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Marcelo Nascimento

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Marcelo Nascimento da Rocha já foi filho do dono da Gol, guitarrista do Engenheiros do Hawaii, líder do PCC, entre outras dezenas de identidades falsas. No mês em que sua história chega ao cinema com Wagner Moura no seu papel, o mais famoso estelionatário do Brasil anuncia que vai começar a usar seu dom de persuasão para o bem. Mas quem é o verdadeiro Marcelo: O golpista arrependido, o mentiroso compulsivo ou o 171 do glamour?

Gabriel Rinaldi

Marcelo Nascimento

Marcelo Nascimento

Um golpista talentoso. Um psicopata. Um gênio do crime. Um mentiroso compulsivo. Um exibicionista em busca de fama rápida. O 171 do glamour. O maior picareta do Brasil.

As opiniões sobre Marcelo Nascimento da Rocha são quase tão numerosas quanto as 16 identidades falsas que ele assumiu ao longo de sua carreira no crime. Marcelo já foi policial de grupo de elite, guitarrista dos Engenheiros do Hawaii, olheiro da seleção, campeão de jiu-jítsu, repórter da MTV, produtor do Domingão do Faustão, líder do PCC etc.

De real em seu currículo, constam um lucrativo e arriscado emprego como piloto do narcotráfico, uma série de roubos de avião e uma longa ficha de golpes como estelionatário, como vender motos do exército, vagas em uma faculdade de direito e impressoras apreendidas pela Receita Federal que nunca seriam entregues.

Mas a mentira mais cinematográfica de Marcelo foi se passar por Henrique Constantino, filho do dono da Gol Linhas Aéreas, no Recifolia, o Carnaval fora de época da capital pernambucana, em 2001. Durante quatro dias, Marcelo foi paparicado por ricos e famosos (ele garante ter transado com duas celebridades), entrevistado por Amaury Jr., fotografado para colunas sociais. De quebra, pilotou um helicóptero e um jato particular cedidos por empresários que se tornaram íntimos do executivo da Gol em questão de minutos. Foi preso no Rio de Janeiro pela polícia federal, depois de transportar no tal jatinho os globais Marcos Frota, Carolina Dieckmann e Ricardo Macchi.

Foi a farsa da Gol que deu fama a Marcelo. Ele virou vilão em matérias da imprensa e herói em diversas comunidades da internet. E sua história foi contada no livro VIPs – Histórias reais de um mentiroso, de Mariana Caltabiano, grande sucesso editorial, com mais de 50 mil exemplares vendidos.

Agora, dez anos depois do mítico Recifolia, os golpes de Marcelo vão ganhar revival em grande estilo, envoltos em nomes de grife. No dia 25 de março, chega aos cinemas VIPs, ficção livremente inspirada na história de Marcelo, com produção da O2, de Fernando Meirelles, direção de Toniko Melo, roteiro de Braulio Mantovani e Wagner Moura no papel principal. Em abril, será a vez de VIPs – Histórias reais de um mentiroso, documentário assinado, como o livro, por Mariana Caltabiano. Nesse meio-tempo, será lançado também Fábrica de monstros, romance que marca a estreia de Marcelo como escritor – uma das atividades que ele pretende adotar, desta vez sem farsa, quando sair da prisão.

É A VOVOZINHA

Amaury Jr. entrevista o falso filho do dono da Gol em dois momentos no Recifolia

Amaury Jr. entrevista o falso filho do dono da Gol no Recifolia

Marcelo recebe a reportagem da Trip em uma sala da administração da penitenciária central de Cuiabá (MT), onde está encarcerado desde 2009. Ao vivo, ele parece antes um afável gerente de banco do que um temível bandido. Esperto, articulado e bonachão (e, após dois sedentários anos, um tanto obeso), ele não se esquiva de nenhuma pergunta e se deixa fotografar com um bolo enfeitado com três velinhas marcando “171” (que passou pela segurança depois de ser devidamente esfaqueado, para não esconder uma lima, uma faca ou um celular).

 

O único momento em que ele sai do sério é para falar de Wagner Moura, que declarou que preferia não conhecê-lo porque Marcelo roubava dinheiro de velhinha. “Só se for da vó dele. Nunca tirei de quem não tinha. Só de quem tinha muito e podia se restabelecer”, rebate. “O Wagner Moura deveria ter buscado conhecer quem sou eu. Garanto que ele teria mais honra de me representar do que interpretar um capitão da PM que executava fazendo pose de herói. Esse cara o Wagner Moura tem honra de fazer?” Por enquanto, a pergunta ficará sem resposta. Procurado por meio de sua assessoria, o ator não pôde responder. Ele estava em Berlim justamente para a exibição de Tropa de Elite 2.

Não é apenas Wagner Moura que quer manter distância do golpista. Apesar de ter dirigido uma produção com um protagonista chamado Marcelo Nascimento da Rocha, com o mesmo título da biografia do 171 e com vários episódios de sua trajetória, Toniko Melo publicou no Facebook: “VIPs é um filme 100% baseado na minha imaginação e na do Braulio Mantovani, onde a ‘realidade’ é usada apenas como uma desculpa para investigarmos a nós mesmos”.

A declaração chegou a Marcelo na prisão e não caiu bem. Em e-mail enviado à Trip no dia do fechamento desta matéria, os advogados Victor Hugo de Campos Santos e Giovanna Corrêa declararam que seu cliente estuda a hipótese de ingressar com um processo contra o diretor, para que este se retrate publicamente e declare que a história do filme baseia-se na vida de Marcelo e no livro VIPs. Apesar de ainda não ter visto o filme, Marcelo não descarta a ideia de pedir a suspensão de seu lançamento.

Adotando o discurso-padrão dos presos regenerados, ele garante que pretende pagar sua dívida com a Justiça e abandonar de vez o crime. “A prova maior de que estou me ressocializando é que eu não quis mais fugir”, ele diz, com a autoridade de quem já liderou uma rebelião em Bangu e depois escapou do presídio carioca de “segurança máxima”. Aos 36 anos, ele anuncia que quer usar seu poder de convencimento para o bem – escrevendo livros, ministrando palestras, cuidando dos negócios que adquiriu em Cuiabá com o dinheiro de VIPs, a biografia e o filme, ao lado de sua namorada. E que tal uma carreira na política? “Aí não. Eu tenho meus limites morais.”

Você se lembra da primeira vez que contou uma mentira para se dar bem?
Eu tinha uns 10, 11 anos. Eu ganhei uma advertência por mau comportamento e dei um jeito de falsificar a assinatura da minha mãe. Não tive nenhum sucesso porque acabei deixando esse bilhete cair no pé dela na hora de sair de casa. “Nossa, o que é isso? Essa aqui não é minha assinatura.”

Então o primeiro golpe não colou?
Não. Mas não foi exatamente um golpe. Existe uma linha tênue que separa a mentira do golpe. A mentira em geral é algo que você conta para esconder algum fato que pode te prejudicar. Como quando você pede para sua secretária dizer que você não está no escritório. O golpe de fato é aquele que você planeja, que você executa, em que você busca obter algum lucro.

Marcelo à vontade numa cabine de avião

Marcelo à vontade numa cabine de avião

Qual foi a primeira mentira que deu certo?
O pai de um amigo meu era sócio de uma grande empresa de ônibus, e eu usava isso para viajar quando tinha uns 14 anos. Eu dizia que era sobrinho do dono e acabava não pagando a passagem. Eu nunca gostei de ficar em casa, sempre dava um jeito de viajar. Eu acredito que boa parte dos conhecimentos que adquiri na vida foi através de viagens, conhecendo pessoas, lugares.

 

Seu pai morreu quando você ainda era adolescente. Esse Seu desejo de sair de casa tem algo a ver com isso?
Nunca tive esse intuito de fugir de casa, de deixar um bilhete dizendo “não volto mais”. Eu via na TV uma matéria sobre um lugar e batia a vontade de conhecer. Minha mãe sabia que eu ia voltar depois de uma semana. Desde muito cedo, ela aprendeu a ser mera espectadora das minhas façanhas. Já meu pai não. Ele ia atrás, pegava ônibus, avião para me encontrar. E me falava: “Você escolhe a vida que você quer, o que você está fazendo é errado e pode te prejudicar no futuro”. Minha família sempre foi voltada para a valorização dos princípios. Tive uma infância tranquila em Maringá [PR] e depois em Curitiba. Praticava esportes, tirava boas notas, meu único problema era mau comportamento.

Você tinha alguma sensação de prazer quando conseguia enganar alguém?
Olha. Eu vi uma reportagem na TV em que um, entre aspas, “renomado psiquiatra” dizia que eu tinha uma doença, uma sensação de orgasmo quando acertava um golpe. Umas coisas baixas pro nível de pessoa que ele julga ser. Mas eu acho que ele é mais louco do que eu. Eu penso o seguinte: se você é um jogador de futebol e faz um gol, que sensação você vai ter? Satisfação, prazer. Não é diferente comigo. Eu ficava satisfeito quando um golpe dava certo, porque era esse meu objetivo. E comemorava fazendo festa. Aí vem um beócio me dizer que sou psicopata porque eu me satisfazia depois de ganhar dinheiro com um golpe. Será que ele não se satisfaz quando recebe por uma consulta?

Mas o problema não é justamente não diferenciar o legal do ilegal?
Sempre tive noção de que estava fazendo algo errado e que uma hora iria pagar por isso. Mas nunca tirei de quem não tinha. As pessoas se restabeleceram e espero que isso tenha servido de aprendizado para elas. Porque eu estou pagando aqui pela aula que eu dei. Todas as coisas que eu fiz na vida – salvo aquelas que fiz só para me divertir – foram muito bem calculadas. Eu sempre fui perfeccionista nas minhas empreitadas criminosas, nunca admiti erro. Talvez por isso eu tenha sido tão alvejado.

Em que sentido?
Alvejado pela mídia. As pessoas dizendo: “Ele é superinteligente e fez coisas que ninguém faz”. O que eu faço qualquer um faz, basta querer. O que eu tenho de anormal em relação a algumas pessoas é o poder de persuasão. Meu plano agora é terminar de pagar minha dívida com a sociedade e ministrar palestras para usar esse poder de forma positiva. Aos olhos de Deus quero ser uma pessoa boa. Pelo menos nunca atentei contra a vida de ninguém, nunca machuquei, nunca matei. E espero ter ensinado a algumas pessoas que a ganância não leva a lugar nenhum.

A sua ganância?
Não, a ganância das pessoas. O alicerce dos meus golpes sempre foi a ganância dos outros. Essa é a principal arma que o estelionatário tem. Se uma pessoa não for ambiciosa, ela nunca vai cair num golpe. Ninguém oferece para uma pessoa duas moedas para ela te devolver só uma. Se acontecer com você, desconfie. É estelionato.

No livro VIPs, você disse que iria cumprir sua dívida com a sociedade e depois ter uma vida normal. Mas depois você fugiu da prisão e foi pego num pequeno golpe. Por que as pessoas deveriam acreditar desta vez?
Olha, essa história foi numa situação um pouco diferente do que é meu cotidiano. Fui atender ao pedido de um amigo que, como eu, estava foragido. A sobrinha dele estava doente e o sonho dela era ter um notebook. Eu estava com meu kit, que é como a gente chama o pacote com identidade falsa, cartão falso. Fui comprar o computador e acabei sendo preso. Não tomei os cuidados que normalmente tomaria. Na verdade, já estava de saco cheio daquela vida.

De fugas?
É. Não é bacana viver fugindo. Eu perdi muito do crescimento do meu filho, do contato com minha família. Agora quero ficar tranquilo. Financeiramente, não preciso mais da vida do crime. O dinheiro dos livros, do filme... isso me dá o conforto de sair para fazer o meu projeto.

E o dinheiro do crime?
Procurei me desfazer de tudo. Torrei antes de entrar aqui. Com festas, doações. Parti do princípio de que minha vida iria começar do zero.

E sua ideia é ganhar dinheiro como escritor, como palestrante?
Sim. E comprei uma distribuidora de bebidas, um salão de beleza e um bar em Cuiabá, que minha namorada está administrando. Quero ser uma pessoa que você possa abordar na rua e falar: “E aí, Marcelo? Tudo bem?”. E eu possa me sentar com você para bater um papo sem a preocupação de ser cercado pela polícia federal.

Você já pensou em ser político?
Não, eu tenho meus limites morais [risos].

“O alicerce dos meus golpes sempre foi a ganância dos outros”

Você tem algum arrependimento?
Eu me arrependo de ter transportado drogas para o narcotráfico. Tenho a consciência pesada por saber que elas fizeram mal a muitas pessoas. O que eu tento fazer ao máximo para me redimir é apoiar pessoas para sair do vício. Há poucas semanas eu dei dinheiro para internar em uma clínica de reabilitação uma menina conhecida de um amigo de cela.

Você se enxerga como um Robin Hood, é isso?
Não. Sou mais um Lex Luthor do bem [risos].

Você encarnou diversos personagens na sua carreira de estelionatário. Você acha que sua atividade tem algum parentesco com a profissão de ator?
Não, acho que não. Tem uma coisa em comum: um dos grandes segredos de um golpista está na dicção. Acho que é algo pouco valorizado pelo ser humano. Vou demonstrar nas minhas palestras que isso é fundamental para convencer as pessoas de que você sabe o que está fazendo. Mas tem algo muito diferente do ator: eu nunca seria capaz de representar alguém que eu não poderia ser. Tem casos de estelionatários que falsificam uma carteira do Conselho Regional de Medicina e saem por aí operando pessoas. Isso é um absurdo, você está brincando com a vida de um ser humano. Nunca tentei entrar em uma área que não conhecia a fundo. Sempre me preparei muito para cada golpe.

E como era essa preparação?
Eu pesquisava muito, conversava ao vivo ou por telefone, usava a internet. Da mesma forma que a internet facilitou o combate ao crime ela também ajudou o criminoso a se aprimorar.

Você tinha que saber de tudo para tentar convencer as pessoas...
Sim. Mas você também tem que estar sempre muito atento e ser sempre rápido. Desde criança, eu tinha um raciocínio muito acelerado. Eu não dou tempo para a pessoa pensar. Vou te dar um exemplo: se eu tivesse uma empresa e fosse entrevistar alguém para uma vaga, eu começaria perguntando bem baixinho: “Qual é seu nome e de onde você veio?”. Se a pessoa responde “hã?”, já não serve para trabalhar comigo. A pessoa tem que ter dinamismo, atenção, sagacidade.

Dê um exemplo.
Desde que eu entrei aqui nesta sala, eu identifiquei o que pertence ao meu cotidiano e o que não pertence. Você tem que entrar num lugar e já saber quantas pessoas estão ali, o que elas estão vestindo, ficar atento ao que a pessoa vai falar, até para saber o que ela quer ouvir.

Existe um segredo para identificar o ponto fraco da pessoa?
Existe, mas não posso falar. Seria como ensinar o pulo do gato.

Quando eu cheguei aqui para entrevistá-lo, o que você observou?
Um exemplo: vi que você usa All Star. Quem usa esses tênis? Pessoas despojadas, relax. Se um cara não está nem aí pro vestuário, ele não tá nem aí com outras coisas, então você já começa falando de futebol, essas coisas. É diferente de você entrar numa sala e ver um cara de terno Armani e relógio Rolex, você vai ter que se aprofundar nos assuntos. Outro exemplo: eu vi que você tem sobrenome árabe. E os árabes são bons negociantes, difíceis de enganar.

Agora você está tentando falar o que eu gostaria de ouvir...
Não, estou falando sério. Eu evitava dar golpes em árabes. Brincava com os companheiros: “O cara é Salim, deixa pra lá que vai dar problema”.

Essa capacidade de persuasão foi um talento que você desenvolveu ao longo do tempo?
Cara, eu devo ter nascido com isso, porque eu não me lembro de ter estudado... Eu acho que foi o dom maior que Deus me deu. Até por isso eu não mexo com religião.

Não foi sua mãe que perguntou PRA VOCê por que não monta uma igreja?
Foi ela, mas várias outras pessoas também. Não faço por quê? Porque sei que daria certo. É muito fácil você pegar um aleijado e falar pra ele assim: “Cara, fé em Deus que você vai melhorar”. Porque Deus é a única coisa em que a gente tem que acreditar. Eu não brinco com as coisas de Deus, com a fé das pessoas.

Você é religioso?
Sou católico, fui batizado, mas não sou praticante. Tenho lido sobre kardecismo e gostado.

Vamos falar de Seu caso mais famoso, o da gol. Foi golpe ou mentira?
Foi uma brincadeira que cresceu. Não foi golpe. Não planejei aquilo, não lesei ninguém. Fui ao Recifolia para relaxar. O fato de me passar por filho do dono da Gol começou com uma brincadeira que nem foi minha. Foi um amigo que tava comigo no camarote. Como as pessoas não olhavam pra gente, ele chegou para umas modelos e comentou: “Aquele cara ali é o filho do dono da Gol”.

Mas você não tinha ligado antes pro camarote dizendo que era da Gol?
É verdade, mas eu disse que era diretor, só para conseguir uns abadás.

“O mundo dos vips é podre. Eu sou falso? Falso é quem me tratou bem achando que eu era alguém”

E o helicóptero e o jatinho que você pilotou? De onde surgiram?
Tudo caiu na minha mão. Tava dando tudo tão certo que eu nem aguentava mais. “Tá de carro?” “Não.” “Ah, então pega minha BMW aqui.” “Eu quero ir à festa. Tem heliporto?” “Tem. Pega meu helicóptero.” Daí vinha outro: “Porra, também tenho helicóptero, pega o meu.” Não vou pegar? Claro que vou.

E o Amaury Jr., como aparece na história?
Ele passou do meu lado, e eu disse para um colega: “Olha o Amaury Jr”. E ele virou a cara. Daí eu vi que uma menina da produção do programa foi correndo e falou alguma coisa no ouvido dele. O Amaury voltou e me deu um abraço: “Constantino, meu querido!”. Ele mesmo depois confessou isso numa entrevista. Que é diferente ouvir “sou fulano de tal” ou “sou o Zurita da Nestlé”. Você vai receber tratamento diferenciado. Pelo menos ele foi sincero em falar isso. O Amaury é uma pessoa única, né?

Qual é sua visão sobre esse mundo dos VIPs depois desse episódio?
É podre. Pura falsidade. Eu, me passando por outra pessoa, fui assediado por caras que fingiam me conhecer há 10, 15 anos. Só é bom para você agarrar mulher. Fora isso, é um mundo porco. As pessoas vivem de aparência. Eu sou o falso? Falso é quem me tratou bem achando que eu era alguém. Nesse caso, deram uma proporção maior por causa dos globais que estavam comigo. Até hoje me perguntam com que mulher eu fiquei na festa.

Com que mulher você ficou na festa?
Não conto. Só no livro que vou escrever. Mas exageraram nas histórias. Falaram que eu peguei três mulheres famosas e eu só peguei duas.

Você tinha um desejo de sacanear essas pessoas, de mostrar que podia pertencer àquele lugar mesmo sendo gordinho, meio careca, classe média?
Não. Eu frequentava essas festas porque, em primeiro lugar, a polícia nunca vai a esses lugares. Segundo, porque eu sempre tive bom gosto. Terceiro, porque, gordinho ou não, eu gosto de mulher. Lamentavelmente eu ia para arrumar mulher.

Como você compara a ética no mundo dos VIPs com a do mundo do crime?
Ah, cara, no crime tem mais ética. Até porque você é penalizado mais facilmente, então você sabe que não pode fazer determinadas coisas. Um estuprador é uma coisa inaceitável dentro do crime. No mundo dos VIPs, se o cara tiver grana e disser que não foi estupro, vira uma relação forçada, passa batido.

Exibindo uma de suas muitas carteiras falsas

Exibindo uma de suas muitas carteiras falsas

Apesar de ser considerado um grande golpista, você foi pego várias vezes, incluindo o caso da Gol. O que aconteceu nesses casos?
Se você analisar minha vida pregressa, vai ver que na maioria das vezes que fui preso foi por causa de mulher. Ou eu fiquei na cidade para ficar com uma mulher mais um dia ou porque tinha uma festa com muita gostosa. Teve um delegado federal que me falou uma vez: “Marcelo, prender você é a coisa mais simples do mundo. Pode fugir. Porque é só pegar uma festa boa que vem por aí e esperar por você”. E era isso mesmo. Eu não tava nem aí pro risco de ser preso, porque eu sempre tive a sagacidade de saber como sair. O que não faço mais hoje. Se quisesse ter fugido, já teria fugido.

 

Você se passou mesmo por líder do PCC numa rebelião no presídio de Bangu?
Isso foi uma falha de comunicação da Globo. Eu nunca me intitulei membro daquela facção. Meus amigos do PCC e do Comando Vermelho me nomearam para ser porta-voz da rebelião, porque eu sou articulado. Eu negociei com a polícia as condições para terminar a história sem violência. E, na prática, o negociador vira o líder da rebelião. Depois eu me dei mal por isso. Porque houve uma fuga e a polícia achou que eu era responsável. Apanhei da tropa de choque por nove horas seguidas. Nove horas de massagem intensa. Por isso eu decidi fugir depois, para mostrar que eu podia sair na hora que quisesse.

Você não tem medo de morrer quando sair? Por exemplo: seu ex-patrão no narcotráfico não pode se incomodar com sua vida nova?
Não. As pessoas dizem que não dá para sair do crime. Mas quem quer sai. Eu tenho uma boa relação com meu patrão até hoje. Mas ele sabe que não faço mais parte do casting dele. É uma pessoa com quem não vou mais conviver, pela minha nova opção de vida. Mas deixei as portas abertas para voltar pelos lugares onde passei. Sempre fui o melhor naquilo que me dediquei a ser. Mas agora quero usar minha inteligência para um lado bom. Só não vou fazer como Frank Abgnale [o golpista americano que inspirou o filme Prenda-me se for capaz, de Steven Spielberg, com Leonardo DiCaprio], que começou a combater fraudes para o governo americano. Não vou combater o que já fiz.

