante e gostoso pra caralho, quando aquela pessoa teve um tesão em você, não tem como eu me furtar. E nessa situação que eu tive a de 60 e tantos, que eu namorei mulheres de todos os jeitos possíveis.
"O olho sendo safado, pode ter a idade que tiver. Uma mulher de 70 anos que me encontra e diz uma safadeza no meu ouvido... É claro que eu vou!"
Existe esse clichê de que homem prefere mulher mais jovem. Você não? Uma época tive um problema: as mulheres da minha geração não acreditavam em mim como um bom namorado. Por conta dessa caricatura do boêmio radical, de uma vida errante. Se pegar a fase mais produtiva da minha vida, na Folha, era a fase em que eu era mais louco; digamos que juntava o jornalista mais sério com o cara mais esculhambado na noite, mais errado do mundo. É muito caricatura. Quando eu tô nessa solidão minha é que eu vejo como é exagerado isso. Mas não tem como você desmentir mais uma coisa que também foi verdadeira. Eu tive trabalhos gigantes em começos de histórias de namoro pra desmistificar... Até provar, tinha que levar pra um passeio lá no mato, só eu e ela, tinha que comer umas coisas que eu não gosto, fazer trilha mostrando que eu era um pouco “saúde” também. Eu quase morrendo lá no Rio, só avistava o garçom lá no Baixo Gávea [risos].
Mas algumas mulheres se atraem pelo lado boêmio. Dessas mulheres com quem casei ou fiquei ou namorei, tem as que gostam por eu ser assim doido, ou tido como doido, na caricatura, e tem as com quem só seria possível ter algo se eu mudasse um pouco. Então eu mudei muito, pelo menos uma semana, não custa nada [risos]. Fiz uma trilha! Vê se eu sou homem de trilha! Teve um tempo que eu ia namorar uma menina que chegou e disse: “É verdade que você namora uma puta na [rua] Augusta?”. Eu tinha uma história com uma menina lá, porque eu morava perto. Aí eu desmenti, mas ela queria exatamente aquele tipo de escritor, clichê Bukowski. Eu não sou isso, sou um homem sério, trabalhador [risos].
"Não é só essa coisa passional. Eu sou um cara que toma chá toda noite para dormir. Em certos sentidos, sou um macho convencional brasileiro"
Mas o quanto essa caricatura é verdadeira? Quando eu morava na Augusta, eu vivia lá dentro. Eu não tô negando, não, eu gosto mesmo... Puta, beber muito, tudo isso são coisas que eu aprecio de verdade. Noitada... Nada é mentiroso. Eu tenho amigos intensos, parecidos comigo Quando eu me junto com Junio Barreto [compositor], Otto, Claudio Assis [cineasta], Lírio [Ferreira, cineasta]... fodeu. A temperatura é elevadíssima. Chega a ser assustador pra quem não é desse mundo.
Alcoolismo já foi um problema? O álcool faz mal, tão mal quanto estar vivo, mas quem danifica o homem mesmo é o trabalho mecânico ou brutalmente ganancioso. E tem outra coisa: nunca bebi o quanto imaginam, acho que nem bebo mais. Amo mais a dramaturgia da queda do que a bebida. Sou um ator da boemia.
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Com Vitor Birner, Sócrates e Vladir Lemos, no programa Cartão verde, em 2010
Você já escreveu que era dos “Passionais MC’s”. Continua sendo? Passionais MC’s totalmente! O que muda é a frequência, você cansa mais rápido. Ou tem umas épocas que o próprio mundo noturno não tá tão interessante. Aí você namora, dá uma recuada... Mas, se eu encontro os meninos, é igual, parece que a gente tem 20 anos e repete aquilo da mesma forma. É um encontro sempre passional e intenso, não tem como negar. Mas não é só essa coisa. Quando vê, algumas meninas ficam decepcionadas, porque eu sou um cara que toma chá toda noite pra dormir. Não sei do que que é o chá, mas tomo. Em certos sentidos, sou um macho convencional brasileiro.
Tão convencional que faz mesa-redonda na TV. Quando recebi o convite para fazer o Cartão verde [na TV Cultura] fiquei histérico. E era com o Sócrates! Não perguntei nem quanto era... Eu ia de graça, se fosse com Sócrates. Eu comecei a minha história na TV ali e foi do caralho, foi sensacional. A melhor coisa. E faço até hoje futebol e amo. O Sócrates era um dos meus grandes amigos, um dos caras de quem eu ouvi as coisas mais interessantes da minha vida, um dos caras com quem eu passei a conhecer como funcionava uma das coisas que mais gosto na vida, que é o futebol. O Sócrates ajudou muito no conhecimento técnico, na leitura de um jogo.
Mas você já entendia de futebol? Eu era fanático, pitaqueiro de boteco. O que o Sócrates alertou é como se pode se decidir um jogo, às vezes, por um fator psicológico. Ele levava muito em conta o humano dentro da dramaturgia do jogo. Ele entendia o jogo como um drama humano. O goleiro que tá mal, deprimido por alguma coisa. Ele entendia tudo isso, falava muita coisa interessante nesse sentido. Embora ele não gostasse: ele achava um saco comentar futebol. Ele gostava mais de comentar a vida, boemia, mulher, política o tempo inteiro, tudo para ele era política. Mas foi um cara com quem aprendi muito, em tudo. Era tão maluco, tão parecido comigo. A gente tava no bar de madrugada, chegavam uns moleques de 16 anos dizendo: “Doutor, tá rolando uma festinha lá em casa”, e a gente ia. Ficou uma amizade. Foi difícil deixar de ser fã, só mudou depois que ele começou a dormir em qualquer canto comigo, cair pelos cantos igual a mim... Aí virou irmão [risos].
Por que você é santista? Porque é o time da minha geração, o primeiro time que eu vi jogar no campo. Quando eu chego no Recife, eu já tinha visto o Santos jogar. No interior, a ligação era torcer por um time do Rio ou de São Paulo. Eu gostava um pouco do Sport, que depois, morando no Recife, eu adotei como meu time de lá. Sou da geração Pelé. Nasci em 1962, pra quem que eu ia torcer?
"Eu viro um grande homem nas ressacas. Nada mais pode jogar um homem no conservadorismo total do que uma ressaca gigante"
Você é daqueles que vão sozinhos a um jogo do Santos? De qualquer time! Agora eu moro no Rio, em Copacabana. Estou em casa, pego o metrô e em 20 minutos tô no Maracanã! Vou ver qualquer coisa. Gosto daquela adrenalina, daquela confusão. Vou naqueles estádios do Rio que ninguém vai mais, Moça Bonita, Italo del Cima, fui em todos. Porque era a minha memória, de ouvir no rádio. Claro, como eu trabalho com futebol, rende muita coisa, mas eu já ia antes. A coisa que me dá mais prazer é escrever a crônica de futebol da Folha de sábado. Eu paro tudo, fico pensando o tema, fico vendo jogo que não tem nada a ver. Talvez a única solenidade que eu tenho com o jornalismo seja na crônica esportiva, que eu faço com muito tesão! Como comentarista também, depois do Cartão verde. Mas escrever eu gosto mais do que qualquer outra coisa.
Futebol é a coisa que você mais gosta na vida? Tá entre mulher e futebol. Outro clássico [risos]. Não no sentido de comer uma mulher, ficar com uma mulher, não é nesse sentido, só. Talvez tenha um donjuanismo maluco, um vício pela sedução, por tentar conquistar de alguma forma, não obrigatoriamente para ir pra cama, mas pra ela passar a gostar de mim, ter uma história... Sei lá, se tô muito triste, aí vou conhecer uma nova mulher, por internet ou na rua ou na esquina ou na televisão, e vou tomar um drinque no final da tarde na sexta-feira. Esse momento... Eu tenho uma paixão muito grande que me acende pra vida, esse encontro com uma mulher. Se eu tiver meio caído, meio triste, achando que tô escrevendo meio mal, tem esse milagre do encontro com a mulher. E me tira de uma depressão de imediato.
Você tem vontade de ter filho? Eu nunca acordei com essa vontade, nunca pensei nisso. Eu tenho muito afilhado, uns 20, tenho um bocado de sobrinho. Nas ressacas eu penso em ter uma família toda certinha. Eu viro um grande homem nas ressacas, penso em Deus, penso na família, penso na propriedade. Viro praticamente um membro da TFP! Nada mais pode jogar um homem no conservadorismo total do que uma ressaca gigante.
Lázaro Ramos
Foto: Jorge Bispo
Um dos atores mais populares e elogiados de sua geração, Lázaro Ramos, 35 anos, percebeu que estava vivendo pessoalmente a mesma angústia que detonou as manifestações de rua no Brasil em junho de 2013. assim como todo o país, em 2014 ele parou para ver a Copa e se emocionar com momentos como o choro do goleiro Júlio César. Nas próximas páginas, um papo sobre tudo: infância em Salvador, racismo, teatro, primeira vez, casamento, religião, política, celebridade – e a busca por um sentido na profissão: “Não quero ficar obsoleto”
“A grande alegria de trabalhar é poder potencializar minha família, colaborar pras pessoas andarem com as próprias pernas. pagar plano de saúde, ajudar um primo na faculdade”
“Alguém nos ajude, Lázaro, a entender...” A frase do cantor Criolo sobre a ascensão da classe C no país foi ao ar em março de 2013 no programa Espelho, que Lázaro Ramos comanda no Canal Brasil há nove temporadas. Por caprichos internéticos, um ano depois, trecho dessa entrevista foi viralizado nas redes sociais, enfatizando o discurso aparentemente desconexo do rapper paulistano. Mas, para além do meme repetido com efeito humorístico, há uma discussão séria e central entre os interesses e a trajetória do politizado ator baiano de 35 anos, reconhecido como um dos melhores e mais populares de sua geração.
Filho de um namoro de Carnaval entre Célia, empregada doméstica morta em 1999, e Ivan, ex-operador de máquinas do polo petroquímico de Camaçari, hoje com 59 anos, ele passou a infância na casa da madrinha, Helenita, de 90 anos.
A convivência com o pai era boa e constante, nos fins de semana. “Como funcionário de Camaçari, ele não levava vida de luxo, mas todo sábado tinha almoço em restaurante, nunca faltou presente de aniversário ou Natal. Aí veio o Collor...”. Sob nova realidade econômica, Lázaro saiu da escola particular para a pública. Depois, aos 14 anos, foi morar com o pai – sem restaurante no sábado.