Já compararam você ao Abgnale? faz sentido?
Não. Até porque eu sou mais bonito que o Leonardo DiCaprio [risos]. Brincadeiras à parte, eu piloto avião, e ele não. E o ramo dele era mais falsificação. O meu é mais complexo, porque você tem que trabalhar só com inteligência, sem muita documentação. Não é fácil vender um equipamento que não existe para alguém que sabe tudo daquele equipamento.

Você tem algum ídolo?
Tenho vários, mas não no mundo do crime. O Bono, por exemplo, não só pela música, mas pelo bem que ele faz aos outros. O Chico Xavier. O Jô Soares. Eu queria ter um terço da inteligência dele. Quando ele disse pra Mariana [Caltabiano], no programa dele, que eu daria um bom escritor ou roteirista, eu pensei: “Se ele tá falando isso, é porque eu sirvo para alguma coisa”. Daí eu fui lá e escrevi o Fábrica de monstros, meu primeiro romance.

Você passa o dia escrevendo? Como é sua rotina na prisão?
Tomo banho de sol, como, leio, escrevo. Estou me dedicando a um novo livro, que tem como título provisório Pulgas, fugas e rugas, sobre minha vida dentro e fora do sistema prisional. Tem tudo o que não contei pra Mariana.

No livro da Mariana, tem uma frase que você disse para sua mãe: “É melhor viver bem por 30 anos do que viver na merda até os 70”. Ainda faz sentido?
Faz. Vou te dar um exemplo da minha família. Uma vez levei dois irmãos meus para viajar. Eles ficaram em hotel cinco estrelas, saíram com um monte de mulher, foram a lugares que nem sonhavam existir. Depois me falaram que foram os melhores dias de suas vidas. Eu fui o único cara da minha família que saiu de casa para fazer sua história. Bem ou mal, você está me entrevistando porque eu fiz bem-feito aquilo que me propus a fazer.

Você tem um filho de 10 anos. Ele sabe das suas histórias?
Ainda não. Quando eu sair da prisão, quero sentar com ele e conversar a respeito disso tudo.

Como está a vida amorosa na cadeia?
Vai bem. Eu tenho minha namorada, que vai virar minha esposa. Eu a conheci num episódio engraçado. Quando eu fugi da última vez, vim pro Mato Grosso e me passei por delegado federal. Nós nos conhecemos e saímos durante um mês, sem ela saber quem eu era, o meu nome real. Daí eu fui pra Rondônia e fui preso. Ela descobriu onde eu estava e pediu à diretora da prisão pra me visitar. Ela foi logo perguntando: “E aí, cara, o que você quer da sua vida?”. Eu disse: “Quero pagar minha pena, construir uma vida melhor”. Daí ela falou: “Então eu vou estar junto com você”. E está, desde aquela época.

Como você lida com a fama que veio com as reportagens, o livro, o filme?
Em geral, eu vejo como algo bom. Mas às vezes chega um preso novo falando: “Porra, queria ser que nem você. O que eu devo fazer?”. E eu respondo: “Cara, sai da prisão, vai estudar e trabalhar. Porque hoje no Brasil a malandragem é ser honesto”. Vou te dar um exemplo de um colega de cela que deu uma saída rapidinha e voltou pra prisão. Ele me disse: “Irmão, desisti do crime. Só vou pagar minha pena e vou embora”. “Por quê? Tá arrependido?” “Não. É que um cara que era meu vizinho, um bobão, tá com moto, carro, mulher, vivendo bem. E ganha R$ 700 por mês!” Quer dizer, antigamente você entrava pro crime para ter uma vida melhor. Mas agora já dá para viver bem longe do crime.

“Hoje no Brasil a malandragem é ser honesto. Dá para viver bem longe do crime”

Você entrou para o crime por causa do luxo?
Se tivesse contente com aquela vida de classe média, eu teria ficado em casa. E estaria bem hoje. Mas levaria mais tempo e o trabalho seria mais árduo. O meu foi prazeroso. Se você entra pro crime comendo pão com manteiga, é porque quer comer pão com presunto. Ninguém entra pro crime por tesão, cara... Se bem que tem sim. Por isso é que eu não admito que meu filho escute rap. Coisa mais ridícula uma criança dizendo “quando eu crescer eu quero ser 157”.
Você se surpreendeu com o sucesso do livro?

Muito. Não achei que o livro fosse ter futuro algum, até porque não achava minha história interessante. Mas, quando eu fugi da última vez, vi várias comunidades sobre mim na internet.

E a coisa deve aumentar com o filme VIPs, que é uma grande produção...
Fiquei muito feliz em relação ao filme. Mas, cara, não me pergunta sobre o Wagner Moura.

Por quê?
Ele é um cara competente, mas com pouca sagacidade. Já que ele está me representando, ele deveria ter estudado um pouco a minha vida, porque aí ele não teria a infeliz ideia de dar uma declaração idiota dizendo que não queria me conhecer porque eu roubo dinheiro de velhinha. Só se eu roubei da vó dele. Nunca roubei de quem não tem. Sempre de quem tem.

“O Wagner Moura deveria ter mais honra de me representar do que de fazer o Capitão Nascimento”

Você já viu o filme?
Não, mas sei que o Wagner Moura foi uma escolha infeliz, apesar de ele ter feito um bom trabalho, porque ganhou prêmio [de melhor ator no Festival do Rio]. Só que ele deveria ter buscado conhecer quem sou eu. Garanto que ele teria mais honra de me representar do que interpretar um capitão da PM que comandava um esquadrão de justiceiros que fazia julgamentos por conta própria, que executava com pose de herói. Esse cara o Wagner Moura tem honra de fazer? Caso esse ator não se lembre, em Carandiru ele fazia o papel de um noiado que matou o colega de cela que tentou evitar que ele usasse drogas. Disso ele não tem vergonha? Ninguém obrigou ele a aceitar esse papel, e muito menos eu o convidei. Desde o início eu preferia o Selton Mello.

Só pra concluir: Você mentiu muito nesta entrevista?
Não teria graça dar entrevista mentindo sobre mim. Não estou aqui para te dar um golpe.


Emicida

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O rapaz abaixo é Leandro Roque de Oliveira, filho de dona Jacira. Ele jura ser um bom menino: não bebe, não fuma, sofreu bullying na infância por ser negro e pobre. Mas você o conhece por seu nome de guerra: Emicida, o matador de MCs. Apontado pela crítica como o mais importante nome do novo rap nacional, embarca este mês para rimar no prestigiado festival Coachella, na Califórnia. Mas parece que, quanto mais sucesso faz, menos é tolerado por seus colegas do rap

Jordi Burch

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O rapper Emicida

O rap brasileiro não é mais o mesmo desde que um rapaz paulistano, autoapelidado Emicida, apareceu afrontando um punhado de dogmas que seus colegas mais velhos acalentaram ao longo das últimas duas décadas. Nascido há 25 anos no Jardim Fontales, na zona norte sul paulistana, Leandro Roque de Oliveira é ambicioso, gosta de fazer sucesso e afirma pensar estrategicamente cada novo passo de sua carreira.

Revelado como improvisador em batalhas de freestyle, pela rapidez de raciocínio e de rima que lhe valeu o codinome de “matador de MCs”, ele costuma aceitar de bom grado convites de impacto midiático, os mesmos que Mano Brown e os Racionais MCs se notabilizaram por recusar. Emicida atiça a intolerância de seus pares a cada vez que desobedece as normas do rap local, topando visitar o programa global de Jô Soares ou gravar rock adolescente com a banda NX Zero. “Traidor do rap” e “rapper de playboy” são acusações que ele já ouviu incontáveis vezes – seria Leandro não apenas “Emicida”, mas também um “rapcida” entranhado no hip hop paulistana?

Entre suas façanhas mais recentes estão ter sido escalado para tocar no festival californiano de rock Coachella (em 15 de abril) e o lançamento de Rua Augusta. A música aborda o cotidiano das prostitutas de calçada, sob um ponto de vista mais próximo delas que de seus potenciais fregueses. O vídeo segue o dia a dia de Rosana, uma prostituta real da Vila Mimosa, no centro do Rio de Janeiro.

“Eu vejo minha mãe e minhas irmãs nessas minas”, afirma Leandro, marido de Carolina e pai de Estela, 1 ano, divergindo da misoginia explícita do gangsta rap e de grupos brasileiros influenciados por aquela vertente. O exemplo, diz, vem de dentro de casa. A avó paterna foi assassinada pelo marido, seu avô, que comprara a futura esposa numa fazenda, quando ela tinha 12 anos. Alcoólatra, o pai de Leandro morreu cedo, como a maioria dos homens da família.

Tolerância e intolerância vivem em constante embate no mundo de Emicida

Evandro, seu irmão caçula, trabalha ao seu lado desde que Leandro virou Emicida e se destacou com as mixtapes Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe (2009) e Emicídio (2010), lançadas por sua produtora/gravadora/fábrica de CDs independentes, Laboratório Fantasma, localizada no bairro de Santana. Cada uma já vendeu cerca de 10 mil exemplares, produzidos e comercializados na base do faça-você-mesmo.

Traumas do passado e circunstâncias do presente fazem de Leandro um rapper que dribla o excesso em sexo, drogas & rock’n’roll, como a Trip verificou ao acompanhá-lo numa noite de show ao lado da banda mato-grossense de rock Macaco Bong, no Studio SP, casa de shows de bandas independentes na rua Augusta. “Não falo de crime, trato mulher com respeito, eu sou evangélico”, ele brinca. “Se não falasse tanto palavrão, ia ser gospel fácil.”

PATRULHA DOS PURISTAS

Na manhã seguinte ao show da madrugada na rua Augusta, Leandro e sua mãe, Jacira, levam a reportagem da Trip para conhecer a casa dela no bairro de Vila Cachoeira, na serra da Cantareira. Com Jacira, acostumou-se a ouvir MPB. Seu pai biológico era DJ de bailes black. E o padrasto, vindo do campo, o ensinou a gostar de moda de viola. Jacira levava os filhos pequenos a cultos evangélicos, menos para rezar e mais para filar refeições em tempos mais duros. Hoje Emicida afirma que absorveu dos sermões dos pastores o poder de persuasão que usaria mais tarde no freestyle. Para desespero dos puristas, Emicida é um rapper que valoriza música sertaneja, MPB, funk carioca e pagode.

Tolerância e intolerância vivem em constante embate no mundo de Emicida. Ora ele é patrulhado pelos puristas do rap, ora processa por discriminação racial um taxista que o chamou de “macaco”. Movimenta-se entre gêneros musicais e religiões. Ora ensaia discurso de respeito às mulheres, ora hesita em topar uma das propostas da Trip para a foto da capa, de vesti-lo numa camiseta com os dizeres: “Algumas pessoas são gays. Acostume-se”. Homossexualidade e homofobia são tabus ainda inexplorados pelo rap, e Leandro não peita a ousadia. “Todo mundo vai ver a foto, mas nem todo mundo vai ler a entrevista”, argumenta. Ainda assim, pede a camiseta de presente no fim do encontro, para, quem sabe, usá-la qualquer dia desses.

(A conversa começa dentro do carro, perto da meia-noite, no caminho entre o Laboratório Fantasma e o Studio SP.)

Jordi Burch

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Emicida na casa de sua mãe, na Vila Cachoeira, periferia de São Paulo, com montanhas da Serra da Cantareira ao fundo

O que você sentiu gravando o vídeo de "Rua Augusta"?
A gente adquiriu uma frieza, mas quando entrou na casa da Rosana e começou a conviver com ela foi foda. Ela saía do emprego às nove da manhã. A gente queria filmar o dia a dia fora do prostíbulo. A coisa ficou família, uma mulher cuidando do seu filho. Era mais fácil pegar uma atriz e fazê-la fingir que era puta, pôr ela fazendo pole-dance.
[O carro passa pela Santa Ifigênia, rua comercial de São Paulo] Vila Mimosa é uma Santa Ifigênia do sexo, várias mulheres peladas, um bagulho pesado.

Por que pesado?
Você entra num lugar e vê umas tiazinhas de 60 anos e umas minas de 14, peladas. Várias minas tão bem loucas desde cedo, é droga pra caralho. É foda pra mim, eu fui criado por uma família de mulher, então vejo muito as angústias das mulheres. É minha mãe, minhas duas irmãs, cinco ou seis tias e minha avó. Todos os homens da minha família morreram, só tem o Evandro e alguns primos. Toda vez que vejo uma mina nessa situação, não vejo a parada rasa, a mina ali com uma roupa de puta. Imagino: “Quando acabar essa porra essa menina vai voltar pra onde?”. Sei lá se ela tem casa, família, se o pai bate nela ou abusa dela, se ela tá ali porque gosta ou porque precisa.

Muito do hip hop brasileiro foi desrespeitoso com as mulheres, por muito tempo. Por que você é diferente?
Eu vejo minha mãe e minhas irmãs nas minas. Então procuro respeitar. É a maior burrice, que vem de reproduzir uma cultura lá de fora, dos caras que chamam menina de puta, vadia. Parece que o rapper nasceu de inseminação artificial. [O carro entra na rua Augusta, Leandro aponta as meninas na calçada] Viu as meninas cheirando cocaína no meio da rua, aqui do lado? A Rosana contou uma pá de barato, sobre as minas que morreram. Falou de uma amiga dela que foi encontrada mutilada, esfaqueada, num hotel. A história mais triste que ela falou é que o nome dela realmente é Rosana.

Como assim?
Toda prostituta usa nome falso, mas ela usa o nome de verdade, por quê? “Porque toda semana eu vejo uma mina dessas ser morta. Se meu nome é Rosana e eu falar que chamo Natasha, como vão avisar meu filho que eu morri?”
(Emicida vai se preparar para o show. O novo encontro acontece na manhã seguinte, no Laboratório Fantasma. A conversa começa no carro, com a presença de sua mãe, e continua na casa de Jacira, na Vila Cachoeira.)

Como vai o Pai Leandro?
Pai Leandro vai ausente. Minha filha tá com 1 ano e 2 meses já, tá falando pra caralho, falando e correndo. Tá grandona.

Por que você foi pai tão jovem?
Por quê? Pobre acontece, né? No começo tomei maior sustão, mas pensei: “Não vai ser nada mais difícil do que eu já tenha visto nesta vida, então vamos aí”. Ela nasceu num momento complicadíssimo. Eu tinha condição de cuidar dela, mas não podia e não posso estar lá. Todo dia tem um mundão de coisa pra fazer.

"Rua Augusta" faz você pensar na sua filha também?
Tudo tá ligado. As angústias, sofrimentos, as metamorfoses das mulheres, é tudo muito parecido. A Rosana é uma mulher comum, e todas são. Da Rosana até a Lady Gaga, todas têm TPM, até a rainha Elizabeth. Os caras me zoam porque tenho uma filha: “Agora você vai pagar seus pecados, tudo que aprontou”.

Mas você parece ser um cara bem-comportado.
Eu sou um cara bem-comportado.

Ontem, no show, ofereciam cerveja e você recusava. Era porque estava trabalhando?
Não, eu sou assim. E você me pegou num dia bom, tem vários dias que os caras chegam com baseado desse tamanho. “Trouxe lá de Salvador pra você, é da pura.” “Não, cara, eu não fumo.” “Mas pega.” “Não.” [Jacira ri].

Você não fuma nem bebe nada?
Nada. Mas eu tenho um hábito bizarro, viajo pros lugares e trago sempre uma garrafa de cachaça. Guardo em casa. Outro dia, dei uma bicada numa que devia vir com caveira no rótulo, porque mata, o olho encheu de lágrima na hora. O que destruiu todos os homens da minha família foi a cachaça, tá ligado? Meu pai, meu tio, meu vô. Tenho trauma. Quando vejo as pessoas bebendo não vejo um bagulho de celebração. Eu vejo: essa porra vai matar você.

Isso vale pra outras drogas?
Também. Tenho a maior raiva de bêbado. Tipo ontem no show. Eu tava lá, colou uma mina e começou a cantar um refrão meu.

“Chamam mina de puta, vadia. Parece que o rapper nasceu de inseminação artificial”

Era uma loira?
É, a loira, tá ligado? Ela falou assim: “Por que você ficou tão marrento depois que foi no Jô Soares?”. Olhei pro meu camarada e falei alto: “A mina tá bem louca, entra na conversa dos outros e vem falar bosta pra mim”. E ela [faz voz bêbada]: “Eu não tô bem louca, não!”.

Ela foi embora depois?
Foi nada, mano, ficou me chamando pra ir pra casa dela. Grudou dum jeito... E aí começou a contar da vida dela, entrou numa deprê, sentou lá e começou a falar: “Eu tenho uma filha de 3 anos, meu marido me abandonou”. Aí, puta, mano, essas histórias me cortam o coração.

A bêbada chata vira um ser humano...
Vira um ser humano! Aí eu quis ouvir a história, puta que pariu, peguei um afeto por essa desgraçada. Tô com dó dela agora, tadinha.

Que rapper é esse que evita sexo, drogas e rock?
Total, não fala de crime, trata mulher com respeito. Eu sou... Eu sou evangélico. Sou gospel. Sou semievangélico, se eu não falasse tanto palavrão, ia ser gospel fácil. Mas a mina lá foi embora com outro, não tem nada a ver comigo. Eu sou só um símbolo que ela tá vendo, ela quer falar pras amigas que tá dando pra um cara que é famoso. É a mina que vai engravidar e vai ter uma pensão alimentícia do maluco.

Tem gente que vira artista por isso...
Sou friozão. Passo tranquilão no meio do inferno e saio do outro lado lá. Tenho um relacionamento difícil com várias pessoas por isso, inclusive com a minha mina. Vou num lugar, tá tendo o coquetel da revista Sexy, várias minas em trajes sumários. Só que eu tenho uma missão, sou um soldado. Não me perco no caminho. Esse negócio de Emicida só existe na cabeça das pessoas. Vejo como se eu trabalhasse pro Emicida. Não tem nada de vida de artista, ficar massageando o ego, “fui no Jô Soares”.

Cobram muito de você por isso?
É muito louco o impacto da Globo. Tem lugar que vou e as pessoas perguntam mais da Afrodite [cadela de Emicida] do que de mim, por causa do Jô Soares. O garçom lá em Santa Catarina: “Você mordeu o cachorro mesmo?”.

Você mordeu?
Mordi, cara. Minha mãe trabalhava de empregada doméstica, a gente não tinha grana pra nada. À tarde, o que tinha pra comer eram dois pães, que a gente cortava no meio e cada irmão comia metade. Um dia eu tava comendo e vendo TV, e a Afrodite veio e comeu num bocado só. Fiquei puto, puxei ela aqui e dei uma mordida nela. Aí comecei a refletir: caralho, que situação foda, você morder um cachorro porque ele comeu o único pedaço de pão que você tinha. Graças a Deus virou piada, mas foi foda. Por isso eu coloquei na capa do disco.

Arquivo pessoal

Leandro, Katiane, Evandro, dona Jacira e a cadela Afrodite, que foi mordida pelo futuro rapper na disputa por um pedaço de pão

Leandro, Katiane, Evandro, dona Jacira e a cadela Afrodite, que foi mordida pelo futuro rapper na disputa por um pedaço de pão

Você sofria bullying na infância?
Sempre. Me zoavam porque eu não tinha pai, porque eu não tinha meias, porque eu era preto. Mesmo em escola de quebrada, tive o azar de ser o único negro. Até tinha outros, mas que não se comportavam como pretos, meninas que alisavam o cabelo. Era “cabelo de bombril”, “macaco”, até a professora dava risada.

Você conta que aprendeu a fazer rap com um pastor, quando era pequeno e frequentava a igreja.
É, eu venho dessa linhagem aí. Eu achava a macumba mais divertida, ficava ligado no batuque, mas o texto dos pastores influenciou meu freestyle, esse lance de persuadir as pessoas.

Jacira: Nós éramos integrantes da Igreja católica e do Movimento Sem-Terra. Já dormi muito em acampamento sem-terra com esses meninos. Eu era católica porque minha mãe era, toda a vida achei um saco. Um dia chutei o pau da barraca. Fazia parte do grupo Filhas de Maria, mandei todo mundo pra casa do caralho, tinha umas saias compridas, cortei e de cada saia fiz três. Aí fomos pra Universal.

Emicida:
Assim que meu pai morreu a gente colava nesse bagulho, mais porque depois do culto sempre rolava um rango.

Jacira: O pai dele era disc jockey. Ele não conseguia baile pra fazer, começou a trabalhar como metalúrgico, depois a pegar ferro-velho na rua. Aí começou a beber.

Emicida:
Colou nos espíritos sem luz.

Jacira:  Logo a mãe dele faleceu. Meu sogro era muito violento, matou minha sogra. Tive uma cunhada que não morreu porque fugiu, mas abortou três vezes, porque meu cunhado chutava a barriga dela, coisas desse tipo. 

E o seu padrasto?
Seu Eduardo é um maluco da hora. Tive meus desentendimentos com ele na adolescência, mas hoje o vejo na minha escola musical. Ele trouxe esses discos de moda de viola, por ser homem de campo. Só dei valor pra Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano quando conheci as paradas do seu Eduardo.

Qual é a história do Seu Eduardo com funerária?
Ele dava flores pra minha mãe, chegava todo dia com um maço de rosas, que homem romântico. Aí descobrimos que ele trabalhava na funerária, começamos a falar que ele arrancava flor do caixão... Minha escola musical foi essa aí, minha mãe escutava essas músicas de MPB, de dor de cotovelo. E as modas de viola do seu Eduardo eram sofridas pra caralho, mas tem a maior semelhança com o rap.

Você acha? Nunca imaginei.
Porra, os caras da moda de viola gostavam de dar umas ideias firmeza: “Mundo velho não tem jeito, já não endireita mais/ os filhos de hoje em dia já não obedecem os pais/ é o começo do fim, já estou vendo sinais/ metade da mocidade estão virando marginais” [versos de “A vaca foi pro brejo”, de Tião Carreiro & Pardinho]. Era uma coisa de alertar a sociedade, o rap também tinha essa postura.

Por que você gravou uma música com o NX Zero?
Porque eu gosto de NX Zero. Podem achar que traí o rap, mas eu gosto do NX Zero, eles me convidaram, qual o problema? Gravar com eles ampliou meu público, eu quero ser conhecido. Eu penso estrategicamente, não tenho culpa se os caras do rap não fazem isso. A gente tem três músicas de periferia hoje no Brasil: o rap, o funk e o tecnobrega do Pará. Um dia vai ter que unificar tudo isso, porque é tudo a mesma coisa, música de periferia.