O adolescente Lázaro fez teatro na escola pública, a Anísio Teixeira. Como só podia frequentar o curso de teatro quem fizesse um outro curso profissionalizante, ele foi cursar patologia clínica. Um emprego no Hospital Ramiro de Azevedo o ajudou a dar apoio à mãe, que sofria de uma doença degenerativa limitadora dos movimentos, em seus últimos anos de vida. A morte dela abalou Lázaro, mas não o impediu de, pouco mais de um ano depois, em 2000, ganhar projeção nacional ao lado dos amigos Wagner Moura e Vladimir Brichta com uma montagem de A máquina, de João Falcão.
Na TV, que o cooptou depois que protagonizou o filme Madame Satã, de Karim Aïnouz, em 2002, ele foi conquistando espaços com competência e versatilidade. Em Elas por elas(2012), quebrou barreiras como o primeiro protagonista negro de uma novela. Hoje vive o guru pop Brian Benson, em Geração Brasil. Mas o cinema é sua área de atuação mais frequente. Está em cartaz com O vendedor de passados (direção de Lula Buarque de Holanda), baseado no romance do angolano José Eduardo Agualusa. Em breve será visto também em O Grande Kilapy (de Zezé Gamboa), coprodução Brasil-Portugal-Angola, em que interpreta um malandro africano. Em 2015, estará em O grande circo místico, sob a direção de Cacá Diegues.
Outro projeto que gera muita expectativa é Acorda Brasil (cujo título pode ser mudado ainda), dirigido por Sergio Machado. Baseado na experiência do maestro Silvio Bacarelli na favela de Heliópolis, em São Paulo, o filme obrigou Lázaro a contracenar com adolescentes inexperientes e dar vazão à inquietude que rege sua carreira. Lázaro diz que as grandes transformações que teve enquanto ator “vieram de provocações que os filmes lhe fizeram: Madame Satã, O homem que copiava, Cidade Baixa, Ó paí, ó...”. Ser colocado à prova, no abismo, dá medo. Mas traz recompensas definitivas. “Esse medo está aqui em mim, mas ao mesmo tempo tem o sagrado do teatro, que fala: ‘Se joga no abismo, rei! Vá lá! Você não tem nada a perder!’. E aí tem que tirar uma coragem do [põe a mão na boca e fala baixinho] cu pra poder seguir, bicho! Porque dá um medo, rapaz! Mas é bom! É isso que mantém a gente vivo.”
"As grandes transformações da que tive enquanto ator vieram de provocações que os filmes fizeram: Madame Satã, Cidade Baixa..."
Morando no Rio de Janeiro há 14 anos, casado com a atriz Taís Araújo – um relacionamento iniciado há quase dez anos, com oito meses de interrupção em 2008 – e pai de João Vicente, 3 anos, Lázaro não se contenta em apenas atuar. Em 2010, lançou o livro infantil A Menina Sentada (depois adaptado para o teatro). Em 2011, dirigiu a peça Namíbia, não!(de Aldri Anunciação) e, no começo deste ano, estreou a peça As Pocorotas, também voltada para crianças. Tem lido livros técnicos sobre roteiro, já com alguns projetos cinematográficos em mente. E sem esquecer as convicções políticas.
Que passam por ideias como as do sociólogo Jessé de Souza, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, entrevistado por Lázaro neste ano no programa Espelho. O autor deBatalhadores brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora? questiona a classificação estabelecida a partir de critérios estritamente econômicos. “Ele fala: ‘Peraí! Vamos ver! O que é a ascensão da classe C? Que valor é esse que a gente teve agora?’. Eu gostaria de avisar a todos: para você que não entendeu o Criolo, veja a entrevista do Jessé.”


Vamos do começo, sua infância. Sua mãe era empregada doméstica, certo? Sim. Minha mãe trabalhava, minha família toda, então a maioria das crianças foi criada por uma mulher chamada Helenita, que todo mundo chama de Dindinha e que fez 90 anos há duas semanas. Uma mulher que nunca teve filhos, mas pegava os sobrinhos e sobrinhos-netos e criava, dava educação. Minha mãe trabalhava numa vizinha ao lado. Tive muito contato com essa patroa, os netos da patroa. Claro que com os limites de um filho de empregada.
A Dindinha criou você? Isso. A mãe tava ali próxima, mas Dindinha foi a grande educadora da família toda.
Vocês ainda têm contato? Sim, e ajudo, ela é minha família. A grande alegria que eu tenho, de poder trabalhar com frequência, é poder participar, poder potencializar minha família, colaborar pras pessoas caminharem com suas próprias pernas. Felizmente eu tenho a possibilidade de fazer isso hoje. Pagar plano de saúde, poder ajudar um primo na faculdade.
Você diria que teve uma infância feliz? Tive uma infância feliz, muito protegida, numa casa com quintal. Mas fui um menino criado dentro de casa, a gente não podia sair, as crianças brincavam com a gente no quintal de Dindinha. Era tudo muito regrado, não tinha palavrão, não tinha essa de escolher o que comer. Ao mesmo tempo, dava muita autoestima, e isso foi muito legal. Eu fui perder a inocência sobre a dureza da vida quando saí da casa dela. Aí que eu fui entender mais ou menos como era o mundo. Mas lá era assim, autoestima, me chamavam de capaz, me estimulavam, uma família de pessoas bem-humoradas, minha mãe inclusive. No túmulo da minha mãe tem a frase “Nunca esqueceremos seu sorriso”, que é uma frase marcante, né? Engraçado que até hoje encontro gente que foi amigo ou amiga da minha mãe e fala sempre isso: “Sua mãe era muito engraçada”. Isso contamina a família, me contaminou também.
E como eram as questões materiais? Tinha presente de aniversário, Natal? Tem duas fases. A fase farta é quando meu pai era do polo petroquímico de Camaçari, operador de máquinas. Não era uma vida com luxo, mas tinha presente de aniversário, ir a um restaurante todo sábado. Aí veio o [Fernando] Collor e muda tudo: saí de escola particular e fui pra escola pública... sou filho da época da inflação. Dinheiro era um negócio que perdia o valor rapidamente, a gente saía do banco e ia correndo comprar as coisas. Depois do Collor, cortamos todos os supérfluos, não tinha restaurante, virou outra vida.
Em que bairro você morava? Na Federação era a casa de Dindinha. E no Garcia ficava a casa do meu pai, com quem fui morar aos 14 anos. Ele ainda não era casado, mas ele já tinha a casa dele e tal. Meus pais nunca foram casados, sou filho de namoro de Carnaval: nasci em novembro, nove meses depois do Carnaval. Sou escorpião.
E a relação com seu pai foi boa? Sempre foi muito boa. Meu pai é um homem que passou por uma grande transformação. Ele nunca foi um homem afetivo, era mais disciplinador, muito correto, muito justo, eu tinha medo dele. Mais adulto, quando saí de casa e fui seguir a vida, a gente foi criando uma relação afetiva que eu nem sei o que é que disparou. Hoje a gente é amigo, tem uma relação que não é nem parecida com o que era na infância. Meu pai não queria que eu fosse ator. Muitos anos depois ele veio me dizer: era medo, imagina profissão de ator, vai sobreviver como? De quê? Ele sempre quis que eu fizesse escola técnica.
Arquivo pessoal
No colo da mãe, Célia, junto com um primo, na Bahia
E você fez? Ele me inscreveu num curso técnico, porque na cabeça dele tinha a facilidade de eu ir trabalhar na indústria de petróleo. Mas aí fui fazer o teste e botei tudo letra C, pra perder. Todas as respostas, C C C C C C... Perdi. Aí eu falei: “Pai, perdi, infelizmente, mas tem uma coisa legal: sou apaixonado por patologia clínica, quero estudar isso”.
Mas por que você queria isso? Malandro, é porque tinha uma escola chamada Anísio Teixeira, que tinha um curso de teatro e só podia frequentar quem fizesse um outro curso. Tinha desenho industrial e patologia clínica. Desenhar eu não sei. Fui pra patologia clínica. Me formei, exerci a profissão, mas foi um truque pra poder fazer gratuito o curso de teatro.
E religião? Como é que entrou na sua vida? De uma maneira muito diversa. Dindinha era do candomblé, frequentei culto, vi pessoas recebendo orixás, ajudei a carregar coisas pra fazer trabalho. Mas meu avô materno tocava violão na Assembleia de Deus, minha mãe era espírita. E eu por opção resolvi fazer catecismo na Igreja católica. Morava perto da igreja de São Lázaro, que é uma igreja na Federação que é católica, mas tem banho de pipoca toda segunda-feira. Se hoje você me pergunta qual a minha religião, eu vou dizer que eu sou baiano. Baiano da Federação, uma pessoa que viveu e bebeu disso tudo.
"Frequentei culto do candomblé, meu avô era da Assembleia de Deus, minha mãe era espírita. E fiz catecismo na Igreja Católica, se você perguntar qual minha religião, vou dizer que sou baiano"
Você dá algum encaminhamento religioso pro seu filho? O mesmo que eu recebi [risos]. Na hora de dormir a gente reza, mas também conto a história de Xangô, ele tem livrinhos sobre os orixás. Acho que ele é quem vai decidir. Não gosto quando não respeitam a religião do outro, acham que seu deus é mais poderoso ou mais importante. Religião pra mim é conforto, aconchego, aceitação. O meu deus, os meus deuses... são bem diferentes desses que metem medo. Antes de entrar em cena, no Bando Olodum, a gente fazia uma roda e cantava uma música do candomblé. Até hoje eu chego no teatro, oro, beijo o chão.
Você era bom aluno quando novinho. Isso gerava algum tipo de bullying? Claro! [Risos.] E fez demorar pra arranjar namorada também. Ficar ali com a cara nos livros, colado em Haroldo... Haroldo era o outro CDF da turma, sou louco pra saber cadê Haroldo. Eu ficava muito caladinho no meu canto, reservado. Brincava com poucas pessoas, tinha poucos amigos. Só depois que comecei a fazer teatro, na adolescência, é que mudei. No colégio particular, eu era o único negro da sala. Era um ambiente onde nem sempre eu me sentia acolhido.