Você faria um rap misturado com funk?
Faria. Nem toda letra de funk presta, mas o som do funk é bom, é cheio de batida, de batuque. Eu não acho ruim pensar minha carreira estrategicamente. O rap nacional nunca teve um boom comercial porque não tem um grupo de rap que seja autêntico e ao mesmo tempo seja comercialmente viável pras gravadoras. O único cara que foi longe foi o Marcelo D2. São Paulo é a terra do rap no Brasil, mas tirando Racionais não tem um grupo de expressão monstruosa. Os rappers que têm uma disseminação maior são todos do Rio, D2, Gabriel o Pensador, MV Bill. Um amigo da minha mãe falou: “O que eu gosto do seu rap é que ele foge desses racionaisismos”. Ele fala como se fosse uma religião, o “racionaisismo”. Os Racionais têm um peso ideológico foda pra nós, é a nossa história, mas até hoje o argumento mais forte deles é que não vão na mídia. E eu, cada vez que vou, sou apedrejado, como se eu fosse o Mano Brown, como se eu tivesse dito as coisas que ele diz. Nas favelas a regra é essa, os caras me cobravam: “Mas não tem o pacto dos rappers de não ir na mídia?”. Que pacto, mano?

Você acha que tem que ir à mídia?
Porra, lógico, cara. Você tem que ir onde tem respeito, onde as pessoas falam com você. Tipo, sou preto de favela, quero mudar essa situação e não vou lá falar com as pessoas do outro lado, vou ficar aqui reclamando? Nem fodendo.

"Podem achar que eu traí o rap, mas eu gosto do NX Zero, quero ser conhecido”

Você compra briga com o rap tradicional falando isso?
Não, eu compro uma briga com os caras hipócritas do rap tradicional. Todo mundo sabe que a coisa tem que andar e para isso acontecer a gente tem que dialogar. Você vive uma situação que te impulsiona a escrever uma música falando da pobreza. Assinou um contrato, vendeu disco, fez show, ganhou dinheiro. Na segunda parte, quando era necessário mostrar que conseguiu um progresso que não é do crime, você esconde aquilo e repete a dose da pobreza. As pessoas compram de novo, porque adoram o sofrimento, mas já não é a sua realidade, é mecânico. De repente, o rap virou um partido político.

De esquerda ou de direita?
De esquerda, mas que não funciona. Um mano meu diz que Karl Marx é foda, mas os marxistas são uma bosta. Aconteceu isso com o rap, a ideologia é foda, mas quem põe ela em prática tá fodendo ela.

Se olhar pelo ponto de vista deles, talvez entendam você como uma diluição do rap, "o cara se vendeu".
Sim, para algumas pessoas sim. A minha única diferença é que tenho esse pensamento estratégico muito bom. Tento construir coisas que gerem mais coisas pro próprio rap, embora eu não me sinta muito à vontade quando as pessoas obrigam a gente a estar vinculado ao social. Quem tem obrigação de mudar essa porra é o governo, não é grupo de rap.

Você fica à vontade tocando em clubes de playboy?
Eu vejo cara na internet dizendo que eu canto pros caras que me discriminaram a vida inteira. Isso é um argumento muito vazio. Sou filho adotivo dum branco. Minha mãe trampava de empregada, eu ia com ela lá nas mansões. Eu achava do caralho. Era favelado só durante a noite, durante o dia eu morava em casa de rico [risos]. Minha mãe trampou pra patrão cuzão, mas também pra arquiteto que deixava eu ficar desenhando. Via escultura, tinha livro pra caralho, podia ficar vendo TV a cabo.

Mas como é tocar para esse público?
Tem uns momentos que entro num conflito, mas sinto que esse conflito é por causa do rap, não por eu estar num lugar estranho. Não posso escolher quem compra meus CDs e vai no meu show. Se eu for tocar no Japão o que eu vou fazer? Vou mandar importar uns pretos? Durante muito tempo eu fiquei no maior pé-atrás pra falar do que faço, dizia “a gente lançou um CDzinho aí” como se tivesse pedindo pras pessoas olharem pra nós por essa ótica do sofrimento mesmo. Não, mano, a gente é foda, vai fazer um CD e ele vai vender no mínimo 20 mil cópias. Por quê? Porque a gente sabe trabalhar direito. Eu tinha medo de declarar isso, mas comecei a me livrar dessa parada. E os caras começaram a dizer que eu fiquei marrento. Porque fiquei famoso eu tô esnobe? Não é ser esnobe, eu falo do que faço. Aí me olham e me chamam de moleque de apartamento. Na cabeça de vários caras do rap, o rap que eu faço é de boy porque é inteligente.

Mas você reclamou que não tinha muitos pretos no show ontem.
Estranho muito mais pela plástica da coisa, porque a gente tá adequado a ver vários pretos num show de rap mesmo. Quando subo e vejo vários brancos me dá um baque, mas tiro maior onda, não é um bagulho que me agride. Duas horas antes eu tava na Transamérica cantando com NX Zero, tinha várias loirinhas gritando: “Emicida!”. Acho do caralho. Domingo a gente vai estar aqui na quebrada, no Cachoeirinha, no pé da favela. Ali vai ter boy, maloqueiro, ladrão, todo mundo vai. Tem gente que sai de Alphaville pra vir aqui, isso é do caralho.

O rap brasileiro nasceu lutando contra o racismo, mas era também misógino, homofóbico. Emicida é rapper, logo...
... Emicida é a contramão de várias dessas coisas aí. Mas, vou te falar uma parada, o rap não nasceu combatendo o racismo. O primeiro rap era de festa: “Fiquei sabendo, tem um tal de Pepeu/ que canta rap bem melhor do que eu”. Mas aí sabe o que aconteceu? Chegou NWA, Public Enemy, o rap gringo de protesto. Levou-se pra um lado consciente e daí foi pra um lado gangsta. Em 2000 veio o boom comercial com Jay-Z, rapper milionário. A gente tá sendo tão ridículo quanto os gringos, pegando o que há de pior no rap lá de fora, a casca. Rihanna apanha do namorado, quer processar, mas ela mesma se porta como puta. Do jeito que elas admitem ser tratadas, elas tão sendo agredidas de outra forma. Você cria uma sociedade doente.

Misoginia e homofobia foram importadas também ou a gente é assim?
Cara, isso não é do rap, vem da sociedade, e muito mais da sociedade de São Paulo. No Rio vejo mais respeito pelo homossexual, embora São Paulo tenha a maior Parada Gay do mundo. No resto do ano é notícia de agressão.

Você faria um rap sobre homofobia?
Nunca pensei nisso. Mas na verdade nunca fiz um rap falando nem de preconceito racial.

Mas você fala de preconceito racial da música "Quero Ver Quarta-Feira", com a Mart'nália.
Sim. Nenhum tipo de discriminação é novidade pras pessoas. Processei um maluco por racismo. Ele implorou, ajoelhou pra mim, e eu achei da hora [risos]. Depois não levei pra frente, ia ter que faltar nos shows pra pôr o cara na cadeia. Só a dor de cabeça que dei no filho da puta, de ver ele chorando, já deu a lição. Fora que a polícia não registra BO de racismo. Não registra porque é inafiançável, se registrar tem que prender e, se prender, tem que trabalhar.

Qual foi o caso?
Eu e a Carolina pegamos um táxi, descemos na rodoviária Tietê, fui pagar, o maluco falou que o dinheiro era falso. Dei outra nota, ele falou que era falsa. “Pô, mano, só tenho essas duas notas.” Ele começou a falar uma pá de bosta, a resmungar: “E aí, vai querer debater, macaco?”. O segurança da rodoviária disse: “Desce daí, eu vi, isso é racismo, você vai ser preso”.

O segurança era negro?
Não, era branco, é importante ressaltar. O polícia era preto, não ouviu porra nenhuma. Ficamos seis horas na delegacia, o maluco começou a implorar, falou que tinha um sobrinho que era preto. “Vamos fingir que não aconteceu nada.” “Não, vou te foder pra você aprender.” Aí ele ajoelhou e começou a chorar, minha mina chorando também: “Ele tá pedindo perdão”. Eu gosto, ele tem que ser colocado nessa posição mesmo, de humilhado. Pode crer, não somos racistas, não, como diz o livro do Ali Kamel...

Você diz que rap, funk e tecnobrega deveriam se unir. O preto, a mulher e o gay não deveriam trabalhar juntos contra o preconceito?
Total, você falou da melhor forma.

Defender a homossexualidade no rap é um tabu.
MV Bill já deu essa ideia, mas as pessoas fingem que não ouvem. Helião falou da burrice do rap em “O mensageiro”: “Vejo nos bailes rap milhares de pessoas/ não conquistamos o respeito, nem com festas boas”. Sei todos os raps de cor.

"Emicida" é "o matador de MCs". Você está comendo o rap por dentro?
Acho que sim, acho que a gente é a maior bandeira dessa revolução hoje. Eu sou o maior nome dessa nova fase, dessa nova safra do rap.

Você vai matar o rap?
O que os caras vão fazer da música deles eu não sei, mas eu vou cantar com [a sambista] Fabiana Cozza e me sinto pequeno. Não quero me sentir pequeno. Por isso falo que não sei se o que vou fazer vai ser chamado de rap ou se vai ser rap. Falam que Gabriel o Pensador não é rap. Pra mim é, e um dos mais fodas que tem. A favela adora ele, sabe por quê? Porque ele é sincero na música dele, não tá de patifaria.

Engraçado. Pra mim é como se ele soasse falso...
A imprensa espera o aval do rap de São Paulo sobre tudo que é feito de rap fora de São Paulo, e o rap de São Paulo não vai assumir que Gabriel o Pensador é foda. Todo mundo fala de preconceito de preto, mas propaga essa porra de piada de loira.

Olha, te digo que sou gay, mas tenho medo de falar isso pra vocês.
[Irônico] Não tava ligado nisso aí, não, mano, não olha mais pra mim! [Risos, Jacira gargalha.] Tenho vários camaradas que são gays. Se for com base nisso aí os caras que devia odiar são os héteros, que vivem fazendo bosta.

Para terminar, qual é a sua religião?
Sou uma mistura de todas. Admiro budismo. Respeito candomblé. Mas minha doutrina de vida é respeitar essas coisas todas. Se fosse ter uma religião, seria respeitar a natureza, interferir o mínimo possível no que tá ao meu redor.

Julian Assange

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Fundador do WikiLeaks, a organização que vazou centenas de milhares de documentos secretos, Julian Assange é hoje o homem mais vigiado do mundo – e uma das figuras públicas mais cercadas de mistérios. Ao mesmo tempo em que revela algumas das mais bem controladas informações de governos e empresas, ele tenta manter restrito o acesso a sua privacidade. Mas Trip furou o cerco a Assange e entrou na casa onde ele está preso na Inglaterra, para revelar sua rotina, suas ideias – e ainda fazê-lo vestir a camisa da seleção – na primeira vez que falou, em pessoa, à imprensa do Brasil

Eliza Capai

Julian Assange

Julian Assange

Sem cerimônia, assim como quem vai pegar uma tia que chegou para uma visita, Julian Assange aparece para nos buscar na estação de trem. Desce do carro sorrindo, apresenta-se, pergunta se fizemos boa viagem e comenta que tivemos sorte porque estava sol. A cena prosaica na nada glamorosa estação de trem de Diss (cidadezinha de 6 mil habitantes a 146 km de Londres) não combinava com a aura de mistério que envolve um encontro com o australiano que fundou o WikiLeaks e acabou se convertendo em ícone pop, pedra no sapato do Pentágono, pivô de uma nova diplomacia mundial e o mais novo inimigo público número 1 do governo dos EUA. Mas basta entrar no pequeno, não tão novo e mal lavado automóvel com que Julian foi nos buscar que o assunto se torna tudo, menos banal.

“Ontem um helicóptero das forças armadas do Reino Unido voou sobre o gramado em frente à casa. Era daquelas aeronaves militares grandes, com duas hélices”, conta Assange, sem dar maior importância ao fato. E segue contando causos, a caminho de sua atual residência. Parece feliz por estarmos ali, por receber visitas em sua cada vez mais reclusa rotina. Revela-se uma pessoa mais bem-humorada do que suas entrevistas e aparições públicas sugerem. Parece também bastante relaxado para um homem que, aos 39 anos, está cumprindo prisão domiciliar, monitorado por uma tornozeleira eletrônica, na mira da CIA e de enormes esforços diplomáticos para que seja “neutralizado” – o que quer que isso signifique.

Comigo no carro estão Natalia Viana, jornalista brasileira que colabora com a organização e é uma espécie de representante do WikiLeaks no Brasil, e Eliza Capai, fotógrafa e videomaker brasileira radicada em Barcelona. A Trip foi o primeiro veículo da imprensa brasileira a ser recebido pessoalmente por Julian, que aguarda uma nova etapa de seu julgamento de extradição pedida pela Suécia à Inglaterra. Quem acompanha o caso sabe: a justiça do país nórdico decretou sua prisão por conta da denúncia de duas mulheres que o acusam de não ter usado camisinha em relações sexuais, entre outras condutas que, por lá, podem ser classificadas como estupro ou agressões. Assange nega as acusações, alega que as relações foram consensuais e insinua que há outros interesses envolvidos nesse processo. A saber: encarcerar e acabar com a reputação do homem que vem revelando segredos – que vão do criminal ao embaraçoso – de governos, exércitos e empresas do mundo todo.

O WikiLeaks existe desde 2006, mas saiu da pequena fama entre hackers e ativistas para as manchetes mundiais em 2010, ao divulgar para o mundo um vídeo chocante. Batizado de “Assassinato colateral”, foi feito dentro de um helicóptero Apache, em que soldados fuzilam arbitrariamente iraquianos, matando ao menos 11 pessoas, incluindo dois jornalistas da Reuters. Mas o ápice de Assange e seu grupo veio mesmo quando eles realizaram o maior vazamento da história, o chamado Cablegate, com o início da divulgação de mais de 250 mil telegramas diplomáticos que expuseram como a maior potência mundial enxerga e interage com todos os governos do mundo.

"Parece relaxado para um homem monitorado por uma tornozeleira e na mira da CIA"

Foi quando os EUA perderam de vez a paciência com Julian Assange. O único suspeito de ter vazado essas informações secretas é um jovem militar chamado Bradley Manning, hoje confinado em uma solitária na base militar de Quantico, no estado da Virgínia. Mesmo sem provas, vive, há nove meses, sob condições classificadas como tortura por organizações internacionais. Julian jamais confirmou a fonte. “Manning é atualmente o preso político número um dos Estados Unidos. Já encarou mais de 310 dias de confinamento em uma solitária de uma prisão militar, e ainda nem foi a julgamento. É uma situação muito sombria”, comenta. E aqui entra o diferencial tecnológico do WikiLeaks: sua pesada criptografia, que torna irrastreável, inclusive para a organização, a fonte dos documentos.

Na mesma época da prisão de Manning, veio à tona a acusação de estupro. Até então o australiano levava uma vida meio errante, por diferentes países – a preparação do vídeo de que falamos acima, por exemplo, foi na Islândia, e Julian já morou no Quênia e no Egito, entre outros lugares. Depois, expedido o mandado de prisão, ancorou-se na Inglaterra. Foi quando tornou-se rapidamente uma celebridade antissistema.

Eliza Capai

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Julian Assange

COM OU SEM BARBA?

O ativista e autoproclamado jornalista é uma atração do condado onde hoje vive. Após 40 minutos de estrada, estacionamos nos fundos da propriedade e logo uma senhora que vive ali perto vem entregar um jornalzinho comunitário. Troca três ou quatro frases rápidas com o vizinho ilustre e se vai, rindo. “Ela sabe quem você é, né?”, pergunto. “Claro. Aqui nunca acontece nada... Ah, e tem uma coisa engraçada. Ellingham Hall [a mansão onde ele está hospedado] fica na divisa dos condados de Norfolk e Suffolk, e os moradores de um lado e de outro disputam entre si quem pode dizer que está nos abrigando”, gaba-se.

O “abrigo”, no caso, é um casarão do século 18 encravado em meio a uma propriedade rural de 240 hectares onde Julian Assange e alguns pouquíssimos associados vivem atualmente. A casa, que tem um site bem completo antes usado para anunciá-la como locação para casamentos e outros eventos, pertence a Vaughan Smith, descrito pela mídia inglesa como um oficial reformado do exército, ex-correspondente de guerra, dono de restaurante, cultivador de alimentos orgânicos e simpatizante da causa de nosso entrevistado. Nas fotos ou olhando do lado de fora, o casarão impressiona. Pela fachada, parece que o interior será suntuoso, palaciano, mas não é o caso. A cozinha, por exemplo, apesar de espaçosa, é pouco mais do que OK. Tem uma geladeira nova, mesa grande, cadeiras simples, bancada de mármore, boas panelas, um fogão antigo... e vai meio que ficando por aí. O destaque fica para o adesivinho “Free Bradley Manning” entre os imãs de geladeira.

Ao lado da cozinha ficam dois salões com algo entre 70 e 100 m² cada um. Com paredes decoradas com pinturas e objetos antigos, têm mobília que mescla peças centenárias com outras mais recentes, aparentemente ali por praticidade, para o uso diário dos atuais moradores. Nessas duas salonas, janelas altas se abrem para um enorme gramado muito bem cuidado, com árvores centenárias e salpicado de faisões. Mais ao fundo, patos nadam calmamente em um pequeno lago.

Durante o tempo em que estivemos por ali, passaram algumas visitas. Por exemplo, um rapaz que aparentava ser de alguma ex-república soviética, que levou de presente uma vodca especialíssima, em uma caixa de veludo. “Talvez você devesse pedir pra eles experimentarem, pra ver se não está envenenada”, brincou o camarada, olhando pra nós. “Pensei que você era amigo”, respondeu Assange, rindo, de bate-pronto. Tomamos todos algo como meia dose. Era uma delícia, mas ficou por isso mesmo. Uma integrante comentou: “uma vez uma amiga veio aqui e achou que ia encontrar um clima meio de balada, todo mundo bebendo, sei lá... Depois que fomos embora, ela reclamou: ´pô, vocês só ficam no computador!´”. 

É nessa mesma salona do episódio da vodca que Julian trabalha na defesa do processo de extradição que sofre e centraliza em si as decisões e estratégias de todo o enorme fluxo de trabalho que o WikiLeaks demanda. Eles ainda têm em mãos dezenas de milhares de documentos governamentais e de empresas não divulgados, o que causa enorme apreensão de muita gente poderosa pelo globo – Bank of America, governo russo e outros já citados publicamente por Julian recentemente que o digam. É um volume enorme de textos e informações que precisa ser cuidadosamente avaliado, criptografado e taticamente distribuído para grandes grupos de mídia para ajudar Assange e seus comparsas a chegar ao objetivo da organização. “Defendemos um conceito simples, mas abstrato: a verdade é o único ingrediente realmente útil na hora de tomar decisões. E tais decisões, até pelo quanto podem afetar o mundo, devem sempre ter por base a verdade”, explica Assange, na entrevista a Trip.

Essa transparência ele não se mostra muito disposto a oferecer ao público quando o assunto é o próprio WikiLeaks. Pede que não fotografemos nenhum outro membro do staff. Também não quer fotos no interior da residência. Para ter certeza de que cumprimos o trato, no fim do encontro checa pessoalmente um por um os cartões de memória de Eliza, nossa fotógrafa. Exige que eu assine (com ele), antes de qualquer coisa, um contrato de confidencialidade em relação a certas informações que, caso quebrado, eu haveria de pagar módicos 12 milhões de libras. Centralizador, gosta de cuidar de algumas tarefas técnicas menores da organização que, para alguém de fora, parecem mais adequadas a um estagiário. 

Conseguimos convencê-lo a manter a barba rala para as fotos com a camisa do Brasil, mas, para a entrevista em si, sabendo que haverá registro em vídeo, faz questão de se preparar -- “vídeos e fotos são facilmente retirados do contexto. Faço para uma revista brasileira, mas qualquer um pode pegar trechos e postar em qualquer outro lugar na internet”. Barbeia-se, escolhe um paletó melhor e até estuda o posicionamento mais adequado de sua echarpe em relação ao microfone de lapela. Durante a entrevista, de certa forma, justifica-se: “Transparência é para os governos, para as grandes organizações. Privacidade é para os indivíduos. Transparência tira o poder das organizações poderosas e o confere a quem não tem”.

PESTO PARA O HOMEM

Na casa onde vive, é brutal o contraste entre o estilo clássico do ambiente vitoriano das salas e do enorme jardim e a profusão de laptops (quase todos Apple), cabos, HDs e outras traquitanas em todo canto. E a turma trabalhando duro, concentradíssima. É raro que alguém fale ao telefone. Não se ouve música. Não há TV.

Em meio a esse cenário, as horas passam e nada de alguém falar em comida. Minha fome física superou a jornalística e turbinou minha cara de pau. A solução, sugerida pela Natalia, foi eu mesmo invadir a cozinha, pôr dois panelões de água pra ferver e fazer uma batelada de macarrão ao pesto. Fiz isso. Na hora em que ficou pronto, todos, inclusive o entrevistado, pegaram seu pratinho, agradeceram a iniciativa e comeram com gosto. Minutos depois, como sempre, todo mundo de volta aos seus laptops, sérios.

Refeições, digamos, formais, são raras. Mas momentos de descontração acontecem o tempo todo. Como quando a própria Natalia quebra o gelo em um sisudo momento: “Vamos brincar de Google fight?!” [site que testa quem tem mais menções no buscador]. “Põe Assange x Madonna”, alguém sugere. “Ah, não, claro que eu vou perder”, retruca o próprio, fingindo indignação. “Então põe a Cher!”, sugere outro, e o povo cai na risada. Em tempo: Assange perde no Google fight pra Madonna e também pra Cher no número de menções no mecanismo de buscas. Mas ganha de Ronaldinho, da arquirrival Hillary Clinton e do revolucionário vintage Che Guevara.