A questão racial pesava? Não pesava pra mim. Tive o privilégio de ser bem protegido em casa. Me deram autoestima, mesmo meu pai sendo severo. Depois eu entrei no Bando Olodum, grupo formado por atores negros. Eu não entendia que havia personagens que não eram oferecidos a atores negros, só entendi isso depois. Porque no Bando todo mundo era preto e todo mundo fazia tudo. Minha sorte foi ter chegado ao Rio de Janeiro e encontrado o cinema nacional com o olhar voltado pra outra coisa, ter encontrado pessoas que investiram em mim. O Karim[Aïnouz] pegar um menino de 21 anos e oferecer o papel de Madame Satã? Ele é insano! Eu era um menino.
Houve algum episódio marcante de racismo na infância? Na escola, não houve. No supermercado, era seguido constantemente. Em blitz e em ônibus, tinha o “vamos lá, desce!”. Aí os brancos ficavam e os pretos todos desciam... Vivi muito isso. Na adolescência, eu já tinha conta em banco e uma vez fui tirar o saldo. Para um carro da polícia, um bota a arma na minha cabeça e pergunta o que eu estou fazendo no banco. O negócio é que eu aprendi a responder imediatamente. Mandei logo: “Por que você tá perguntando isso? Eu tô no meu banco, tirando meu dinheiro, que é que tá acontecendo?”. Diante de racismo, tem que responder na hora. Comigo não tem essa, não.
"[A questão racial] não pesava pra mim. Tive o privilégio de ser bem protegido em casa, me deram autoestima"
No livro infantil que você escreveu, A menina sentada, a protagonista é uma menina desanimada. Você era assim quando criança? Fui. Tinha a cabeça fervilhando de coisas, mas não conseguia expressar. Acho que virei um pouco ator por isso, era muito tímido e tinha dificuldade de comunicação.
Foi o teatro que libertou você disso? Acho que foi o teatro. E perder a virgindade também. Sempre é bom quando você perde a inocência vendo que tem outros sabores na vida [risos.]
Isso foi com que idade? Com 17 anos. Com namorada. Eu fui todo certinho, eu sou todo certinho, não fumo maconha. E todo mundo acha que eu sou um puta maconheirão! [Risos].
Você não sofreu por ser careta num grupo de teatro? Não teve isso, não. Porque eu era mascote também, eu era mais novo que todo mundo. O Wagner [Moura] vai ficar puto com isso: eu falo que eu sou de outra geração, que ele é mais velho, meu mestre [risos]. Eu, Kayky Brito e Bruna Marquezine somos outra geração! [Risos.]
Falando de adolescência, como eram os Carnavais, você gostava? Sempre gostei muito de Carnaval, pulava, minha mãe me levava sempre como pipoca, até o ano em que começou a ter um monte de camarote. Minha família morava no Garcia, um bairro muito próximo do Campo Grande, que é o primeiro circuito de grande sucesso do Carnaval baiano. A programação era ir de pipoca ver as grandes estrelas e voltar. Depois começaram a construir camarote e tiraram a visão da gente. Fiquei um tempo enorme sem frequentar Carnaval, não tinha grana pra abadá. Mas sempre gostei, sou folião.
Como você vê esse clichê da suposta sensualidade exacerbada do baiano? É muito relativo. Você vê a menina requebrando toda num pagode, mexendo a bunda, fazendo tudo... e ela é virgem. Por outro lado, lá em Salvador, há um projeto assistencial somente para jovens que engravidam no Carnaval. O problema é quando os clichês e os estereótipos saem fortalecidos da piada. Compreendo que tem uma maneira de se relacionar na Bahia que passa por certas percepções. O toque é muito presente, o afeto é muito dado. Quando cheguei no Rio, eu dava três beijos e um abraço em homens e mulheres. Fui criado assim.
E tem a expectativa “ah, ele é negro, tem o pau grande e é bom de cama”? Eu nunca vou dar uma resposta sobre isso livre dos meus anseios políticos. Então, é verdade, na adolescência a expectativa de você ter um pauzão e ser bom de cama é maravilhosa, todo mundo vai querer te dar. Mas é importante refletir sobre esses estereótipos e essas afirmações. Podem parecer inocentes, mas servem pra manter a pessoa em determinado lugar. Isso é muito perigoso, vai da sexualidade às capacidades, aos padrões estéticos. Acreditar que existem determinados papéis que devem ser ocupados na sociedade por determinados perfis é supersério.
Tem um episódio na adolescência em que a crítica de uma peça botava você nas alturas e aí a diretora deu uma baixada na sua bola, né? Você ainda se pega sendo vaidoso? Esse foi um momento marcante. Saiu uma crítica a Um tal de Dom Quixote, em que eu fazia o Sancho Pança. Cheguei com o jornal e falei: “Olha que chique”. E ela falou: “Parabéns, mas nossa profissão não é só isso”. No meu momento de maior alegria, começando a carreira, ela diz: “Não existe nem sucesso nem fracasso permanente”. Foi como um soco. Sou bem vaidoso, fico vaidosíssimo quando elogiam meu trabalho, mas tenho esse bichinho que me puxa o tempo todo, pra eu não estacionar nisso. Vou estrear três filmes agora e a busca era esta: não ficar obsoleto. Tenho orgulho dos trabalhos que fiz, mas estava pensando: “Quero fazer outra coisa”. Talvez fosse melhor pegar o caminho mais certo, fazer uma comédia e tal. Mas falei: “Não, eu vou dar espaço pra essa minha angústia, quero projetos que falem sobre isso”. Aí aparecem esses filmes, que discutem o Brasil de hoje.
"Sou bem vaidoso, fico vaidosíssimo quando elogiam meu trabalho, mas tenho esse bichinho que me puxa o tempo todo, pra eu não estacionar nisso"
Quais são os filmes? O vendedor de passados é um filme baseado no Agualusa, adaptado à realidade brasileira, com um estilo de cinema que talvez tenha uma despretensão que o cinema argentino vem trazendo. Filmes que falam sobre o universo contemporâneo urbano. Fala pra mim é sobre a internet, sobre perfil falso, sobre insatisfação com a gente mesmo. A internet é uma selva, as pessoas falam o que querem, muitas vezes mal informadas, perversas, ou vivendo a fantasia de serem outras pessoas. O Acorda Brasil fala de um projeto artístico na favela de Heliópolis [em São Paulo], que transforma a vida de adolescentes que estão ali vivendo esse novo momento. E tem o Mundo cão, o filme mais recente que eu fiz, sobre pessoas que fazem justiça com as próprias mãos. Sobre essa violência que afeta nossas vidas sem a gente nem sentir.
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Com Wagner Moura e Alice Braga em Cidade Baixa (2005)
Você declarou que tinha uma época em que odiava Facebook e redes sociais, mas depois a internet o convenceu de que ela não era culpada. Quem usa a internet é o ser humano. Internet é uma ferramenta. Eu tinha medo, porque eu sempre via as pessoas muito afetadas, a maneira como as pessoas vão a um restaurante, em um grupo de amigos, é outra, cada um com seu celular na mão. Antes de comer a gente já mostra a comida que vai comer. Você nem sente o sabor direito, se tá gostosa ou não, mas a foto tá tão bonita, 30 pessoas curtiram, você já fica feliz! [Risos.]
Mas hoje você usa? Eu me policio muito, eu sou meio chatinho, mas uso muito mais do que pensei que usaria. Mas sempre fico meio com um pé atrás com as informações que eu recebo. Se você perguntar qual a minha opinião sobre internet hoje, eu digo: está em estudo [risos].
O Wagner Moura é o seu melhor amigo? É. É meu irmão.
Vocês foram ficando famosos, ganhando projeção mais ou menos ao mesmo tempo. Que tipo de conversa vocês têm sobre ser celebridade? As conversas da gente vão mudando muito. Quando a gente chegou aqui, começou a fazer muito cinema. Aí teve um dia que Wagner chegou e disse: “Pô, Lazinho, tô meio incomodado, cara. Só me chamam pra fazer bandido e nordestino”. Aí eu disse: “Ô, meu filho, você pelo menos tem dois, e eu que só faço preto?” [Risos.] Tem muito humor, e a gente se consulta muito. Não só Wagner, toda a nossa turma, a gente se consulta muito profissionalmente, sobre as ondas que estão indo, sobre o comportamento dos artistas, a relação com a mídia. A gente pensa sobre isso pra não ser engolido também, né? Tem uma exposição aí que é superperigosa. Acho que a conversa da gente é o tempo todo a gente lembrando de onde veio, de quem nós somos. No fundo é isso, né? Saber quem você é!
"Um dia Waguinho [Wagner Moura] me disse: 'Pô, só me chamam pra fazer bandido e nordestino'. Eu disse: 'Ô, meu filho, você pelo menos tem dois. E eu, que só faço preto?'"
Sua mulher já tinha essa relação com a mídia muito antes de você. Hoje como vocês lidam com isso, juntos?
A gente foi entendendo como ficar confortável com isso, né? Antes eu ficava incomodadíssimo de chegar num lugar e ter um monte de gente tirando foto, querendo saber. As entrevistas começaram a mudar: não perguntavam mais de trabalho, queriam saber quando é que a gente ia ter filho, como se conheceu. Caramba! Depois de um tempo foi passando. Mas Taís é uma mulher admirável nesse sentido também. Relaxada, bem-humorada, lida muito bem com isso. Ela é segura, não acha que vai perder nada e se coloca confortavelmente, sabiamente e simpaticamente com relação a isso. Taís me ensinou muito nesse sentido.
Você já se sentiu deprimido? Teve momentos... Vários. Deprimido, triste, sem saber o que fazer. Com vontade de desistir. Muitas vezes, muitas vezes... a sorte é... é amigo, né? Amigo, mulher, família. Porque às vezes vem uma pedreira, umas porradas que você fala: “Rapaz! E agora, pra onde é que eu vou?”.
Por exemplo? A morte da minha mãe... a morte da minha mãe, bicho, me arrasou. Foi há 15 anos. Eu fiquei... Por mim, eu parava. Minha mãe não me viu no teatro. Não tive o prazer de ver o sorriso dela me vendo. E isso, bicho... Eu passei pelo menos um ano em que fazia as coisas empurrado. Não tinha prazer, era entrar no supermercado e chorar vendo o biscoito que ela gostava. Eu nem sei como foi que eu me reconstruí. Primeiro porque quando ela faleceu... foi uma fase em que eu resolvi assumir a vida. Minha mãe foi deficiente física, não podia mais trabalhar, aí eu disse: “Pô! Vou alugar uma casa”. Com 16 anos, aluguei uma casa, botei ela lá, contratei uma cuidadora pra ficar com ela.