Ou quando Julian chama quem está por perto para ver uma matéria em que a Fox News armou uma mesa-redonda para discutir, por quase 10 minutos, um vídeo de poucos segundos no qual Assange aparece dançando em um clube na Islândia. Quando pergunto, de brincadeira, se ele estava querendo fazer um estilo meio Thom Yorke (do Radiohead) no clipe de “Lotus Flower”, ele faz uma cara de estranhamento e pergunta: “Quem é Thom Yorke?”.

A impressão que fica é que brincadeiras rápidas como essa são a forma que Julian Assange e seu círculo íntimo de colaboradores encontraram para conseguir seguir em frente mantendo a sanidade, não se deixando vencer pelo enorme e onipresente fantasma do stress e da paranoia. Afinal, puseram em seu pé, além da tornozeleira com o localizador, uma tal WikiLeaks Task Force, espécie de mutirão de agências de inteligência americanas que começou com 120 agentes no final no ano passado (número que estaria hoje reduzido por conta do trabalho demandado pelos recentes conflitos no Oriente Médio). Pelo menos o povo da CIA ajudou nas novas piadas, escolhendo para a força-tarefa um nome cujas iniciais são WTF – nos EUA e na internet mundial, WTF significa “What a Fuck?”, algo como “Que porra é essa?"

"Quando olho pela janela, ele está saltitando em uma cama elástica enquanto fala ao celular"

NA CAMA (ELÁSTICA) COM JULIAN

Nosso entrevistado sai da sala para atender a um telefonema. Quando olho pela janela, ele está saltitando, de paletó e botas, em uma cama elástica instalada no jardim da casa, enquanto fala ao celular. Não sorri, não se altera nem interrompe a conversa. Apenas dá pequenos pulinhos enquanto fala normalmente com o interlocutor.

Eliza Capai

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Aproveito para bater um papo com outro integrante do grupo, percebendo que ele fica preocupado de abrir o sistema de busca dos cables em seu computador com a tela voltada para a janela. Pergunto: “Você acredita que estão sendo vigiados o tempo todo aqui?”. Ele pensa um pouco e reponde: “Olha, esta casa é isolada, então não devemos estar sendo vigiados por pessoas, propriamente. Mas existem muitas outras formas de fazer isso. Não posso afirmar que isso esteja sendo usado aqui, mas eu mesmo já vi funcionando, por exemplo, microfones a laser”. Oi? Microfone a laser? “São microfones que usam um laser que você não enxerga e, uma vez apontados para uma janela, conseguem captar pelas vibrações, com bastante precisão, o que é dito dentro daquele cômodo. E nem é dos equipamentos mais complexos que existem para fins de espionagem...”

Minha paranoia por estar ali, entrevistando aquele que é hoje o principal alvo do maior aparato de espionagem do globo, voltara com tudo. Insisto então com o colega, mal disfarçando a ansiedade: “E você acha que uma pessoa como eu, que não tem nada a ver com a história, também pode estar sendo monitorada?”. E ele: “Olha... seguramente todo mundo que entra e sai desta casa é fichado”.

***

Quando fundou o WikiLeaks, você Imaginava que um dia se tornaria um ícone pop?
É bizarro... e não vejo dessa forma, ser ou não ícone pop, ser ou não famoso. Não são essas as preocupações da organização. Há um superpoder que quer nos destruir. Estamos em um momento em que um movimento jovem e novo está florescendo por todo o mundo na internet. A juventude apática da internet está se tornando politizada, eles estão começando a sentir sua impotência e a ficar incomodados com isso, querendo mudar. Esse recém-nascido movimento jovem precisa ser guiado e protegido, e também precisamos nos defender e defender outros que estão fazendo um trabalho similar ao nosso. Então, se ajuda ter o meu rosto ou até mesmo o rosto de Bradley Manning na capa da revista Rolling Stone, a gente topa! Se isso vai nos proteger, vamos fazer. Descobrimos que realmente temos que aparecer, caso contrário deixamos um vácuo por onde nossos inimigos podem despejar seu veneno. Temos que fornecer o antídoto.

Fora essa questão da utilidade de aparecer... é bom ser famoso?
É bom se for útil. Pessoalmente, acho extremamente irritante. É bem interessante como essa trajetória de se tornar uma celebridade pode ser tão chata...

Chato?
Sim. No começo, eu era famoso apenas em alguns círculos ligados a política e tecnologia na Austrália. Quando soltamos os papéis da guerra do Afeganistão [75  mil documentos divulgados em julho de 2010, o maior vazamento do WikiLeaks antes do atual Cablegate], a exposição aumentou bem, mas ainda era algo que dava pra gerenciar, de certa forma era até uma oportunidade. Naquele momento eu chegava a me perguntar por que as celebridades estavam sempre reclamando, me parecia um prazer ter sempre um público pronto para ouvi-lo. Parecia muito cômodo reclamar dos fãs e dos paparazzi, por exemplo, se as celebridades buscaram isso. Mas agora, mais recentemente, quando minha exposição se tornou muito maior, as coisas realmente mudaram. Ser celebridade passou a ser mais um peso do que uma oportunidade. Primeiro tem as pessoas que ficam atrás de você, o que no meu caso é sempre uma preocupação. As ameaças de morte feitas por políticos americanos encorajaram as pessoas a seguirem por uma caminho perigoso... E, além disso, fica muito difícil lidar com qualquer pessoa de uma forma “normal”.

Como assim?
Sabemos que qualquer informação sobre o nosso trabalho é valiosa, qualquer história sobre um encontro conosco tem muito valor. E esse valor é tão alto que corrompe as pessoas, é muito difícil ter uma relação normal com as pessoas...

É difícil para você ter amigos, por exemplo?
Bem... Fazer novos amigos é uma coisa muito, muito difícil. Claro que os amigos antigos, de antes, é outra história. Mas fazer novos amigos... aí essa história da fama interfere na relação. Uma aparente nova amizade pode rapidamente se tonar oportunista, interesseira.

Há fãs e outras pessoas tentando contatá-lo o tempo todo?
Há muitas histórias, mas não vou entrar em detalhes, porque de novo tem a questão de segurança pessoal e eu não quero encorajar novas tentativas. Em todo caso, recebo muitas mensagens de admiradores. Minha favorita foi a de um senhor bem idoso que mora em Paris e que era soldado na Segunda Guerra Mundial. Ele me disse que, se o WikiLeaks existisse naquela época, talvez a Segunda Guerra nunca tivesse acontecido... e na carta ele argumentava muito bem a razão.

De repente você faz um vazamento vintage...
[Risos] Talvez... ou, se os números de documentos divulgados continuarem aumentando, talvez evitemos a Terceira Guerra Mundial...

[ Poucos dias após nossa visita, no final de abril, o WikiLeaks divulgou as fichas dos 758 presos de Guantánamo. O vazamento mostrou que na prisão norte-americana instalada em solo cubano há menores de idade, pessoas sem ligação com grupos terroristas e até portadores de deficiência mental. O governo dos EUA reconheceu a autenticidade das fichas, mas disse que algumas delas estavam “desatualizadas”.]

Julian, qual é o real efeito histórico do WikiLeaks?
O WikiLeaks é uma série de coisas. É um website, uma tecnologia funcional, um caminho filosófico. É também uma rede de pessoas que acreditam em algo... Defendemos um conceito simples, mas abstrato: a verdade é o único ingrediente realmente útil na hora de tomar decisões. E tais decisões, até pelo quanto podem afetar o mundo, devem sempre ter por base a verdade. Então trazer o máximo de informação real à tona é o jeito certo de decidir as coisas. Parece um tanto abstrato, mas é muito, muito importante, e nos leva à liberdade de imprensa, à liberdade de expressão... E foi justamente por acreditar nisso que decidi que deveríamos criar mecanismos e botar isso em prática. O WikiLeaks é essa filosofia na prática, e acho que por isso acabamos inspirando as pessoas.

“Existe muita gente poderosa que ficaria feliz se eu fosse assassinado”

E, dentro dessa filosofia, se tudo correr conforme o que você imagina, o que vem a seguir? Como seria o mundo?
As recentes rebeliões árabes, com mudanças de governo etc., já são de certa forma parte de nossa intenção há anos. É a consequência de um plano. Mas aonde queremos chegar com tudo isso? Queremos um mundo mais justo. E por que eu falo de justiça – e não que desejamos que as pessoas sejam mais felizes ou algo assim? Justiça é um sentimento forte nos seres humanos. Como o poder deve ser administrado, como deve ser delegado, como riquezas devem ser equilibradas. Acredito que a justiça é o sentimento nivelador mais importante. Não basta apenas sentir. A pessoa tem que criar algum mecanismo para que o sentimento se expresse, e aí entra a comunicação. Todos os outros direitos – à vida, à liberdade etc. – são direitos que emergem do fato de que não tê-los seria injusto. E o jeito de brigar por eles ou denunciar sua falta é pela comunicação, pela fala. Então deve-se criar uma estrutura e uma filosofia que enalteçam essa possibilidade de brigar por justiça. [Pensa um pouco e sorri] Essa não foi uma resposta muito simples...

Eliza Capai

 

Como é seu dia a dia aqui? Você pode sair quando quer, andar de bicicleta, ir a um pub, comprar jornal na cidade?
Estou sob um tipo de prisão domiciliar high-tech. Por ordem do governo inglês tenho um dispositivo eletrônico preso ao meu tornozelo o tempo todo e sou obrigado a me apresentar todo dia de manhã na delegacia mais próxima. Também não posso deixar a casa entre dez da noite e nove da manhã. Então eventualmente até posso passar em um pub ou algo assim no horário liberado. Mas só que aí há outro problema: os riscos de segurança. Minha localização é conhecida, e tem gente incitando coisas...

De que riscos exatamente você está falando?
Existe muita gente poderosa, especialmente nos Estados Unidos, que iria ficar feliz se eventualmente eu fosse assassinado...

Mas tem gente seguindo você? Uma viatura vai atrás toda vez que você sai da casa?
Não. A proibição é de fazer as coisas em determinados horários.

O Brasil foi escolhido para estar entre os cinco ou seis países que fizeram parte da primeira fase de divulgação dos documentos da diplomacia americana. Qual a importância do país para você?
O Brasil é um poder alternativo bem interessante na região, a ponto que, nas Américas, há os Estados Unidos e há o Brasil. Vocês são indiscutivelmente a nação mais independente da região fora os Estados Unidos, e isso traz um equilíbrio de poder vital. Por isso é tão importante que o Brasil mantenha sua influência e siga caminhando na direção certa, até porque, se for na direção errada, desestabiliza toda a América do Sul. O país tem também sua própria cultura e, como no caso da Alemanha, tinha a questão da língua, o português, que é importante estar representada. E havia ainda a formação do atual governo. Sabíamos que o novo ministério seria nomeado em janeiro, então era importante para nós soltar o material antes disso, antes do fim do governo Lula. Assim qualquer eventual impacto chegaria a tempo, na hora certa.

Por que essa preocupação com um eventual impacto político?
Essa é a nossa missão! As fontes que nos passam documentos esperam isso, sempre prometemos impacto máximo de todo material. É o que tentamos fazer em todo lugar, e no Brasil também.

E você tem planos de aumentar a atuação do WikiLeaks no Brasil?
Sem dúvida. Essa é inclusive uma das razões para nosso engajamento no país. Sempre recebemos um apoio tão grande no Brasil [Lula foi o primeiro presidente a condenar a prisão de Assange, em dezembro passado] e sempre tivemos brasileiros trabalhando conosco, sejam técnicos ou jornalistas.

E você gostaria de visitar o país alguma hora dessas?
O Brasil? Quem me dera! Mas vamos ver... quem sabe seu governo não me envia um helicóptero?! [Risos.]

Não sei não...
Não me tire as esperanças...

[ Julian e outros membros da equipe adoraram as camisas vintage da seleção que levamos. “That´s so fucking cool!”, gritou uma das meninas do staff, ao ver o material –algo como “Isso é legal pra caralho!!”. O australiano provou as opções de tamanho, achou que a M ficou melhor ajustada e topou fazer as fotos na hora. Até correu pra dentro pra pegar uma bola de futebol (meio murcha), caso fosse útil para as imagens. “Não torço pra nenhum time, mas jogo futebol de vez em quando com o pessoal”. Outro membro do grupo contou sobre um dois contra dois “sem goleiro e com regras esquisitas” que rolou no gramado alguns dias antes de chegarmos –com o australiano em campo. “Foi bem divertido, mas falamos, ´pô, logo mais chegam os brasileiros aí, a gente devia esperar pra ver se dá mais jogo...”.]

Falamos um pouco do Brasil, mas e sua impressão do governo Obama? Como acha que ele está se saindo?
Pergunta interessante, porque... o que é um governo Obama? Seria este realmente um governo do Obama? Ou será que ele apenas representa uma tendência dentro do governo? Eu diria que na verdade Obama representa muito mais uma tendência do que controla o que acontece na Casa Branca. Ele tem uma grande dificuldade porque, diferentemente de Bush pai e Bush filho, não tinha ligações anteriores com a CIA, o que torna mais difícil controlar a inteligência americana, em vez de ser controlado por ela. Ele tem em mãos um enorme aparato de defesa e inteligência, o maior que o mundo já viu, mas acaba ficando como um cozinheiro que precisa fazer um bolo, mas não tem a colher certa para misturar os ingredientes. E, aí, o bolo, subindo ou não, no fim das contas é ele quem vai responder por isso. Enfim, não acho que Obama seja um presidente que está no controle de fato. Ele não é esse tipo de presidente.

Nessa batalha entre você e os EUA, quem está ganhando no momento?
Olha... conseguimos sair vitoriosos na coisa mais difícil que nos propusemos a fazer, que foi a divulgação dos documentos diplomáticos. Teve outras publicações difíceis, mas essa foi de longe a mais complicada, e nós conseguimos! Teve pressões imensas para que parássemos, foram pra cima de nossos parceiros de mídia, aconteceram ataques ilegais aos nossos sistemas e computadores no mundo todo... e mesmo assim eles não conseguiram parar nosso trabalho.

Você usa sua imagem pessoal o tempo todo. Seu rosto é a cara da organização. Por quê? Isso ajuda? É calculado?
[Pensa um pouco] Isso nos torna mais fortes e ao mesmo tempo mais fracos. Nos deixa mais fortes porque as pessoas simpáticas à nossa causa me veem falando e pensam: “OK, então esse cara está vestindo a camisa, vai lutar por isso, realmente acredita etc.” E é mais fácil as pessoas se unirem em torno de uma figura humana, ainda mais se ela está sendo atacada, do que simpatizar com uma organização inteira. O contraponto é que os inimigos, em vez de atacarem nossa mensagem, o que estamos dizendo e mostrando – o que é inatacável pois é completamente verdade –, eles me atacam pessoalmente como um meio de tentar contaminar a mensagem da organização.

[Falando em imagem: a cor de pele branquíssima, quase transparente, torna difícil de acreditar que o homem à minha frente já morou no litoral australiano, mesmo que por meses. Tem cerca de 1,90m, e segue magro aos 39 anos. Não pinta o cabelo --a prova são alguns fios pretos que restam em meio a cabeleira branca. E é impressionante o contraste brutal entre fotos suas de um ou dois anos atrás e sua cara hoje. Envelheceu muitíssimo rápido em pouco tempo. Apesar do “desgaste”, ao vivo é mais fácil entender porque tive que responder várias vezes a interlocutoras, ao voltar para o Brasil, a perguntas como “pessoalmente ele também é bonitão?”.]

Você tem algum ídolo ou alguma pessoa que o inspirou?
Há alguns, mas Daniel Ellsberg é o que mais se aproxima disso, tanto como homem quanto como pensador [Ellsberg prestava serviço para o Pentágono e, chocado com o conteúdo de documentos top secret sobre a Guerra do Vietnã, entregou cópias ao New York Times em 1971, em um episódio que ficou conhecido como Pentagon Papers. Desde então é um dos principais ativistas americanos contra as guerras e pela liberdade de expressão]. Ellsberg é inspirador. Acabou de completar 80 anos e já foi preso 81 vezes. Nos tornamos grandes amigos e, quanto mais eu o conheço, mais respeito tenho por ele. E isso é algo muito raro, conhecer alguém por suas ações e sua figura pública e ter o respeito por essa pessoa aumentado após conhecê-la. Mas há outros nomes como Alexander Soljenítsin [Nobel de literatura em 1970, a obra de Soljenítsin escancarou o horror dos gulags soviéticos, campos de trabalho forçado para opositores do regime comunista] e Voltaire [filósofo iluminista francês do século 18, grande defensor de liberdades civis e religiosas], ambos dissidentes de pensamento radical que mantiveram suas posições firmes mesmo nas adversidades.

Você é otimista quando pensa no futuro?
Extremamente otimista. Acho a politização da juventude conectada à internet a coisa mais significativa que aconteceu no mundo desde 1960. E esse também é o ponto de vista de pessoas que conheço e que foram ativistas na década de 60. Agora, pegando um caso específico como o do Oriente Médio, aquilo não é algo fortuito e está longe de acabar. A situação ainda é muito complicada em muitos desses países. Mas pra Tunísia e também pro Egito – país onde morei em 2007 --, não há mais retorno, não é possível voltar ao que era antes. A questão agora é se eles conseguirão seguir em frente. Quando coisas assim acontecem, você sabe que o mundo está caminhando para uma nova ordem. Que ordem é essa eu não sei, e ela tem que ser muito cuidadosamente conduzida, mas definitivamente é algo novo, uma revolução verdadeira.

Nessa nova ordem de que você fala, os temores de governos e corporações de serem os próximos alvos do WikiLeaks não podem fazer com que eles se retraiam ainda mais? que protejam e escondam ainda mais seus dados?
Eu já ouvi esse argumento antes, e isso é completamente ridículo. Esse argumento vem sendo usado por oponentes do nosso trabalho que tentam limitar o volume de informações que chega ao público. É claro que grandes companhias e governos mundo afora ao ver, por exemplo, o Cablegate vão pensar: “Meu deus, e se isso acontecer com a gente?!”. E aí vão aumentar seus sistemas de segurança. Mas, para uma grande organização, isso significa travar procedimentos, tornar-se menos eficiente... e o curioso é que isso já estava previsto na teoria do WikiLeaks.

Como assim?
Nós tramamos isso. Eu refleti sobre essa questão quando pensava sobre o que viria a seguir. E acho a perspectiva boa: as instituições teriam que simplesmente abandonar registros em computador e também em papel, de forma que seus atos injustos não sejam documentados nem descobertos pelo público. Mas, se organizações com medo do julgamento público se sentissem forçadas a abandonar sistemas de informática e até o papel, voltariam a uma espécie de estágio primitivo, não seriam política ou economicamente competitivas, deixariam de existir. Então as organizações, e aí eu falo de governos e empresas, têm dois destinos possíveis: elas podem ser abertas, honestas, justas e eficientes – e por isso, bem-sucedidas; ou podem ser fechadas, injustas e ineficientes, e, então, malsucedidas.

Citando George Orwell, se os vazamentos e a transparência continuarem indefinidamente, você acha que o mundo corre o risco de se tornar uma espécie de imenso Big Brother?
Esse é um argumento dos inimigos da liberdade. Transparência é para os governos. Transparência é para as organizações que são tão grandes que se tornam parte do governo. Privacidade é para os indivíduos. Transparência tira o poder das organizações poderosas e o confere a quem não tem poder nenhum. Privacidade protege indivíduos que não têm poder contra a força das organizações titânicas. Essa é a separação correta. O WikiLeaks não tem interesse nenhum em promover um regime para dar aos já poderosos mais poder ainda. O trabalho da minha vida tem sido desenvolver sistemas de privacidade, como criptografia, para proteger os indivíduos do poder do Estado, para protegê-los em sua comunicação privada, em seu direito de se organizar em pequenos grupos contra aparatos de inteligência ou abusos. Tudo o que fiz foi para conferir ao indivíduo mais poder em relação ao Estado.

Mudando de tipo de poder, você tem alguma crença pessoal, acredita em Deus?
[Pensa um pouco] Eu acredito que nós traçamos nosso próprio destino e que devemos aproveitar ao máximo nosso tempo aqui na Terra. Essa é a minha crença mais forte. Acredito que essa questão de haver ou não um ser supremo que as pessoas chamam de Deus me parece filosoficamente mal formulada. Há uma lacuna na definição, e por isso não há resposta para essa pergunta.

Tendo tanto poder nas mãos, você tem medo de vir a cometer erros?
Não é verdade que temos tanto poder. O WikiLeaks não é uma organização poderosa. Se nós fôssemos uma organização tão forte assim eu não estaria em prisão domiciliar. Se eu tivesse o poder de um presidente, por exemplo, não estaria em prisão domiciliar. Nós somos uma organização pequena, porém muito dedicada, que teve uma ideia muito bem estruturada e por isso foi capaz de fazer muito.

Eliza Capai

Assange na cama elástica no quintal de casa

Assange na cama elástica no quintal de casa

Você tem algum hobby? O que faz em seu tempo livre? Se é que tem algum tempo livre...
Na verdade não tenho. Jogo futebol com meu pessoal de vez em quando, mas não passa muito disso. Isso tudo com o que estamos envolvidos... claro que eu não quero ir para a prisão, mas sinceramente eu pagaria para fazer o que estamos fazendo. Não há realização maior do que estar engajado no tipo de ação em que estamos. Há aspectos muito estressantes e difíceis, mas há outros aspectos tão gratificantes que eu diria que não trabalhar deixa de ser algo relaxante. Pelo contrário, acabamos ficando preocupados porque estão acontecendo coisas incríveis no mundo agora, há tremendas oportunidades de promover nossos valores e não podemos perder essas chances.

Não é o momento de relaxar...
Bem... na verdade às vezes é necessário relaxar um pouco justamente para depois trabalhar com ainda mais força. Por isso jogamos bola de vez em quando ou ocasionalmente faço algum exercício. É preciso também dar uma brincada até para trabalhar melhor depois.

Você nasceu e foi criado na Austrália. Surfava por lá?
Sim, eu morei em Byron Bay [point popular de surf na costa leste australiana] em duas ocasiões por cerca de seis meses quando era adolescente. E nessa época eu surfava todos os dias.