"A morte da minha mãe, bicho, me arrasou. Foi há 15 anos. Minha mãe não me viu no teatro. Não tive o prazer de ver o sorriso dela me vendo"
O que ela tinha? Uma degeneração. Ela perdia um líquido da coluna e foi definhando. Nesse último ano em que morei com ela, a rotina era sair às 6 da manhã pra trabalhar no hospital, voltar às 5h30 da tarde, ensaiar teatro de 7 horas até 10 da noite. Foi um dos períodos mais felizes da minha vida, lembro com alegria. Eu tinha muito orgulho de mesmo com 16 anos dizer: “Vou peitar esse negócio aqui e vou cuidar da minha mãe”. Uma dificuldade da porra. E quando tudo começou a acontecer ela morreu. Barra-pesada!
Ao longo da sua vida você fez terapia? Faço há cinco anos. Primeiro eu odiava. Falava: “Eu acho um absurdo você pagar alguma coisa a alguém se você pode fazer essa mesma coisa com um amigo e de graça”. Minha frase sobre terapia era essa. Depois eu fui fazer uma terapia em que o terapeuta ficava descalço e eu ficava puto da vida. “Pô! Esse cara tá me ouvindo descalço?” Eu ficava olhando pro pé dele a sessão inteira [risos]. Depois fui fazer uma que tinha umas massagens. Eu ficava incomodadíssimo; eu querendo falar das coisas e a pessoa me pegando [risos]. Hoje em dia eu faço uma mais tradicional, com uma mulher ótima.
Freudiana? Ela mistura. Ela mistura um pouco, mas é de falar, falar, conversar. E comigo funciona muito. Até quando não tem assunto ela me estimula com alguma coisa: “Lê esse texto aqui, lê esse texto”. Teve uma época em que eu não sabia lidar com o ser famoso. Quando você fica muito popular, como é que lida com a rejeição? Era difícil. Aí ela falou: “Ah, não vamos ficar falando de você, não, rapaz; vá ler isso. Já escreveram há muito tempo, quando nem existia televisão”. E me deu um livro... É legal, tem esse estímulo intelectual.
Qual era o livro? É Freud. A psicologia das massas... Não, não é psicologia... É não sei o que das massas [Psicologia das Massas e Análise do Eu]. Não entendi metade, naturalmente, mas o pouco que eu entendi ajudou bastante [risos].
Um personagem marcante no seu programa foi a psicanalista Neusa Santos Souza, autora de Tornar-se negro. Você chegou nela a partir do livro? Não. Foi a Sandra Almada, repórter que trabalhava no programa, que falou dela. “Bicho! Essa mulher tem que vir. O livro é uma bíblia pros movimentos negros e sociais.” A gente nem acreditava que ela ia aceitar, ela não falava havia 25 anos. A gente depois descobriu que ela escolheu o Espelho pra ser o último depoimento. Se matou um mês depois [em 2008]. Eu acho que o Espelho acabou sendo um registro de um pensamento racial e social do Brasil dos últimos dez anos. Fico me perguntando que país é esse que o programa revelou sem querer.
Alguma conclusão? O Brasil mudou, a gente tá em outro lugar. As famílias já não são as de dez anos atrás. Os movimentos negros não são os mesmos, os movimentos sociais. Eu penso que esse é um momento de ajuste. Eu sem querer participei dessa angústia profissionalmente. Em junho do ano passado eu tinha acabado de fazer Lado a lado, novela de uma importância absurda, que colocou o negro como protagonista, herói, falando coisas que não se falaram anteriormente.
Eu disse: “Caramba! Depois disso não tenho mais o que fazer na televisão”. Aí veio o protesto, um monte de cartaz pedindo um monte de coisa. Depois de um tempo eu entendi que essa angústia estava em mim também. Essa multiplicidade de temas estava em mim. Não há ainda um novo Brasil estabelecido. É um Brasil tentando se entender depois da euforia.
Você foi pra rua? Eu não tava no Brasil. Foi exatamente quando escolhi morar três meses e meio fora. A gente estava em Nova York vendo tudo, sabendo de tudo, informado, mas com a vida lá.
"Não há ainda um novo Brasil estabelecido. É um Brasil tentando se entender depois da euforia"
O que você foi fazer lá? Eu tava com minha família, coisa que eu não fazia havia muito tempo. Estava estudando inglês, mas foi o período em que a gente quis estar junto. Trabalhava muito, nosso filho nunca estava com o pai e a mãe ao mesmo tempo, em casa. Aí a gente falou: “Não, vamos parar tudo!”. E também foi um ano que eu passei muito doente. Eu tive fascite plantar [inflamação da planta do pé], tendinite, um cisto com inflamação aguda na corda vocal esquerda. Em Lado a lado eu estava super-rouco. Operei a corda vocal e tive muito medo de perder a voz. Foi muito tenso. Aí a gente optou: “Depois da cirurgia, vamos ficar entre nós, vamos descansar”.
Passado um ano, veio a Copa. Como é sua relação com futebol? Vejo em casa, com a família. Às vezes com um amigo, não tem como programar porque tô gravando direto. Gosto de futebol, sou torcedor do Vitória. Não tem essa coisa de ter um time no Rio, meu time é o Vitória! Que já me gera muito problema na Bahia [risos].