Se estivéssemos em uma praia agora e eu desse uma prancha para você será que ainda seria capaz de surfar?
Não com essa tornozeleira... [Risos.]

[Assange não deixou que fotografássemos, mas vi bem de perto a tornozeleira, em um momento em que ele arrumava a barra da calça. Parece feita de um material plástico. É cinza e fina, tem uns 5 centímetros de largura e um pequeno dispositivo (possivelmente o localizador). E de fato parece incomodar, e não apenas pela simbolismo, mas também porque porque fica presa, justa, logo acima do tornozelo.]

Você vai fazer 40 anos este ano. Você pratica algum esporte ou toma algum outro cuidado com o corpo?
Olha, é muito difícil agora fazer algo mais regular por conta desse aparelho de vigilância preso à minha perna. Ele incomoda, mas, se não fosse por isso, eu estaria correndo todos os dias. Estou ganhando peso com essa história de prisão domiciliar. Desconfio que estou mais gordo do que nunca.

Já que você voltou ao assunto do monitoramento, vi você comentando que não gosta que fotografem sua tornozeleira... Por quê? Mostrá-la não seria justamente um jeito de denunciar uma eventual injustiça?
Estou pensando em como e quando fazer isso. Talvez por meio de um documentário. De qualquer forma, considero algo extremamente indigno para uma pessoa como eu, que sempre lutou por justiça e liberdade, ser aprisionado e monitorado eletronicamente. A falta de dignidade é tão severa que não me sinto confortável ainda para mostrar, é uma traição aos meus princípios.

A questão da vigilância sempre volta... Como você encara a perspectiva de uma possível extradição?
Há um grande júri secreto em Alexandria [Virgínia, EUA] tentando preparar um caso para me indiciar por conspiração, crimes de espionagem e outras acusações. A ideia é me encarcerar em uma prisão de segurança máxima, como Bradley Manning. Mais: pessoas associadas à nossa organização direta ou indiretamente têm sido interrogadas ao cruzar a fronteira dos EUA, e seus computadores e celulares têm sido apreendidos. E há ainda o processo de extradição por parte da Suécia... É uma situação complicada, mas eu descobri quando estive em confinamento que sou capaz de dominar psicologicamente aquela situação [por conta do processo por estupro e agressões sexuais na Suécia, Assange passou nove dias preso em Londres em dezembro passado, antes de conseguir negociar sua atual condição de prisão domiciliar]. Não tenho medo da prisão, mas sei que não ajudaria em nada a missão que estou tentando cumprir.

Por acaso esses nove dias preso foram a primeira vez em muitos anos em que você ficou sem internet?
Não mesmo! Uma vez por ano eu costumo passar duas ou três semanas nas montanhas...

Sem internet?
Sem internet.

E sem celular?
Sem celular.

Sério?! Por três semanas?
Sim. E às vezes sem pessoas.

***

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Fernando Henrique Cardoso

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Luiz Maximiano

O ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso passou os últimos anos levantando uma bandeira improvável para um político influente: a flexibilização da política global do combate às drogas. Seus anos de viagens, conferências e comissões acabam de virar o filme Quebrando o Tabu. Depois de rodar o mundo, conversar com policiais, médicos, usuários, traficantes e estadistas, chegou à conclusão de que a Guerra às Drogas é um fracasso. E que a maconha no Brasil, ele diz, “deveria ser regulada, como o álcool e o cigarro”

Há quem diga que é a tal da maconha. Mas para Fernando Henrique Cardoso a porta de entrada para todas as drogas foi a presidência da República. “Durante meu governo, a visão que se tinha no mundo era a de que seria possível erradicá-las. E foi ficando claro para mim que era um objetivo inalcançável. Foi essa percepção que me fez buscar gente que entende do assunto. Porque eu mesmo nunca tive conhecimento técnico da droga”, ele explica, ao contar à Trip como o tema começou a se tornar uma de suas prioridades como um ativo político sem mandato.

Nos últimos anos, FHC tem aparecido na mídia e em conferências internacionais como um defensor de uma reforma na política de drogas no Brasil e no mundo. Fundou e se tornou o nome mais influente de três comissões (a brasileira, a latino-americana e a global) que analisam os efeitos do proibicionismo na sociedade e, em última instância, na democracia. Para não restringir o debate aos gabinetes e às eventuais reportagens, ele também saiu do papel de ex-mandatário, e de acadêmico, para se tornar o protagonista de um filme que chega este mês às salas de cinema. Quebrando o tabu é um documentário que acompanha dois anos da trajetória de Fernando Henrique, viajando o mundo e o Brasil atrás de especialistas, exemplos de políticas mais flexíveis, usuários, ex-usuários e argumentos claros para defender a principal tese do filme: a de que a guerra às drogas é um fracasso.

Dirigido por Fernando Andrade, e com produção de seu irmão, o apresentador Luciano Huck, a película traz, além de FHC, depoimentos surpreendentes de figuras como os ex-presidentes americanos Bill Clinton e Jimmy Carter, o médico e escritor Drauzio Varella, o ator mexicano Gael García Bernal e uma longa lista de personalidades insuspeitas. A ideia é trazer o debate para camadas, em geral, avessas ao assunto – e começar a criar uma nova mentalidade sobre o tema. “Serve para, como o nome diz, quebrar o tabu mesmo. Não dá mais para fecharmos os olhos para esse problema.”

A IDEIA DO FILME É TRAZER O DEBATE PARA CAMADAS AVESSAS AO ASSUNTO E CRIAR UMA NOVA MENTALIDADE

FHC propõe, com o filme e na entrevista a seguir, que não só a lei, mas também a cultura, precisam sofisticar a visão homogênea e inchada de preconceitos, que coloca as “drogas” sobre o mesmo nefasto guarda-chuva. “Não dá para tratar droga como se tudo fosse a mesma coisa. Então temos que nos informar, informar a população e separar os tipos de drogas.” É com essa óbvia, porém rara, constatação que Fernando Henrique abre uma discussão que nunca chegava aos meios oficiais, e conservadores, da política. Sugere que o foco deva ser de prevenção, e não repressão. Que nenhum usuário seja considerado criminoso. E que as diferentes drogas possam ser vistas de acordo com os riscos e padrões de uso de cada uma. Dentro dessa visão, ele segue: “Minha opinião é a de que a maconha pode ser tratada de forma diferente. Isto é, regulada como é o álcool e o cigarro”.

Domicio Pinheiro / AE

FHC defende sua tese na Faculdade de Filosofia, em 1963

FHC defende sua tese na Faculdade de Filosofia, em 1963

“Ninguém pensa em liberar totalmente o uso. Mas, quando você vê os fatos, na verdade a maconha é menos danosa do que o álcool e o cigarro”, ele constata, amparado por inúmeras pesquisas médicas que, uma atrás da outra, demonstram que há um enorme abismo entre o entendimento da lei e o que a maconha é de fato. Mas FHC sabe, é claro, que não é tarefa nada simples transformar a opinião pública para tirar a maconha da ilegalidade total. São barreiras enormes, que vão de igrejas a delegacias, de falta de informação a preconceitos arraigados na mídia e nos lares. Mas um dos maiores obstáculos só pode ser desafiado por gente com credenciais como as de FHC: a ONU.

Enquanto esta revista estiver sendo impressa para chegar a suas mãos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso vai embarcar para Nova York. E, enquanto você lê a entrevista a seguir, ele provavelmente já terá trocado umas palavrinhas com o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, sobre o assunto. Em sua bagagem vai o filme, e ao seu lado estarão o primeiro-ministro da Grécia, um ex-diretor do FED, o escritor laureado com o Nobel Mario Vargas Llosa e Paulo Coelho. Membros da tal comissão global que FHC integra, eles irão entregar um documento que pede o fim de um pouco conhecido, mas importantíssimo, acordo internacional de 50 anos de idade. A chamada Convenção Única de Drogas impede que qualquer um de seus signatários flexibilize demais suas leis sobre substâncias consideradas ilícitas no tal documento. O objetivo, concordaram os delegados em 1961, era erradicar tais substâncias, e certas plantas, da face da terra.

Mas, ao mesmo tempo em que um novo consenso internacional se forma, a situação no Brasil pode ser mais complicada. “Eu acho que os políticos são mais conservadores do que a própria população”, conclui, ciente do difícil trabalho legislativo que se anuncia quando um projeto de regulamentação da maconha for votado no Congresso Nacional. A esperança vem do fato de que uma reforma futura vem sendo costurada de forma não partidária. O mais importante texto que propõe uma reforma sobre o assunto é de autoria do deputado Paulo Teixeira, líder da bancada do PT na Câmara, e aliado de FHC nessa questão.

No mês em que completa 80 anos de idade, FHC está com uma agenda só não tão cheia quanto a dos oito anos como presidente. Conseguiu tempo antes de um voo para Amsterdã para nos receber em seu escritório no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Falou das dificuldades de tratar desse assunto como presidente – e como ex-presidente. Falou das lições que aprendeu ao encampar essa nova bandeira, de como o uso de drogas faz parte da experiência humana (mas não da sua...) e de como regulamentar a maconha não é uma atitude, para usar um termo seu, “avançadinha”. É nada mais do que realismo. Algo que, em política, pode ser usado sem moderação.

José Nascimento/Folha Press

O sociólogo FHC exibe cédula eleitoral em 1978, ano em que começou sua carreira na política institucional, disputando vaga ao Senado pelo MDB

O sociólogo FHC exibe cédula eleitoral em 1978, ano em que começou sua carreira na política institucional, disputando vaga ao Senado pelo MDB

Folha Press

No dia em que foi eleito representante dos alunos da USP junto ao Conselho Universitário, em 1957. Acima, ele defende sua tese na Faculdade de Filosofia, em 1963

No dia em que foi eleito representante dos alunos da USP junto ao Conselho Universitário, em 1957
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Nem como acadêmico, nem como presidente, o senhor havia manifestado muito interesse em política de drogas. Quando esse assunto se tornou importante na sua trajetória?
Sempre foi importante pra mim, mas no sentido de ler nos jornais e saber que, como presidente, era óbvio que eu tinha que fazer alguma coisa. Naquela época prevalecia, nos meios oficiais, a ideia de que era preciso reprimir. A visão era de que seria possível acabar com as drogas e com o uso delas. Era, e ainda é, uma política propagada pela ONU e, principalmente, pelos EUA com a intensificação cada vez maior da chamada guerra às drogas. Mas era óbvio que as drogas não estavam diminuindo. Só mais tarde eu fui entender o que estava acontecendo pelo mundo. E vi que essa visão era falida.

Quais foram os sinais que o fizeram chegar a essa conclusão?
Mesmo durante os meus mandatos, houve tentativas de erradicar, por exemplo, o polígono da maconha, em Pernambuco. O efeito foi nulo. Em seguida alguém replantava em algum lugar. E havia também, naquela época, uma tentativa do governo americano de criar uma força unificada nas Américas para fazer o combate às drogas. Nós nunca concordamos com isso. O Brasil nunca aceitou entrar nesse jogo hemisférico. Isso deixou claro pra mim que a droga começou a ser, de fato, um fator de desequilíbrio social e político. Na Colômbia, por exemplo, chefes da droga foram eleitos para o Congresso e passaram a ter controle político. E, com todo o esforço feito na guerra às drogas, embora aparentemente eles consigam reduzir a região plantada localmente, houve dois fenômenos: o número de regiões que plantam na Colômbia mudou de oito para 24; e não houve diminuição na produção porque ficaram mais eficientes. Então a oferta de pasta de coca colombiana segue estável, apesar de toda essa matança que houve lá.

E, nesse caso, tem a ver com a demanda dos EUA, que comandam a guerra às drogas.
Tem tudo a ver. Hoje a coisa está um pouco melhor. A Hillary [Clinton, secretária de Estado dos EUA] disse, no México, que a responsabilidade era comum entre os dois países. Mas, na minha época como presidente, os EUA tendiam a culpar simplesmente o produtor. Diziam que o presidente da época da Colômbia havia sido financiado por produtor de coca. Ora, na Colômbia produtor de coca é que nem empreiteira no Brasil: financia todo mundo. Foi assim que comecei a me aprofundar e a entrar em contato com os ex-presidentes do México e da Colômbia, para criar uma comissão independente para tratar do assunto. Nesse meio-tempo eu havia tido um encontro nos EUA com representantes do governo Bush, na época, e percebi que lá já havia dúvidas quanto à eficácia de um combate radical às drogas. E que esse problema, no fundo, ameaçava a própria democracia.

"O CONCEITO DE QUE UMA DROGA
LEVA A OUTRA É UM MITO. É O TRAFICANTE QUE INDUZ"

Qual a relação que o senhor vê entre o problema das drogas e a democracia?
Primeiro, essa instabilidade política que é gerada, como no caso da Colômbia. No Brasil, a questão das drogas é muito mais vista como uma questão dos pobres. É a favela, a cracolândia, a violência. E quase todo mundo fecha os olhos para o consumo da classe média, que usa abundantemente e é o verdadeiro mercado. Isso já mostra que a própria percepção da droga no Brasil não é democrática. Então, se quisermos ser coerentemente democratas, temos que dizer que essa história é de todos. E o Estado, a sociedade organizada, tem a obrigação de te dar essa informação. Não adianta nada fingir que o problema não existe ou é algo que nasce dos pobres e de gente violenta. Que é onde a repressão acaba agindo. Essa experiência carioca da UPP até consegue reduzir a violência e liberar um pouco a população do comando dos chefes da droga. Mas não acaba com a droga. Há um deslocamento, simplesmente. Nos EUA, por exemplo, tem 500 mil pessoas na cadeia por uso de drogas, 80% são por conta de maconha. E quase todos são negros... E aí é claro que há preconceito em determinar qual usuário de drogas vai para a cadeia. Foram essas percepções que me fizeram buscar gente que realmente entende do assunto. Porque eu nunca tive conhecimento técnico da droga.

E o que o senhor descobriu quando começou a estudar o assunto?

Quanto mais eu e os outros líamos, mais chegávamos à conclusão de que a guerra às drogas era falida e que o objetivo de zero droga é inalcançável. E, por isso, era preciso buscar outra abordagem, outra estratégia para tratar do assunto. Nossa comissão latino-americana há uns três anos lançou um documento que teve muita repercussão no mundo. O que dizia era mais ou menos o seguinte: os recursos estão todos concentrados em destruir a produção e combater o tráfico. Mas nada é feito para lidar com os efeitos na sociedade e em quem usa. Nada era feito de fato para reduzir o consumo. Com o cigarro, por exemplo, houve um esforço grande e caiu o consumo. E depois descobri que é preciso reconhecer que as drogas são múltiplas, e os efeitos não são homogêneos. Desde cigarro, álcool, maconha, heroína, cocaína. Vários mitos desabavam diante das pesquisas.

Que mitos, por exemplo?
O de que o uso de uma droga leva, necessariamente, a outra. Não é verdade. Vocês podem ver no filme que a ex-presidente da Suíça dá um depoimento mostrando que o que leva de uma droga a outra não é o consumo, mas o mercado. É o traficante que induz. Outro mito que pude verificar pessoalmente em viagens é o de que existem drogas leves e pesadas. Sim, umas são mais pesadas do que outras, mas depende muito mais do tipo de uso que se faz. Se você acorda já fumando maconha é complicado. Se você acorda bebendo cachaça é ainda mais grave. Mas se você toma uma cachaça de vez em quando é bem mais tranquilo. O mesmo se aplica a maconha, heroína, cocaína... Então precisamos ter uma visão mais sofisticada sobre isso se quisermos, de fato, reduzir as
consequências negativas.

Qual medida imediata se pode tomar para reduzir esses tais danos?
Por esse ponto de vista, em primeiro lugar não se pode tratar o usuário de drogas como um criminoso. Ele não precisa ir para a cadeia. A partir de certo ponto, dependendo do seu padrão de uso, ele precisa ir para o médico. Mas não é simples. Algumas drogas são extremamente complicadas. Causam grandes danos. O caso da cocaína tem vários problemas. Um deles é que ela excita, leva à violência e tem derivados ainda mais destrutivos, como o crack e esse novo aí, como chama?

Oxi?
Esse aí. Você não pode tolerar esses tipos de drogas. Tem que combater mesmo. Mas é um assunto realmente complexo para ser tratado como tabu. Nem todos têm a mesma opinião. Por esses motivos resolvemos fazer um documentário e criar uma comissão global de drogas que vai se reunir em Nova York agora em junho. Com pessoas absolutamente insuspeitas. Paul Volcker, que já foi presidente do FED americano e assessor econômico do Obama, o primeiro-ministro da Grécia, George Papandreou. Escritores como Mario Vargas Llosa, Paulo Coelho e pessoas que têm algum tipo de responsabilidade pública e que sabem que precisamos mudar o enfoque.

GL2/ZUMA PRESS/NEWSCOM

FHC participa de coletiva da Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia, no Rio de Janeiro, em 2009

FHC participa de coletiva da Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia, no Rio de Janeiro, em 2009

E qual o objetivo da comissão, exatamente?
Nossa próxima reunião será nos EUA. Porque é lá que a guerra às drogas é promovida com mais força. E também porque primeiro é preciso mudar a posição que a ONU tem. Hoje governos estão proibidos de rever certas leis por conta da convenção única de drogas que os países assinaram há décadas. Ela, na realidade, proíbe os países de adotar políticas mais liberais. Nessa reunião em Nova York nós vamos visitar o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon. Estaremos cercados de um monte de gente altamente respeitável, alguns bem conservadores politicamente, para mostrar que não é uma posição “avançadinha”. É bem mais do que isso. É realismo. E estamos tentando através da internet conseguir 1 milhão de assinaturas para levar a eles. Queremos demonstrar por muitos lados que a ONU está errada. E, na verdade, está sendo um pouco hipócrita. Porque aos poucos os países vão mudando de posição, mesmo com a tal convenção assinada.

"DEFENDER UMA REFORMA NA POLÍTICA DE DROGAS NÃO É UMA POSIÇÃO ‘AVANÇADINHA’. É REALISMO"

Mas qual a posição do senhor sobre o que deve ser colocado no lugar da guerra às drogas?
Houve um tempo a lei seca, que proibiu o álcool. E a experiência mostrou que não levou ao fim das bebidas. Com as drogas estamos passando pela mesma coisa. Não adianta ter uma posição radical porque não funciona. O que eu quero dizer aqui é que não dá para tratar droga como se tudo fosse a mesma coisa. Então temos que nos informar, informar a população e separar em tipos de drogas.

Mas sofisticar a informação não basta sem uma mudança legal na hora de diferenciar uma droga da outra. Como o senhor encara a questão da maconha, especificamente?
Isso não é simples. Primeiro temos que descriminalizar o usuário. Mas mesmo na hora de diagnosticar o que é usuário e traficante é complicado. Porque todo usuário, uma hora ou outra, acaba sendo um pequeno traficante. Como o acesso à boca de fumo é ilegal, alguém que se arrisca aproveita e também pega para os amigos. Então isso cria uma teia de ilegalidade que é melhor acabar. Pelo menos no caso da maconha. Minha opinião é a de que a maconha pode ser tratada de forma diferente. Isto é, regulada como é o álcool e o cigarro.

Isso vai bem além de descriminalizar o uso. Regular significa criar formas de produção e venda permitidas por lei, certo?
Uma coisa leva a outra. A opinião pública não aceita as ideias de uma vez. A gente precisa criar efeitos em cadeia. Quando você discute drogas, é fácil convencer uma pessoa de que o usuário não deve ir para a cadeia e que ele precisa de tratamento médico. Com isso quase todos concordam. Mas, no caso da maconha, a pessoa não requer tratamento. Em seguida, você tem que perguntar: e o que fazer agora? Ninguém pensa em liberar totalmente o uso. Mas, quando você vê os fatos, na verdade a maconha é menos danosa do que o álcool e o cigarro. Agora, vamos supor que ela seja colocada na mesma categoria desses dois. Ora, você não vai liberar álcool e tabaco para menores de idade. Em certos países existem restrições mais drásticas em relação às bebidas. Hoje, em São Paulo, se você fuma precisa ir para a rua acender um cigarro. Há 15 anos todo mundo respirava o mesmo ar infecto do cigarro. Antes fumar era sinônimo de glamour, agora não é mais. Isso vem de uma regulação maior. Mas alguém produz o álcool, o cigarro, alguém os vende.

Como poderíamos criar um mercado regulado de maconha?
Tem mil caminhos. Não há uma receita. Isso tem que ficar bem claro. Nada resolve. Nada acaba com o uso nem com os malefícios que ela possa causar. Mas precisamos criar maneiras de reduzir os problemas. E tem muitas experiências nas quais podemos nos espelhar. Em Portugal, a descriminalização e, na prática, a não perseguição ao usuário deram certo.

Mas Portugal não tem um modelo de produção e venda de maconha. O tráfico continua.
E isso é o que precisa ser discutido aqui. Uma coisa é o uso da droga e o que isso causa no usuário. Outro é o tráfico que gera violência. Em Portugal o tráfico não está atrelado à violência. Na Holanda eles podem vender, cobrar impostos nos coffee shops, mas a maconha entra no país ilegalmente. O Estado fecha os olhos à ilegalidade. Eles dão uma justificativa: “É melhor resolver metade do problema do que nem a metade”. É verdade. Mas vai para o México ou para uma favela carioca. A violência é o problema mais grave e vai continuar sendo. E não podemos realmente deixar o tráfico prosperar. Então não dá para aplicar a mesma receita igualzinha de um país para outro. No Brasil eu iria com cuidado. Faria alguns experimentos. Precisamos discutir e, na hora que descriminalizar o uso, poder perguntar: e quem produz?

"A MACONHA PODERIA SER PLANTADA POR COOPERATIVAS OU EM JARDINS PARTICULARES"

E, na sua opinião, quem produziria?
Cooperativas, autorizações para produção em pequena escala, jardins particulares para uso pessoal. Alguma coisa assim deveria ser experimentada para ver se a coisa anda. As estatísticas mostram que 80% dos que usam droga usam maconha. E, como ela é a menos daninha, menos que o cigarro, é razoável que a gente a separe das demais, para tirar essa receita do tráfico e concentrar o combate nas outras drogas que são mais perigosas. Essa é a discussão. E há no Brasil certo cinismo quando se discute isso... Porque o acesso à maconha aqui é amplo. E isso é errado. Não tem critério nenhum. Qualquer um consegue.