Você joga bola? Não. Eu sempre fui perna de pau, não praticava esporte, fui preguiçoso o tempo todo. Ainda sou, não tenho a menor vontade de fazer atividade física, não quero correr. Faço essas coisas quando tem trabalho, porque precisa. Faço capoeira, já fiz boxe, mas assim que acaba o trabalho eu volto a engordar.
E como é que você vê essa contaminação do futebol, da Copa, pela política? É natural, né? A maneira como a Fifa lida com os países que sediam a Copa, a quantidade de dinheiro que isso movimenta... É natural, ainda mais num momento em que o Brasil acabou de sair... Mas teve uma divisão, né? Os apaixonados continuaram vendo jogo. Teve Copa!
Algo emocionou você na Copa? O choro do [goleiro] Júlio César [ao fim da partida contra o Chile, nas oitavas de final], achei massa! Quando eu vejo a torcida eu acho lindo e me emociono. Quando vejo um atleta em superação, acho que é uma lição para todos nós. Aquele momento foi lindo. E claro que é divertidíssimo ver o uruguaio [Luis Suarez] mordendo o cara, né? É de uma loucura... É muito humano, é muito o momento, uma reação inesperada e inevitável que vem lá de dentro. Essa paixão, esse frisson do esporte, que leva a um lugar que é do primitivo. Eu acho lindo.
Jorge Bispo
Voltando ao Espelho, foi muito comentada na internet a entrevista com o Criolo. Cem mil anos depois! O povo é doido, né? A entrevista de Criolo é ótima. Aquele trechinho ali [que viralizou nas redes sociais] eu acho maravilhoso. É que o Criolo fala poeticamente, como artista que é. Eu tinha vontade de interpretar o que o Criolo disse. Aquilo é quase uma música. O que ele tá dizendo é que a ascensão da classe C é o quê? Somente bens e consumos? Da maneira dele, no criolismo [risos]. Tá tudo dito. Eu entendi.
Depois da repercussão você encontrou o Criolo? Não encontrei. Preciso encontrar pra saber se ele sabe disso.
Essas coisas são boas para o programa no fim das contas? Pois é... Tinha gente que nunca tinha ouvido falar do Espelho e ouviu falar a partir desse vídeo do Criolo. Ótimo! Vivemos num tempo em que ser humorista é ser popstar, né? Os adolescentes querem ser humoristas e as piadas fazem parte da internet. Compreendo esse movimento.
O humor é o novo rock’n’roll? É. Mas eu ficaria feliz também se as pessoas vissem a entrevista completa e conseguissem acessar o raciocínio dele, porque eu acho muito interessante a provocação. Mesmo que não se entendam essas palavras ou que se faça piada sobre isso, ele faz uma provocação interessante. Ascender economicamente, ter acesso a bens de consumo, mas não investir em educação...
A sua mãe foi empregada doméstica. Hoje você tem empregada? Como lida com o dia a dia de patrão? É uma pergunta bem perigosa de responder, pelo seguinte: porque eu fujo. Eu deixo Taís resolver tudo. Talvez seja mais uma fuga, não é? Quem resolve é a Taís. Célia tá há 18 anos trabalhando com Taís, trabalhava na casa da mãe dela. Lininha, que é babá do nosso filho, foi babá dos sobrinhos de Taís e é babá do João agora. É uma coisa que está estabelecida há tanto tempo que ficou natural. Não tenho grandes questões sobre essa relação patrão e empregado. Quando teve as empreguetes [personagens da novela Cheias de Charme, em que Taís era protagonista], a gente ficou feliz junto.
Em quem você vai votar nas eleições?Eu não falo e nem posso falar, né? Você sabe que quando você tá no ar você não pode, né? Mas já tenho candidatos.
"Não tem que achar natural a maioria nos presídios, nas favelas, nos manicômios ter a pele escura. Não é natural. Não tem que ser incômodo só pra mim chegar num restaurante e o único negro ser eu"
Uma última questão: no futebol houve a campanha “Somos todos macacos”, que o movimento negro contestou. Como você vê essas ações? Primeira coisa é: racismo é crime, gente! Acabou, é a lei. Segundo: eu acho que comparações com animais são indevidas. Não quero me tirar com a comparação de um animal, e sim pela igualdade. Sabemos que temos diferenças, mas temos os direitos iguais e somos humanos iguais. Acho arriscadíssima essa campanha porque uma das coisas que tiram dos negros todos os dias é o direito à humanidade. Em dramaturgia, por exemplo, teve muito avanço em relação aos atores negros, mas às vezes é humanidade que falta. Quantas novelas você viu com uma família negra completa? Isso é a humanidade, mostrar qualidades e defeitos. A comparação acho desastrada, acho uma loucura. Somos todos humanos. E não dá pra brincar, esses assuntos são muito sérios. A gente tem que se indignar, a gente não tem que achar natural a maioria nos presídios, nas favelas, nos manicômios ter a pele mais escura. Não é natural. Não tem que ser incômodo somente pra mim chegar num restaurante e o único negro ser eu. Não é natural. E acho que já deu, entendeu? A gente ficou muito em meio-termo, em conversinha, e já deu. Os talentos estão em qualquer lugar, em qualquer cor, em qualquer origem. A gente tem que estar junto em todos os lugares. Já passou da hora, estamos muito atrasados nisso.