É como se fosse liberado.

Exatamente. Ontem mesmo estava ouvindo no rádio que estavam vendendo livremente maconha em uma escola. E pior, o cara que vende não vende só maconha... Isso é um problema social grave para o qual não podemos mais fechar os olhos.

Luiz Maximiano

Entrevista à Trip na sede do Instituto Fernando Henrique Cardoso, no centro de São Paulo

O senhor acha que poderia ter esse discurso sendo presidente?
Veja, o atual primeiro-ministro da Grécia faz parte da nossa comissão e tem esse discurso. Depende muito de como você diz as coisas. No caso do Brasil as pessoas têm muito receio na vida política de ser manipuladas, ter suas palavras distorcidas. Por exemplo, há muitos anos, quando fui candidato a prefeito, quando eu nem falava dessas coisas, o Jânio Quadros, que foi meu adversário, espalhou que eu queria colocar maconha na merenda das crianças. Eu achei tão absurda a declaração que nem respondi. Logo eu que nem cigarro fumo, bebo pouquíssimo. Como as pessoas vão achar que tenho alguma coisa a ver com droga pra criança? Ingenuidade minha... Foi um desastre. Porque, quando colocam uma coisa dessas no ar, muita gente dá ouvidos.

Mas o senhor não respondeu se acha viável um presidente do Brasil, na ativa, defender essa posição.
Primeiro eu acho que é difícil para um presidente falar sobre isso porque ele tem a responsabilidade de dar a solução. E estou falando aqui que a solução não é óbvia e definitiva. Então é complicado para ele se posicionar. A pessoa fica inibida e se esquiva da questão. Acho que tudo isso deve ser antes discutido pela sociedade, que é o que estamos tentando fazer.

Uma discussão suprapartidária, inclusive?
O líder do PT na Câmara, o deputado Paulo Teixeira, tem um dos projetos mais ousados para regulamentar a maconha. E sou o primeiro a defendê-lo quando o citam fora de contexto. É muito sério para se tornar motivo de rixa de um lado contra outro. É um problema enorme da sociedade para discutir partidariamente. De tal maneira que, quando chegar em um momento de decisão, não seja meramente uma questão política, mas parte de uma conclusão mais ampla.

E de que maneira o senhor imagina costurar isso politicamente. Há uma receptividade dos parlamentares?

Não... Eu acho que no começo será muito difícil, mas filmes como esse ajudam um pouco. Porque têm a virtude, eu acho mesmo, de quebrar o tabu. Gente que não é usuário falando claramente sobre o assunto. Demonstram que não dá para ter uma posição sem saber que consequências ela vai ter na sociedade.

O senhor acha que a sociedade é tão conservadora quanto os políticos acham que ela é?
Não. Eu acho que os políticos estão atrasados. Veja a decisão que o Supremo Tribunal Federal teve sobre a união homoafetiva. Aquilo não passa no Congresso. O STF aprovou, e a sociedade aplaudiu. Simbolicamente isso é muito importante, porque foi uma decisão em nome da igualdade. Eu acho que os políticos são muito mais conservadores do que a sociedade. Se eu fosse dizer ao meu partido que eu vou fazer tal filme sobre drogas, eles iam me dizer que é melhor não fazer. Ou: “Pelo menos não faça agora, espera a eleição...”.

E qual foi a reação do PSDB?
Não houve nenhuma porque é difícil reagir a mim... [risos]. Mas é preciso que algumas pessoas tenham coragem de enfrentar. Você acha que eu não vou ser criticado por dizer essas coisas que estou dizendo a você? Vou, claro. Mas quem tem medo da crítica não faz nada na vida. E eu estou convencido de uma coisa. Eu não sou usuário, nunca fui, não estou pregando o uso. Mas estou dizendo: tem gente que usa, e o uso é diferenciado. O efeito também. E não adianta reagir sempre igual. Eu sei que vão interpretar errado, tirar do contexto. Mas nessa altura da vida também não me preocupa.

O senhor foi professor em universidades em uma época em que a maconha começou a ser utilizada como forma de rebeldia, contestação e de uma nova identidade cultural. O senhor conviveu com esse ambiente?

Eu sou mais velho do que pareço, tenho 80 anos. Então, quando eu dei aula na USP, fui aposentado pela ditadura em 1969, eu tinha 37, 38 anos. Nessa época a maconha ainda não era tão difundida por aqui. Mas, em seguida, fui dar aula em Stanford, na Califórnia, e aí sim era o auge do movimento hippie nos EUA. Cheguei a conhecer a Joan Baez em reuniões dos movimentos estudantis... Então havia, claro. E aparecia como forma de protesto, de liberação, e não havia ainda uma repressão mais dura do governo. Quando voltei ao Brasil, nos anos 70, aí sim a maconha já havia chegado mais forte. Mas eu mesmo não convivi com maconha ao meu redor. Pode ser que eu era tão careta que nem percebia.

Eu pergunto isso porque politicamente a maconha é sempre tratada como uma questão de saúde pública, ou como caso de polícia. Mas nunca vista como parte da cultura, como algo que não necessariamente é um problema.
Você tem razão. Ela é sempre vista como um problema. Mas quando esse problema se generaliza... Deixa de ser problema se nos dermos conta do real mal que faz. Tem tanta gente usando, e não dá para coibir, então vamos regular. Tem que enfrentar a coisa.

"ALGUMAS PESSOAS RECORREM ÀS DROGAS SEM DESESPERO, CONSCIENTEMENTE.
TEMOS QUE ENCARAR COMO PARTE DA VIDA"

E o senhor não se preocupa com a questão de liberdade individual nesse caso, com o direito que uma pessoa deveria ter de escolher o que quer para si?
Na Holanda eu conversei com os meninos que vivem em uma cidade que tem coffee shops. Eles não têm muita curiosidade pela maconha porque ela não é proibida. Eles ficam indignados porque têm dificuldade para conseguir álcool. O argumento deles é “somos contra qualquer proibição”. E, como é uma cultura protestante, burguesa, individualista, eles levam muito para o lado do “eu escolho”. Nossa cultura não é tão individualista nem as pessoas valorizam tanto a sua própria decisão. Mas estão valorizando cada vez mais. A internet mesmo é um grande instrumento para isso. Cada pessoa opina, tem voz. Eu acho que, quanto mais livre uma sociedade, quanto mais mobilidade social ela tiver, mais o “eu escolho” vai contar. Mas para ter escolhas reais você precisa ter informação. Senão é uma escolha às cegas. E esse argumento de liberdade individual passa por termos capacidade para educar. Sobre drogas, inclusive. Senão a pessoa fica manipulável na mão da propaganda, dos traficantes ou dos interesses capitalistas... de quem quer que seja. Democracia existe pra que você tenha informação.

O senhor já fumou maconha?
Não. E vivem dizendo que eu já experimentei. Uma vez eu disse em uma entrevista que, nos anos 70, eu estava com uns primos meus, jovens, em um restaurante em Nova York. Passaram um cigarro de maconha, e eu achei o cheiro horrível. E aí disseram que eu fumei, mas não traguei, essas coisas. Mas eu nunca traguei nem cigarro. Eu não teria problema nenhum em dizer que eu experimentei. Mas a realidade é essa: a vez em que eu estive mais próximo de maconha foi em um bar elegante de Nova York. Foi a partir daí que o Jânio inventou que eu ia distribuir maconha pra criança. Outra coisa... Eu nunca vi cocaína na minha frente. O problema aqui que me interessa é outro. É uma questão social e política que afeta muita gente.

E, mesmo sem ter tido curiosidade na sua vida toda, o senhor vê algo positivo no uso de drogas entre os seres humanos desde os tempos remotos? Uma função antropológica para a alteração da consciência?
Eu não sei se positivo, mas vejo da seguinte forma: o ser humano gosta de experimentar seus limites. Em tudo. Não tem gente que gosta de praticar esportes radicais? No fundo é um esporte radical. Pega o Sartre e seus escritos sobre drogas. O que ele estava fazendo? Experimentando os limites dele. Nos anos 60, todo o movimento em torno do LSD, tudo isso tem a ver com uma busca. O ser humano tem uma angústia existencial. Você não sabe quando vai morrer, você não sabe qual o sentido de tudo isso aqui. E a gente precisa conviver com essa angústia. Em certos momentos a droga pode ser uma maneira de lidar com isso. Você pode me perguntar por que eu não tentei esse caminho. Eu fui por outro. Sempre fui extremamente intelectualizado, desde muito cedo. Ficava discutindo abstratamente as questões do ser humano. Outra forma de buscar a condição humana. O que é tudo isso? Qual é nosso limite?

Então o senhor vê um aspecto de busca espiritual em nossa relação com as drogas?
Eu desconheço qualquer sociedade que não tenha experiências com suas drogas de preferência. Isso tem alguma relação com o transcendental. Não é uma experiência religiosa, mas tem algum parentesco. É sair do objetivismo, escapar do que você não consegue escapar, que é a sua carne, da mera matéria. Então, claro que não espero que um policial vá encarar nesses termos, mas eu não sou um policial. Sou um sociólogo e tenho que pensar nisso. Tem gente que tem experiências místicas, uma viagem, um barato espiritual. As pessoas buscam essas coisas. Eu estudei umbanda. O que é aquilo? Também é uma experiência mística, transcendente. E tem ali tabaco, álcool, no meio de uma tentativa de se comunicar com outro mundo. Isso é natural, próprio da experiência humana, eu acho que a gente tem que entender isso com uma visão mais ampla. Não estou justificando, mas as pessoas precisam ir em busca de si mesmas. Às vezes recorrem à droga como desespero. Às vezes recorrem sem desespero, conscientemente. Eu acho que temos que encarar como parte da vida. Não como algo que temos que eliminar. Porque isso não se vai conseguir.

David Byrne

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Gil Inoue

David Byrne, qu’est-ce que c’est? Ex-líder da banda Talking Heads, embaixador da world music, cineasta, artista plástico, escritor e, de uns anos para cá, garoto-propaganda da bicicleta. Depois de pedalar por Nova York e pelo mundo, o multiartista escreveu o livro Diários de bicicleta e passou a dar palestras sobre mobilidade sustentável. Este mês é a vez do Brasil: Byrne vem para a Flip, em Paraty, e para um fórum em São Paulo. Mas antes de embarcar ele contou à Trip como a bicicleta pode se tornar o símbolo maior de uma nova consciência urbana

Se você quer se dar bem em Nova York, é preciso escolher o veículo certo. Nada de carro do último ano, táxi amarelo disputado a tapas ou o sempre eficiente, porém infestado de ratos, sistema de metrô. O negócio agora é ter uma bicicleta. De preferência, um modelo raro. Se por acaso cair nas suas mãos uma bike do século 19, aquela com a roda da frente gigante e a de trás minúscula, então você é o cara.

Foi só um passeio de meia hora entre Chinatown e o SoHo, levando a bicicleta na mão. Mas, pasme, também foi o suficiente para descobrir que no peito do nova-iorquino – talvez o povo mais marrento do planeta – também bate um coração. O policial abriu passagem na calçada, esquecendo por um momento que poderia se tratar de um terrorista em potencial. Garotinhas muçulmanas e velhinhos chineses sorriram e acenaram. A modelo eslovaca pediu delicadamente: “Posso tocar?”. E dezenas, literalmente dezenas, de pessoas soltaram aquele que ainda é o elogio supremo em Nova York: “Cool!”.

Uma cena simbólica para uma cidade que construiu o número recorde de 400 km de rodovias em quatro anos. E que descobriu que pedalar poderia ser a melhor maneira de contornar o baixo-astral causado por dois traumas recentes, o 11 de setembro de 2001 e a crise financeira de 2008.

Não por acaso, o destinatário daquela relíquia era o garoto-propaganda da revolução das bicicletas em Nova York. Não exatamente um garoto, mas um senhor de 59 anos, fala pacata e cabelos grisalhos – mais conhecido como o ex-líder do Talking Heads, uma das bandas mais influentes da história da música, e como o principal promotor de artistas brilhantes do mundo todo, em especial africanos e tropicalistas brasileiros como Tom Zé e Os Mutantes, através do selo Luaka Bop.

Mas, há tempos, David Byrne deixou de ser o “Psycho Killer” (título de seu maior sucesso), o Mr. World Music ou o sujeito que dançava esquisito com um terno três números maior no filme-concerto Stop Making Sense. Ele se tornou também o homem da bicicleta. Trinta anos atrás, Byrne pegou sua velha bike da adolescência na garagem da casa dos pais em Baltimore, tirou a poeira, levou-a para Nova York e acabou gostando da coisa. Passou a pedalar para todo canto, incluindo festas, exposições e os próprios shows.

Comprou também uma bike dobrável para levar em suas muitas viagens e usou-a como meio preferencial de transporte em cidades como Berlim, San Francisco, Roma, Istambul, Buenos Aires, Manila e muitas outras. Os relatos dessa experiência foram reunidos no livro Diários de bicicleta (Editora Manole - Selo Amarilys), que usa os passeios sobre duas rodas como ponto de partida para reflexões sobre arquitetura, urbanismo e “o que nós queremos das nossas cidades” – todos temas que já constavam em seu repertório no Talking Heads, vide, por exemplo, o álbum More songs about buildings and food (1978).

E, assim, o multiartista tornou-se, em suas próprias palavras, um “ativista relutante”. Em 2007, ele organizou um grande evento em Nova York sobre bicicleta e sustentabilidade, com debates, leituras de livros e alguns toques típicos de Byrne – como um coro de velhinhos cantando “Bycicle Race”, do Queen. Pouco depois, criou racks customizados para prender bicicletas nas ruas da cidade: o de Wall Street tinha forma de cifrão, o da Quinta Avenida, de sapato feminino e assim por diante.

Agora, ele pretende levar sua nova missão para a América Latina, em um tour por nove cidades, com duas paradas programadas para o Brasil. A primeira na Flip de Paraty, no dia 10 de julho, numa mesa com Eduardo Vasconcellos, especialista em planejamento urbano. A segunda no fórum “Cidades, bicicletas e o futuro da mobilidade”, dois dias depois, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, em debate com três especialistas brasileiros ligados ao tema.

De certa forma, Byrne está fazendo hoje com a bicicleta o mesmo que realizou alguns anos atrás com os antigos discos de Tom Zé e de tantos outros: pegar um objeto que estava empoeirado, quase esquecido num canto, e mostrar ao mundo que aquilo é bacana, é moderno, é essencial. E, da mesma maneira que ele apresentou o compositor tropicalista para muitos jovens brasileiros, agora ele pretende lembrar aos nossos governantes e a nós mesmos que as ruas também são dos ciclistas.

Antes de viajar ao Brasil (onde ele pretende alugar uma bicicleta para pedalar pela costa de Paraty e pelas “avenidas insanas” de São Paulo), Byrne conversou com a Trip primeiro por e-mail e depois ao vivo em seu quartel general no SoHo, para onde ele vai todos os dias pedalando. Ali ele concebeu seus mais recentes projetos, como um novo disco com o velho parceiro Brian Eno e um musical sobre Imelda Marcos com Fatboy Slim. Já o Talking Heads ficou mesmo no passado, ele garante, descartando uma volta da banda.

Como muitos nova-iorquinos, Byrne ficou empolgado com a bicicleta modelo 1889, mesmo depois que nós revelamos para ele (e só para ele) que se tratava de uma réplica produzida 30 anos atrás na Califórnia. Ele teve o privilégio de subir nela para a sessão de fotos em seu escritório, mas não se arriscou a pedalar a traiçoeira “bone shaker” (balançadora de ossos), como a velha bike era conhecida. “Você sabe, eu não sou mais um garoto”, desculpou-se.

No caminho de volta até a loja onde a bicicleta foi alugada (a Frank’s Bike Shop, no 553 da Grand St.), um tiozinho porto-riquenho estaciona sua low rider e decreta: “Papi, você tem que pedalar um pouco! Esta bicicleta não pode voltar para casa virgem!”. Como se estivesse lidando com um garotinho, ele segura a bike para o repórter pedalar nos primeiros metros e o agarra antes que este se estabaque no chão de uma altura de quase 2 m. Definitivamente, Nova York não é mais a mesma.

Quando e como você adotou a bicicleta como seu transporte principal?
Foi há 30 anos. Começou como um experimento. Fui visitar meus pais, olhei para a minha bicicleta velha e pensei: “Por que não levá-la para Nova York?”. Minha vida na cidade era restrita a uma pequena área, então nem precisei lidar tanto com carros na rua, apenas com junkies e mendigos. Sempre havia algo para fazer – uma abertura de exposição de arte, uma festa, uma banda tocando... – e pedalar de um lado para o outro provou-se maravilhosamente eficiente.

Gil Inoue

Posando para a Trip em seu escritório com a

Posando para a Trip em seu escritório com a "bone shaker" 

Não devia ser uma cena muito comum na Manhattan dos anos 80...
Era uma coisa esquisita mesmo. Me chamavam de nerd, geek. As pessoas não entendiam, davam risada, mas uma ou outra mostrava-se receptiva. Eu pedalava até o Carneggie Hall para fazer um show e o pessoal da técnica dizia que eu podia guardar minha bicicleta lá dentro, que eles achariam um lugar para ela. Eles eram muito generosos.

Mas essa percepção mudou, não é? Nova York parece uma cidade amiga das bicicletas hoje.
Ainda é uma coisa de nerd, mas bem menos do que foi. A cidade ganhou ciclovias, bicicletários, o número de ciclistas aumentou e a presença deles não surpreende mais. E, por incrível que pareça, há menos acidentes também. Mais ciclistas, menos acidentes. Talvez não seja o que você esperaria, mas os números mostram isso. Estou vendo mais trabalhadores de bicicleta. Antes parecia que havia apenas jovens de Williamsburg [reduto de artistas no Brooklyn]. Ainda não há gente velha como eu [risos], mas já há pessoas não tão jovens, profissionais que vão a jantares, ou a shows, ou a eventos sociais com boas roupas, mas de bicicleta. Antes as pessoas de bicicleta eram consideradas guerrilheiras. Hoje vejo bicicletas em desfiles de moda, em vitrines, na publicidade... Isso significa que a imagem de casais bonitos e felizes em suas bicicletas está sendo inserida no zeitgeist cultural. Alguns irão resistir ao marketing, mas outros serão subliminarmente influenciados.

Ou seja, andar de bicicleta é cool agora. E você é o culpado.
[Risos] Não sei. Você vai ter que perguntar para outras pessoas. Acho que as garotas têm mais impacto do que os homens nessa questão.

Mais até que o David Byrne?
Ah, muito mais. As garotas estão liderando esse movimento. E os homens, claro, vão atrás.

Mas podemos ou não chamá-lo de um ativista da bicicleta?
Sou muito relutante em me considerar um ativista. Não gosto da ideia de dizer às outras pessoas o que elas devem fazer das suas vidas. Eu me sinto mais confortável contando às pessoas o que eu fiz da minha, como as coisas funcionaram ou não para mim, o que eu vi e aprendi. Eu tenho convicções fortes sobre esse tema, não apenas sobre bicicletas, como também sobre nossas cidades em geral. Mas eu tento não ser um deflagrador de rebeliões. Sinto que as pessoas saberão tomar suas próprias decisões. Se você disser a elas o que fazer, elas vão resistir. Se você mostrar a elas algo e deixá-las tomar as próprias decisões, fica mais fácil.

Você disse numa entrevista que muita gente ainda o reconhece como o cara do terno grande ou o cara do “Psycho Killer”. Em algum momento, você acredita que começará a ser reconhecido como o cara da bicicleta?
Sim. De certa forma, já está acontecendo. Estou no meio do caminho. Das pessoas que me param na rua, metade diz: “Eu gosto da sua música”. Mas a outra metade me fala: “Eu gosto do que você vem fazendo com as bicicletas”. É interessante ver como as coisas podem mudar. Talvez eu tenha a chance de não ser o “Psycho Killer” até o fim da minha vida.

Talvez o Cycle Killer...
[Risos] Verdade. Mas isso daria outro tipo de filme.

Vamos falar do seu livro. Como nasceu o Diários de bicicleta?
Eu sempre mantive um diário como forma de registrar pensamentos – pessoais ou não. É muito útil, e às vezes funciona como uma terapia também. Um editor e um livreiro notaram que vários relatos meus tinham a ver com pedalar por cidades diversas e perguntaram se eu poderia expandir e complementar os textos e transformá-los em um livro.

O título dele remete ao Diários de Motocicleta, de Che Guevara. Foi intencional? Você encara seu livro como uma obra política também?
É intencional fazer uma referência ao outro livro, mas como uma piada. A bicicleta não tem o caráter de aventura rebelde como a motocicleta. É uma maneira muito civilizada de circular por uma cidade, em vez de explorar todo um continente. Alguém pode fazer isso, claro, mas eu nunca empreendi uma dessas viagens longas. Por outro lado, há algumas similaridades entre os livros. O do Guevara é sobre um jovem descobrindo alguns tipos de relações no mundo pela primeira vez, entre o povo, governos, fazendeiros, comunidades, esse tipo de coisa. Meu livro tem algo parecido, não é tanto sobre bicicletas, mas sobre cidades, sobre como nós decidimos viver nelas, sobre como nós estamos lidando com problemas que criamos para nós mesmos no passado.

"A bicicleta pode ser o símbolo de uma revolução sem um evento violento ou repentino"

Mas você não acha que a bicicleta pode ser o símbolo não de uma grande revolução política, mas de uma revolução mais sutil, mais pacífica, de consciência?
Acho que sim. É um tipo de revolução em que cada um faz uma pequena mudança em sua vida. Se muitas pessoas tomarem a mesma decisão, em algum ponto você pode descobrir que tudo ficou diferente. Aí terá havido uma grande mudança na maneira como as pessoas vivem, sem um evento violento e repentino.

Há vários trechos no livro descrevendo cidades americanas que se tornaram “não lugares”, zonas sem vida, geralmente entrecortadas por grandes rodovias. Você acha que é possível reumanizá-las?
Completamente possível. Recentemente vi o ex-prefeito de Medellín [Colômbia] dar uma palestra mostrando exemplos de vizinhanças perdidas completamente transformadas por uma simples ação do governo: a construção de uma praça e de uma biblioteca. No Brasil também não faltam exemplos de comunidades transformadas pela cultura. Sobre as zonas abandonadas dos EUA, como os subúrbio de Atlanta, Phoenix, Los Angeles e Detroit, acho que elas podem voltar a ser pequenos vilarejos. Mas não precisa ser nenhum gênio para perceber que esses lugares estavam amaldiçoados desde o início. A bolha imobiliária que os povoou foi construída em cima de mentiras e recursos não renováveis.

Não se trata apenas de bicicletas e ciclovias então. O buraco é mais embaixo?
A questão fundamental é: como nós queremos viver nas nossas cidades? Temos lugares para caminhar? Temos acesso a outras partes da cidade? Temos a sensação de que somos prisioneiros da cidade ou de que ela pertence a nós? Acho que as respostas estão mudando rapidamente. Outro dia li um artigo no New York Times sobre o UBS, um banco suíço gigante que se mudou para Connecticut depois do 11 de setembro, criou um enorme quartel-general nos subúrbios. Mas agora eles descobriram que as pessoas inteligentes que eles pretendem contratar não querem viver em Connecticut; querem morar em Manhattan ou no Brooklyn. Querem ter uma vida mais empolgante, perto de pessoas criativas. Isso é uma grande mudança. Desde os anos 50 existe essa ideia de que você tem que sair da cidade grande assim que juntar dinheiro suficiente. Você se mudava para o subúrbio e ia para a cidade trabalhar. Só que as coisas mudaram. Se as empresas quiserem ter funcionários de talento, eles têm que voltar. A maneira como as pessoas veem a cidade mudou. Elas a veem como um lugar excitante, cheio de energia, não só um lugar perigoso. Elas podem ter crianças na cidade, o que muitos achavam que não era possível até algum tempo atrás.

Você acha que o 11 de setembro e a crise financeira incitaram essa mudança de percepção? Fez as pessoas acharem que era hora de mudar alguma coisa em suas vidas?
Acho que sim. Sempre há muita resistência às mudanças. Infelizmente, na maior parte das vezes a resposta é encontrar alguém para culpar ou para atacar, em vez de perguntarmos como chegamos a determinado ponto. Eu encontro essas ilhas isoladas de otimismo, em lugares onde algo está sendo tentado. Na maioria dos lugares, nada foi feito. Ainda não existe regulação do sistema financeiro, três anos depois da crise. Mas eu acho que, finalmente os EUA começam a perceber que essas guerras que nós estamos criando, no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, não são de graça, que elas custam bilhões de dólares todos os dias. Enquanto havia uma bolha na economia, ninguém ligava. Agora que ela estourou, as pessoas ao menos estão perguntando por que gastamos tanto dinheiro para produzir mortes, por que não gastamos melhorando a situação do lugar onde vivemos. Acho que o país está lentamente virando as costas para essas guerras. E acho que isso aconteceu por causa da economia. Não é uma revelação espiritual. É uma questão de grana mesmo.

Chris Walter/ Wireimage

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Com seus ex-companheiros de Talking Heads e o famoso terno do filme-concerto “Stop Making Sense”, uma época que ele não pretende resgatar

Há algumas pessoas do Queens e do Brooklyn reclamando que as ciclovias são para a elite de Manhattan, que não tem que vir de outros bairros para o centro, ou que os ciclistas atrapalham o fluxo do trânsito. O que você acha dessas reclamações?
Eu posso entender essas pessoas. Eu não sou um cara da classe operária. Eles veem os jovens de Williamsburg nas bicicletas e ficam pensando: “O que eles estão fazendo? Esses caras não trabalham? Por que eles estão no meu caminho?”. Há uma questão complexa de status por trás disso. Antigamente, quando você queria mostrar que era bem-sucedido, mesmo vindo da classe baixa, você comprava um carrão, para poder ser visto nele. A pessoa que andava de bicicleta era em geral pobre, porque não podia comprar um carro. Agora as coisas meio que viraram de ponta-cabeça. Você tem alguém como eu, que não se importa de não ter um carro. Há outros não tão velhos quanto eu com a mesma atitude, incluindo muitos profissionais bem-sucedidos. A questão de status ficou confusa: que classe social dirige um SUV? Que classe dirige uma bicicleta? Um Porsche ou um Cadillac? As pessoas ficam bravas quando os sinais são misturados.

Como mudar essa mentalidade dessas pessoas?
O desejo de ostentar não vai desaparecer, faz parte da própria seleção natural, do jogo sexual entre as espécies. Mas às vezes eu noto que o pessoal da bicicleta está criando uma sociedade mais cool, que implica um tipo diferente de status. Algo mais sutil, mais... musical.

Você usou duas vezes a frase “não tão velho quanto eu” na entrevista. Você está se sentindo velho?
Não. É só que eu sou mais velho que a maioria dos outros ciclistas.

Mas a experiência de andar de bicicleta está se tornando mais difícil?
Não. É muito fácil. As coisas não mudaram. Talvez, se eu fosse mais jovem, eu não me importaria de atravessar a ponte do Brooklyn no meio do inverno. Mas tenho amigos muito mais jovens que também reclamam. Não precisa ser um grande atleta para andar de bicicleta do jeito que eu ando. Dá para continuar pedalando até estar morto.

E como é o David Byrne ciclista? Atento às leis de trânsito?
Eu tento parar nos sinais vermelhos e nas placas de “pare” e pedalo na mesma direção do trânsito. Não ando nas calçadas para não assustar os pedestres. Posso não ser tão caxias ou aplicado nessas coisas, mas estou ciente de que a blogosfera está me vigiando. E eu sou visto como um tipo de representante da causa, então tenho que ter cuidado.

"O pessoal da bicicleta está criando uma sociedade com outro tipo de status. Algo mais sutil, mais musical"

Você usa capacete?
Em geral, não. Talvez eu devesse. Uso se vou para uma área de tráfego intenso, como o centro de Manhattan. Quando venho trabalhar, uso a ciclovia do rio Hudson, onde não há carros. E dou preferência às ruas que têm faixas para bicicletas.

Como você lida com a questão do suor? Não é um detalhe insignificante, certo?
Não mesmo. Eu mandei instalar um chuveiro aqui no escritório. Não é uma solução perfeita. Eu tive que negociar com a administração do prédio. Eles ficaram preocupados, porque acharam que alguém ia morar aqui, e é um prédio exclusivamente comercial. Mas não resolve o problema se você vai a uma reunião no verão. Então não há resposta perfeita para essa pergunta.

Não há nenhuma menção a acidentes no seu livro. Você já sofreu algum?
Nada muito grave. O único que tive foi num dia que ia para casa depois de beber. Estava numa dessas ruas de paralelepípedos, olhei em volta para procurar uma pessoa e caí da bicicleta. Quebrei duas costelas.

Você já foi atingido por um carro?
Não. Eu sou cuidadoso. E [batendo na madeira da janela três vezes] sortudo, eu acho.

Como são suas palestras sobre o assunto?
Em geral, falo sobre minha experiência, mas também sobre como as coisas chegaram ao ponto em que estão, dou um pouco do contexto da situação que vivemos hoje nas nossas cidades. Falo também um pouco de lugares que estão testando inovações em infraestrutura, ciclovias, parques, ruas para pedestres, esse tipo de coisa. Em geral há outras pessoas na palestra, um político local, às vezes alguém do departamento de trânsito, algum ativista sério de uma organização da cidade, um teórico que possa falar da história da cidade.

Diferentemente dessas pessoas, seu conhecimento sobre o tema é empírico. Você acha que ser um artista famoso o autoriza a falar sobre qualquer coisa e, mais que isso, ser ouvido?
Eu não falo como um expert. Estou, na verdade, convidando os experts a se juntarem a mim e escutarem o que eu tenho a dizer. Sim, meu conhecimento é apenas empírico, vem da minha experiência, o que é bom para contar história, mas não tão eficaz na hora de lidar com burocracias. Meus instintos me levam a perguntar por que as coisas estão desse jeito, como elas ficaram assim, o que isso significa, quem tomou as decisões... Mas as respostas geralmente vêm de outros que gastaram mais tempo investigando essas coisas.

Ouvimos dizer que você já pedalou com Caetano Veloso e Margareth Menezes em Salvador. É verdade? O Caetano não é conhecido exatamente como um tipo esportivo...
[Risos] É verdade, mas eu também não sou. Eu estava visitando Salvador num Ano-novo. Perguntei ao Caetano ou à Paula Lavigne se eu poderia alugar uma bicicleta. Eles disseram que sim. Eu e minha namorada ficamos pedalando por uns dias, nas ciclovias da costa. Um dia eles me disseram que havia uma bela ciclovia em uma reserva natural no meio da cidade e decidiram que iriam juntos! [Risos.]

Pelo visto, você achou tão curioso quanto eu...
Sim! E eu não sabia que a Margareth iria, e ela apareceu lá. No fim das contas, deu tudo certo. Fizemos o passeio completo. Era uma ciclovia bem suave.

Você já pedalou em São Paulo?
Sim, já pedalei por lá.

E como foi?
Nas grandes avenidas, foi meio insano. Mas nas ruas menores, vendo o mapa no seu celular, dá para andar.

Com a sua experiência, que sugestões daria para que São Paulo fosse uma cidade mais “bicicletável”?
Eu acho que não explorei a cidade o suficiente numa bicicleta para dar palpite. Mas eu espero que as outras pessoas que vão participar do evento tenham boas respostas. Ou pelo menos algumas propostas. Por isso eu as convidei. Elas conhecem bem a cidade.

Você diz no livro que a arquitetura é uma boa maneira de ver o que uma cidade quer do seu futuro. O que você concluiu da arquitetura de São Paulo?
É uma cidade tão grande que é impossível para mim entendê-la completamente. Há uma área de arranha-céus, depois vem outra. No começo, elas me pareciam exatamente iguais. Então algum local me dizia: essa é mais rica que a outra. Daí havia áreas verdes e outras com antigas fábricas... Não sei. Eu nunca fiquei lá tempo o suficiente para formar um mapa mental de São Paulo. As pessoas de lá devem saber o que cada bairro significa. Mas, como estrangeiro, eu nunca entendi.

"Andar de bicicleta é uma forma de meditação, permite que as intuições venham à tona"

Até para nós é difícil entender... Qual foi a melhor e a pior cidade para andar de bicicleta que você já conheceu?
A pior até agora foi Hong Kong. Não há um sentido de vida comunitária. É tudo uma questão de fazer dinheiro. Pode ser um exagero, mas é o que eu senti. Não há parques, nem pequenos. Não há espaço para a cidade respirar. E, claro, não há ciclovias. Você deve supor que a melhor seria Copenhague ou Amsterdã, em que a bicicleta está integrada a todo sistema de transporte. Mas é algo que você espera dessas cidades. É muito mais interessante quando você é surpreendido por cidades como Roma ou Istambul, que podem ser exploradas de forma relativamente fácil, mas onde não há ninguém mais andando de bicicleta. Os motoristas desses lugares podem ser agressivos, mas o trânsito é tão ruim que eles não podem ir muito rápido.

Você quer dizer que um trânsito mais agressivo pode tornar a experiência da bicicleta mais desafiadora?
Essa é uma ideia que tem um paralelo frequente: a de que a criatividade nasce da repressão, do esforço, de circunstâncias difíceis. E que, se nossas vidas fossem fáceis, a gente nunca criaria nada, nunca escreveria uma música, só curtiria o pôr do sol. Eu não acho que seja verdade. Certas coisas não aconteceriam numa situação mais confortável, mas eu acho que existe uma necessidade humana de sempre tentar alguma coisas. Às vezes em resposta a uma situação de risco, mas às vezes simplesmente para melhorar as relações com outras pessoas.

Você já compôs alguma música enquanto pedalava?
Alguns trechos. Às vezes ando com um pequeno gravador, às vezes gravo no celular mesmo alguma ideia, uma letra ou alguma melodia. Mas não é tão comum assim. É meio perigoso segurar o gravador, achar o botão certo para apertar e ainda guiar a bicicleta. Eu não recomendo a ninguém.

Você escreveu no livro que a bicicleta o conduz a um estado meditativo. Como isso funciona?
Como não me exige muito fisicamente e como em geral não estou no meio do tráfego, a bicicleta acaba sendo um bom momento para pensar nas coisas em que estou trabalhando. É uma boa maneira de refletir, porque uma parte do cérebro está concentrada em dirigir a bicicleta, o que é algo automático, e a outra parte pode deixar que as ideias fluam naturalmente, que algumas intuições ou coisas inconscientes venham à tona.

Lendo o livro, temos a impressão de que ele foi escrito por um não americano. Você nasceu na Escócia, mas cresceu em Baltimore e é considerado um artista americano. De onde vem esse olhar estrangeiro?
Apesar de ter crescido aqui, meus pais são estrangeiros – e, nesse sentido, eu também sou um pouco. Como imigrante, você adota certas partes de seu novo mundo e outras nem tanto. Você vê certas coisas a distância, de fora.

Esse é ponto de vista importante para um artista, não?
Sim, para mim foi muito valioso.

Numa entrevista, você disse que não se sentia muito feliz na época do Talking Heads. Você se sente melhor agora?
Sim, claro. Por exemplo, antigamente eu me sentia mais desconfortável nos shows ao vivo. Agora eu tenho mais prazer. Não sei se é melhor para o público, mas para mim é muito mais fácil. Não tem nada a ver com problemas pessoais com outros integrantes da banda. Tem a ver com minhas questões psicológicas, em me sentir mais confortável na minha pele.

G.R. Christmas, Courtesy Pacewildenstein, 2008

O artista antes de enfrentar os paralelepípedos da Mercer St., em Nova York, com sua nova bike

O artista antes de enfrentar os paralelepípedos da Mercer St., em Nova York, com sua nova bike

A bicicleta tem algo a ver com isso?
Um pouco. Ela representa um momento de relaxamento todo dia.

Em várias de suas músicas, você fala da dificuldade de se sentir em casa em qualquer parte do mundo. Mas lendo seu livro fica a impressão de que encontra um lar sempre que está em cima de uma bicicleta, seja em que cidade estiver. Faz sentido?
Faz. Para muitos de nós agora o lar não é um lugar específico, apesar de eu tentar tornar minha casa confortável. O lar está dentro de uma comunidade, real ou conectada pela internet. E frequentemente ele está em movimento.

Você tem carro?
Não. Tive um bem velho quando morei em Los Angeles na década de 80.

Algumas cidades proibiram carros em seus centros. O que você acha disso?
Acho legal, mas não é absolutamente necessário. Aprendemos que nossa contínua adaptação ao carro não resolveu o problema – novas rodovias são construídas para acomodar a expansão da frota de carros, estacionamentos são sempre um pesadelo, os gases e o calor gerado tornam as cidades desagradáveis... Você sabia que é sempre 5 graus mais quente nas ruas onde há carros? Adaptação não é a solução, um novo caminho deve ser tomado.

A gente está ouvindo as buzinas das pessoas paradas no tráfego logo aqui embaixo. E você escreveu que, de certa forma, congestionamentos podem ser bons para as bicicletas. Pensando em São Paulo, como isso funcionaria?
É um pensamento do [urbanista dinamarquês] Jan Gehl. Ele diz que alguns problemas de tráfego simplesmente não podem ser consertados. Não adianta ampliar a rua ou aumentar o número de vias, porque você acaba transformando a cidade em uma grande avenida, e ela vai acabar ficando congestionada também. A coisa nunca termina. As pessoas acabam se perguntando: eu posso ficar aqui apertando a buzina no calor por quatro horas ou posso pegar um trem e chegar em casa em 15 min. O que eu devo fazer? Se você sempre tenta acomodar o tráfego, você nunca vai conseguir vencer. O congestionamento é bom porque obriga as pessoas a procurar algo melhor para elas, a pensar em alternativas. Olá, São Paulo! [Risos.]

Rodrigo Minotauro

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Ele é manso: lenda viva do MMA, Rodrigo Minotauro Nogueira volta ao UFC; espetáculo que explora a animalidade dos lutadores ou modernização das nobres lutas marciais? Com a palavra, Minotauro: “Instinto é importante, mas estratégia ainda é mais. A fera tem que estar sempre sob controle”

Em uma tarde quente de julho no Rio de Janeiro, o lutador Antônio Rodrigo Nogueira, o Minotauro, faz uma sessão de fisioterapia dentro do octagon do centro de treinamento Team Nogueira, no Recreio dos Bandeirantes. Depois de uma derrota por nocaute, três cirurgias (duas nos quadris e uma no joelho esquerdo) e dez meses parado, ele luta contra o tempo para estar pronto para sua luta contra o norte-americano Brandon Schaub, na etapa do Ultimate Fighting Championship que vai acontecer no Rio de Janeiro em 27 de agosto, a primeira vez do UFC no Brasil.

Quando a fisioterapia acaba, Anderson Silva, campeão mundial na categoria peso médio do UFC, pede permissão para entrar no octagon e conversar com Minotauro, abaixando a cabeça em discreta reverência. “Ele é um mestre”, explica Anderson depois. Mais alguns minutos e Junior Cigano, que em novembro disputa o cinturão dos pesos pesados no UFC, sobe ao ringue para disputar um round de treino com Minotauro, no papel de sparring para seu ídolo. “É uma lenda viva”, comenta Cigano. No round seguinte, Antônio Silva, o Pezão, que está perto de conquistar o título dos pesados no Strikeforce e veio dos Estados Unidos especialmente para ajudar no treinamento de Minotauro, substitui Cigano como sparring. “Para nós, ele é o exemplo máximo de superação”, completa.

Não é preciso ser especialista em Mixed Martial Arts (MMA) para entender a cena: em meio a alguns dos lutadores mais cascas-grossas do mundo, Minotauro é, sem sombra de dúvida, o macho alfa, o líder natural do grupo.

Arquivo Pessoal

De faixa branca, com o irmão Rogério em um campeonato de jiu-jítsu em Salvador

De faixa branca, com o irmão Rogério em um campeonato de jiu-jítsu em Salvador

A fama de Minotauro foi conseguida nos ringues. Com um cartel de 33 vitórias e seis derrotas, foi o único peso pesado a ser campeão nos dois maiores eventos da história do MMA: o Pride e o UFC. Ele ficou famoso por virar lutas dadas como perdidas contra rivais muito maiores, finalizando a luta com um golpe de jiu-jítsu depois de ser duramente castigado – o que lhe valeu o apelido de Rocky Balboa. Por outro lado, nunca foi finalizado em 12 anos de carreira, ou seja, nunca pediu para sair de uma luta.

Mas a liderança de Minotauro foi construída essencialmente fora dos ringues. Rara unanimidade em um esporte envolto em polêmicas, visto como um sábio entre falastrões, Rodrigo é conhecido – ao lado do irmão gêmeo, Antônio Rogério Nogueira, o Minotouro – por ajudar outros lutadores. Quando Anderson Silva rompeu com sua academia em Curitiba, Minotauro abrigou-o no Team Nogueira. Foi ele também quem forneceu estrutura para que Cigano, Pezão, Rafael Feijão, Fabio Maldonado e outros membros de sua equipe deslanchassem no MMA.

Agora é a hora de retribuição. No momento em que o mestre mais precisa de ajuda, seus seguidores estão ali reunidos no centro de treinamento do Recreio dos Bandeirantes para deixá-lo em forma para a luta contra Brandon Schaub. Aos 35 anos, Minotauro reconhece que não será tarefa fácil derrotar um adversário sete anos mais novo depois de dez meses parado. Ele diz que a primeira cirurgia no quadril foi traumática, que ficou deprimido quando se viu sozinho depois da operação e chorou ao pensar que não conseguiria voltar a lutar nunca mais.

Por outro lado, a superação tem sido a marca da vida de Minotauro. Nascido em Vitória da Conquista, no interior da Bahia, Rodrigo quase morreu ao ser atropelado por um caminhão quando tinha apenas 11 anos. Permaneceu quatro dias em coma e oito meses internado, e ficou com uma cicatriz nas costas em forma de buraco que o acompanha até hoje. Três anos depois, ele voltaria a competir no judô; depois viriam boxe, jiu-jítsu (foi campeão pan-americano antes de receber a faixa preta), luta olímpica e finalmente o MMA.

Apelidado de Minotauro na adolescência por um primo por causa de seu tamanho e de sua força, Rodrigo começou a lutar profissionalmente em 1999, primeiro nos Estados Unidos e depois no Japão – lugares onde se tornou ídolo bem antes do que no Brasil. De lá para cá, viu a imagem do esporte mudar radicalmente: de carnificina humana proibida em vários estados americanos e vetada na TV para negócio bilionário, disputado a tapas pelas emissoras, nas mãos dos irmãos Fertita, empresários de Las Vegas, e do ex-boxeador Dana White.

Minotauro soube cultivar a parte que lhe cabe nesse latifúndio. Junto com o irmão Minotouro, tem uma academia em San Diego e outra no Rio, mais quatro franqueadas; lançou um suplemento de proteína e terá em breve uma linha de acessórios para MMA, em associação com a marca líder do mercado nos EUA.

Depois de anos desconhecido pela imprensa e pelo grande público em seu país natal, ele virou ídolo pop aqui também. Participou de um clipe do Detonautas e será tema de um documentário com roteiro de Pedro Bial; seus fãs vão de Zezé di Camargo a João Gilberto; os frequentadores da sua academia incluem de Wagner Moura a Fernanda Paes Leme.

Curiosamente, sua primeira luta como profissional no Brasil será a do UFC Rio contra Brandon Schaub. Com a explosão do esporte no país, ele pretende passar cada vez menos tempo em sua casa em San Diego e mais tempo em seu apartamento no Rio, onde vive com o cachorro Temaki e onde recebeu a Trip para esta entrevista. O lutador, aliás, fez questão de tirar as fotos ao lado de seu carismático buldogue francês.

“Quando eu fiz a primeira cirurgia no quadril, briguei com minha namorada, e ela foi embora levando o Temaki. Eu chorei de saudade dele. Comentei a história com um amigo advogado e ele entrou com um processo de US$ 35 mil contra minha ex, alegando que o cachorro era meu apoio psicológico depois da operação. Uma semana depois, ele estava em casa de novo.” Ao lado de Rogério Minotouro, Anderson Silva, Cigano, Pezão, Feijão e Maldonado, Temaki foi fundamental para a recuperação do macho alfa do bando.

“Uma ex-namorada foi embora levando o [cachorro] Temaki. chorei de saudade dele”

Quando você começou a fazer artes marciais?
Comecei a fazer judô com 4 anos de idade, em Vitória da Conquista. Meu pai era contador. Mas minha mãe tinha uma academia de ginástica. Eu ficava lá quase o dia inteiro, cresci nesse ambiente. Numa época tinha até arte marcial na academia dela. Mas eu comecei com o judô numa outra academia, lá perto.

E você mostrou vocação desde cedo?
Total. Todo campeonato que tinha eu ganhava. Meu pai gostava de viajar comigo para as cidades perto de Vitória da Conquista quando tinha competição. Meu irmão e eu começamos juntos.

Vocês já se enfrentaram?
Meu pai nunca deixou. Às vezes o pessoal dos campeonatos botava os lutadores da mesma academia para se enfrentar. Mas meu pai nunca deixou que criasse uma competitividade entre os dois. Quando viramos profissionais, nós naturalmente fomos para categorias diferentes. Ele sempre foi um peso abaixo do meu.

Você quase morreu atropelado por um caminhão aos 11 anos. Você se lembra de como foi o acidente?
Lembro sim. Nós estávamos na festa de aniversário de um primo meu, brincando na porta da casa. Tinha um caminhão parado na frente, de um amigo dos meus tios que estava bebendo lá na festa. Uma hora a molecada subiu na carroceria. O cara saiu da festa, não viu a criançada e começou a andar com o caminhão. Todo mundo pulou pelos lados, e eu pulei por trás. E ele engatou ré. As rodas passaram pelas minhas pernas e pelo meu peito, só não pegaram a cabeça. Me levaram para um hospital de Vitória da Conquista e fizeram a primeira cirurgia. Depois de três dias, uma UTI móvel me levou para Salvador. Fiquei oito meses no hospital. Recebi alta três, quatro vezes. Meu diafragma tinha sido rompido, e eu não conseguia respirar direito. Daí tinha que voltar para o hospital. Na última vez, fizeram uma reconstituição do diafragma e pude voltar de vez para casa.

Quais foram as outras sequelas?
Quebrei as costelas, meu fígado se rompeu e quase o perdi, machuquei os rins e os pulmões, o tendão de aquiles da minha perna esquerda também se rompeu. E perdi uma parte de músculo nas minhas costas. Até hoje tenho um buraco lá.

Esse acidente pode ter ajudado você a se transformar no lutador que é?
Não sei se uma coisa tem a ver com a outra, mas acho que ajudou a me deixar mais forte psicologicamente. Minha resistência à dor é muito alta. O mais importante foi o apoio da família nessa hora de dificuldade. Situação pior que aquela acho que não passo não.

Arquivo Pessoal

Encontro de titãs: com o surfista Kelly Slater

Encontro de titãs: com o surfista Kelly Slater

Como você voltou à atividade física?
Antes de pensar nisso, tive que voltar a andar. Foram oito meses só para isso. Era difícil fazer qualquer coisa normal do dia a dia. Depois de um ano e meio, consegui voltar a jogar bola, praticar algum esporte. Passei um tempo sem competir no judô, com medo de me machucar. Fiquei anos sentindo dor nas costas, no lugar onde perdi o músculo. Só fui voltar a treinar para competir com uns 14 anos, quando já tinha mudado para Salvador. Depois, comecei a treinar outras lutas, boxe com 15 anos, jiu-jítsu com 17, luta olímpica com 20.

Quando você decidiu se tornar um lutador profissional?
Com uns 18 anos comecei a competir no jiu -jítsu e a ganhar todo campeonato em que entrava. Aí fui morar nos EUA, comecei a treinar o MMA com 21 anos e abri uma academia lá com 22.

Quais foram seus mestres no jiu-jítsu?
Primeiro, o Guilherme Assad, de Salvador, e depois o mestre dele, o Ricardo de la Riva, aqui no Rio. O De la Riva é conhecido no mundo inteiro, tem várias academias com seu nome. Mas ninguém diz que ele é lutador: é magrinho, humilde, do bem. Entender o estilo de vida do cara foi mais importante do que aprender a luta.

Quais foram os preceitos do jiu-jítsu que você trouxe para sua vida?
Disciplina, se regrar ao máximo. O esporte te ensina isso. Equilíbrio entre o físico e o mental. Uma boa dieta. Humildade, amizade, você também aprende no tatame. Superação. Tem que se superar o tempo inteiro para atingir metas.

“Antigamente, quando eu falava que fazia jiu-jitsu, o cara olhava diferente. Hoje já vê como um esporte profissional.”

Por um tempo a imagem do jiu-jítsu no Brasil ficou associada com brigas de rua, como as da turma do Ryan Gracie (morto em 2007). Você pegou essa má fama causada por alguns lutadores?
Antigamente, quando eu falava que fazia jiu-jítsu, o cara olhava diferente. Hoje já vê como um esporte profissional, deu uma mudada. Tinha cem lutadores fazendo bem para a imagem do país, e uns poucos fazendo merda. O pessoal começou a diferenciar quem era quem. E não era só o Ryan, que era meu amigo. Tinha vários caras. Era uma tribo que tinha uma marra, que deu uma desvirtuada na filosofia e na imagem da luta. A filosofia é ser atleta, lutar pelo resultado, pelo país. Profissional mesmo não briga na rua.

Você nunca entrou em uma briga dessa?
Nunca. Quando vinha ao Rio para competir, várias vezes puxaram briga comigo. Às vezes me batiam por trás na balada. Ou o cara vinha pra cima quando eu estava surfando com meu pranchão. Eu olhava, dava uma respirada e saía de perto. Nunca perdi a cabeça.

Como é sua relação com os Gracie?
Tenho muito respeito pelos caras. O Royce é o cara que começou o UFC. Se hoje está todo mundo empregado, todo mundo é lutador profissional, isso se deve a ele e ao irmão dele, o Rorion. Eles criaram esse movimento de MMA no Brasil, no Japão. Temos uma dívida com eles. Lá por 1993, a gente conseguia a fita das lutas com o amigo do amigo, ficava vendo e se perguntando: “O que esses caras estão fazendo?”.

A imprensa brasileira demorou a perceber esse movimento, não?
Muito. A coisa só começou a mudar na Copa do Mundo no Japão, em 2002. A TV brasileira tava lá e todos os jornalistas japoneses perguntavam por mim, pelo meu irmão, pelo Wanderlei Silva. Nós éramos ídolos lá, mas ninguém do Brasil conhecia. Depois da Copa, a TV brasileira começou a nos procurar. Mas demorou para quebrar o preconceito. Hoje somos o segundo maior mercado do UFC no mundo, atrás dos Estados Unidos. Mas, em termos de exposição na mídia, acho que somos o primeiro. Você vê Faustão, Altas horas, toda hora tem um lutador lá. Não é uma coisa que acontece nos EUA.

Qual foi a razão do seu sucesso no Pride? O que você trouxe para o MMA?
Comecei no Japão numa época em que Brazilian jiu-jítsu já tinha estourado, o pessoal já tinha aprendido um pouco como se defender, principalmente os wrestlers americanos. Comecei a usar outras técnicas, já tinha feito boxe, wrestling. Enganava o cara e levava pro chão para finalizá-lo no que eu faço melhor, que é o jiu-jítsu. Para meu peso, tenho uma velocidade muito boa no chão. Não dá para ser só força bruta, tem que ter leveza.

Você enfrentou caras bem maiores que você, como o americano Bob Sapp, foi bastante castigado, mas conseguiu virar várias lutas. De onde você tira essa resistência, essa superação?
Com foco na luta. Você está apanhando, mas com foco na sua estratégia, concentrado em ganhar como planejou, mesmo apanhando. Enquanto eu estiver acordado, entendendo a situação, faço meu máximo para tentar ganhar, vou morrer tentando. Acho ridículo desistir quando ainda não acabaram as oportunidades de virar uma luta. Não tem sensação melhor do que a vitória, que o dever cumprido. Durante três meses antes da luta eu não faço nada, durmo cedo, me alimento bem, treino duro. Por que vou jogar fora esse tempo todo por achar que não dá? Tem que saber se mostrar no bom e no ruim. Esse é o verdadeiro espírito de um lutador. Eu tenho isso dentro de mim.

“Enquanto eu estiver acordado, entendendo a situação, faço o máximo para ganhar. Vou morrer tentando”

Tem algum lutador que é inimigo pessoal?
Tem o Josh Barnett, um americano superchato, marrentão, que desrespeita legal. É o tipo que fica falando contigo no meio da luta: “É só isso que você pode fazer?”. É aquele babacão americano superpreconceituoso. Um otário. Não sou só eu quem não gosta. Todo mundo comenta. Ele machuca os sparrings que treinam com ele. É tipo o cara mau do filme.

E quem é seu ídolo no MMA?
Eu gosto muito do Anderson (Silva, o Aranha), um brasileiro que representa bem, que tem esse equilíbrio entre o mental e o físico na hora da competição, sempre surpreende o adversário, lida bem com a pressão da invencibilidade. Não é fácil se manter lá em cima por tantos anos.

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Rogério Minotouro, Júlio e Rodrigo Minotauro aos 17 anos no apartamento da família, em Vitória da Conquista

Rogério Minotouro, Júlio e Rodrigo Minotauro aos 17 anos no apartamento da família, em Vitória da Conquista

Já ouvi gente do meio falando que o Anderson é um gênio da luta, mas que mudou com a fama, enquanto você permaneceu o mesmo. A fama subiu à cabeça dele?
Não. O pessoal que fala isso não conhece o cara como eu conheço. Ele é um cara bom, família. Aqui na academia, depois que termina o treino, ele se oferece para fazer a entrada de queda, que é basicamente ser jogado no chão pelo outro. Ele não precisa disso, mas faz, mesmo com a coluna machucada. A gente tem um projeto social lá na academia, atende as crianças pobres das redondezas. Ele sai do treino e conversa com todos, dá luvas. O problema é que ele quer ter uma vida privada, conversar sem ser atrapalhado, sentar com a filha para comer um negócio. Tem sempre gente em volta. Já vi nego rasgando a camisa dele para tentar conseguir uma foto. O assédio às vezes é demais.

E a história de que o Steven Seagal ensinou aquele chute frontal usado pelo Anderson e pelo Lyoto Machida. É verdade ou é marketing?
Aquele chute os caras já davam. Só que tem um detalhe, uma dica que o Seagal deu mesmo. Em vez de dar o chute vindo de baixo, primeiro você sobe o joelho e depois chuta. O cara pensa que vem o joelho e baixa a guarda. Aí entra o chute. Foi o Seagal que deu a dica mesmo. Já me apresentaram para ele lá no Japão. O cara é enorme, maior que eu. E é igual ao personagem dele, aquela mesma marra. Uma vez eu vi ele pedindo ao Joe Silva, matchmaker do UFC, para arranjar uma luta para ele. E o Silva tirou um sarro: “Já sei! O Jean Claude van Damme!”. O Seagal ficou bravo: “Pô, cara, tô falando sério. I’m a legit!” [eu sou legítimo!]. Ele achava que ia aguentar uma luta [risos].

O Dana White, presidente do UFC, é outro cara polêmico. Qual é a sua opinião sobre ele?
É gente boa. Um cara novo, que já foi boxeador, conhece a vida do lutador. Dá para conversar. Ele e os irmãos Fertita, os donos da liga, pegaram o business quebrado, dava uns US$ 250 mil de prejuízo por evento, e transformaram num negócio bilionário. Virou um dos três esportes mais assistidos nos EUA, depois do futebol americano e do basquete. A marca UFC se tornou mais conhecida do que a sigla MMA, é como se a liga fosse maior que o esporte. Quando digo que sou lutador de MMA, nem todo mundo entende. Mas, se falo que sou um lutador do UFC, todo mundo conhece. A marca UFC é uma moda. Todo mundo quer lutar. Crianças americanas de 7 anos de idade me dizem: “Hey! Eu quero ser um UFC fighter”.

“O MMA é o segundo esporte no Brasil. Muito mais gente assiste a MMA do que a vôlei, tênis, natação...”

Há condições de o Brasil chegar a esse ponto?
Claro. Para mim, o MMA já é o segundo esporte no Brasil, depois do futebol. É a realidade. Muito mais gente assiste a MMA do que a vôlei, tênis, natação, judô. Já é. Além do futebol, é o único esporte que vende pay-per-view no Brasil. Em uma luta do Anderson, do Shogun, minha, do Vitor Belfort, passa na frente de um bar para ver se não está todo mundo assistindo. Tem de garoto de 8 anos a senhor de 65. E muita mulher vê, o namorado começa e ela acaba gostando.

A imagem de carnificina passou?
É um esporte que tem sangue, mas para o praticante não é violento. O cara é preparado para isso. Tem treino em que o cara vai chutar cem vezes, eu vou defender 98 vezes, mas dois vão acertar minha cabeça. Na luta, quando isso acontecer, eu vou estar preparado. Eu treinei aquilo, meu pescoço é maior do que o de uma pessoa normal, meu rosto está preparado para aquele impacto. Não é que nem pegar você e colocar lá dentro do ringue. Para mim, violência é o cara vir a 200 km/h e meter o carro no muro numa prova de stock-car. O cara não está preparado para aquele impacto. Numa competição de bike, um cara cai e caem cem bicicletas em cima dele. Aí é violento também.

Você disse que o esporte se profissionalizou. Isso vale para a relação entre os donos do UFC e os lutadores?
Sim. É uma relação profissional. Não é pessoal. Eles não têm amizade com o atleta. Você não é favorecido porque eles gostam de você. Eles fazem um contrato para quatro lutas. Se você vai bem, renova. Se não vai bem, sai. Se perde duas, eles podem te mandar embora antes. Se tiver uma atitude que não convém, se briga ou é preso, por exemplo, também está fora. Tudo está sob contrato. E todo mundo faz sua parte. Mesmo ganhando por luta, mesmo não ganhando um salário mensal, isso te dá uma estabilidade profissional. O lutador vira o funcionário da firma.

Com essa história de o UFC demitir quem perde várias seguidas, a pressão sobre o lutador piorou?
Essa é uma parte chata. A luta se tornou muito mais um embate para ver a melhor estratégia do que ver quem é o melhor lutador. O cara fica lá se guardando, bate um pouco, na hora de receber porrada se segura no outro, fica um pouco no chão e acaba ganhando por pontos. Deixou de ser aquele embate real que a gente tinha no Japão, os caras se pegavam ali pra valer. Essa pressão acaba tirando a emoção. O lutador pensa: “Ah, já perdi uma, não posso perder outra”. O cara não relaxa, não desenvolve. Por outro lado, se luta bem, eles acabam mantendo na liga, independente do resultado. Se ele perdeu, mas deu show, eles deixam lutar. Por isso tem prêmio para a melhor luta da noite, para a melhor finalização da noite. Essa é a parte boa.

Nas suas últimas três lutas, você sofreu duas derrotas por nocaute. Isso aumenta a responsabilidade de uma vitória agora no UFC Rio, para não correr o risco de sair da liga?
Eu não vou ficar me cobrando tanto, porque essa próxima luta representa uma volta depois de dez meses parado, depois de três cirurgias, no joelho, no quadril direito e no esquerdo. Não sei se essa próxima luta pode ser um parâmetro para minha carreira. “Ah, se eu perder eu vou parar, vou repensar”. Para mim, é um momento de superação. Competi machucado nas últimas lutas porque não gosto de furar compromisso profissional. Mas é horrível, você perde não porque é pior que o outro cara, e sim porque não estava 100%. Não quero definir meu futuro nessa luta. É um retorno.

Você nunca foi finalizado. É uma questão de honra para você terminar a carreira sem que isso aconteça?
Eu faço isso bem, finalizar os outros e não ser finalizado. É a parte em que eu sou melhor, no chão. Se eu conseguir terminar minha carreira sem tomar uma finalização, vou achar isso excelente. É meu plano de carreira. Perdi duas vezes por nocaute, mas nunca caí duro, apagado, de olho virado, de acordar no vestiário depois. Isso não deve ser bom para a cabeça do cara.

Vários atletas de ponta dizem que a pior parte da profissão é lidar com a dor. Como você lidou com as suas?
Nessa fase antes das cirurgias eu chegava atrasado a todos os meus treinos porque era difícil levantar e ir rápido para a academia. Eu levantava, sentia muita dor, tinha que aquecer o quadril. Meus últimos três anos foram assim. Minha primeira cirurgia no quadril foi supertraumática. Eles raspam teu osso do fêmur, fazem microfraturas no teu quadril, usam o sangue para transformar em cartilagem. Depois da operação, fiquei oito meses sem poder colocar o pé no chão. Não podia me abaixar, não podia espirrar, não conseguia me virar, não conseguia fazer nada. Fiquei três dias sem ir ao banheiro. Na mesma época minha mãe caiu no gelo, se machucou e não pôde cuidar de mim. Três dias depois da cirurgia, eu terminei com minha namorada, e ela foi embora. Eu fiquei completamente sozinho, sem poder me mexer.

Bateu a depressão?
Fiquei totalmente depressivo. Tive que me abaixar sozinho, fazer a mala, pegar coisas quando não podia. Me machuquei bastante. Aí graças a Deus veio uma amiga minha para cuidar de mim. Já a segunda operação foi bem melhor. A [fisioterapeuta] Ângela [Cortes] foi aos Estados Unidos para me acompanhar e eu melhorei muito mais rápido.

Para um atleta de ponta, é sempre mais difícil operar, pela responsabilidade de voltar a competir, não?
É uma cobrança maior para voltar o mais rápido possível. Eu já estava com esse pensamento de o UFC vir para o Brasil, não queria perder essa. Ter um objetivo até ajudou, tentamos adiantar um processo que levaria uns dez meses. Só agora em julho é que eu deveria começar a treinar, mas comecei dois meses e meio antes disso. Quando eu tive a ideia de lutar no Brasil, o pessoal da minha equipe disse: “Tá louco, Rodrigo, não vem com essa, não”. Aí eu pedi: me dá um mês que eu vou provar que posso lutar. Estava havia dez meses sem treinar. Depois de um mês, eu já estava treinando bem. Daí o pessoal me apoiou, todo mundo juntou para ajudar.

Arquivo Pessoal

Comemorando a vitória sobre o croata Mirco “Cro-Crop” em 2004

Comemorando a vitória sobre o croata Mirco “Cro-Crop” em 2004

Como você acha que vai ser a luta contra Brandon Schaub?
Vou pegar um garoto novo, forte, duro, que vem de várias vitórias consecutivas. Ele pediu para lutar comigo. O cara quis me pegar num momento de fraqueza, em que não estou no meu melhor, depois de três cirurgias. Não é que não estou 100%, ele acha que não estou. Estou bem. Mas vou ter que me superar para estar 100%. O Shogun vinha de uma cirurgia no joelho quando lutou contra o Jon Jones e foi derrotado. E eu venho de três cirurgias! Mas meu jiu-jítsu é melhor do que o do Schaub, minha técnica é melhor, tenho um treino que ele não tem, sou um lutador que ele não é. Me acho mais talentoso, mais forte e mais completo que ele. Ele está achando que vai me pegar num momento em que não estou bem, mas vou mostrar que posso vencer. Vou levar para a parte de chão e finalizá-lo.

Você tem algum acompanhamento psicológico?
Não tenho psicólogo esportivo. Já tive, em 2004, 2005, um cara da seleção brasileira de boxe. Ainda faço algumas técnicas que aprendi com ele, desde respiração até visualizar a luta antes, me imaginando entrando no ginásio, apertando a mão do oponente, usando minha estratégia, para não ter a surpresa do primeiro toque. Quando você está prestes a competir, aparecem pensamentos negativos na sua cabeça, é natural. Fazendo a visualização da luta, você consegue cortar esses pensamentos.

Você fala muito de seguir uma estratégia, mas como fica o lado instintivo, a animalidade do lutador?
Claro que o instinto é importante. Não é tudo programado. Tem situações que você precisa extravasar um pouco esse lado, mas não pode deixar a fera tomar conta. Você tem que raciocinar, tem que ter instinto, mas totalmente controlado. Os lutadores que sabem controlar aquela adrenalina têm resultado melhor.

E o medo joga a favor?
Tem que ter medo, o medo te deixa esperto, a adrenalina te deixa ágil. Você não pode entrar totalmente sem medo, aí você se expõe muito. Mas o medo deve ser controlado também. Não dá para chegar apavorado. Tem que ter medo de levar um soco que vai acabar com a luta. Mas não é o medo do soco em si. Não é o medo de se machucar. Porque o corpo está preparado. É o medo de perder.

“No fundo, nao acho o MMA agressivo, talvez porque faço isso diariamente. Pra mim, é como jogar bola”

Você parece ser um cara bem sossegado no dia a dia. Como estimula sua agressividade?
Não estimulo. Quero ganhar a luta, não ser agressivo. No fundo, eu não acho o MMA agressivo, talvez porque faço isso diariamente. Coloco a luva e saio na porrada com meu amigo, às vezes com meu irmão. Para mim, é como jogar bola. Eu preciso apenas ficar mais focado antes das lutas, me fechar mais, sem gente em volta. A concentração me deixa naturalmente mais agressivo. Tem gente que come carne vermelha antes da luta. Eu prefiro comer peixe, quero ser ágil, flexível. A minha agressividade é natural. Eu nasci com isso. É como um dom. Tem quem lide melhor com o stress da competição e mantém a calma quando o cara está batendo. Tem gente que é um monstro treinando na academia, mas não desenvolve na luta com um estranho querendo te bater. Eu sou um competidor. Eu compito melhor do que treino. Eu treino bem, mas no dia da competição em me supero.

Se vencer Brandon Schaub, você volta à rota do título mundial e pode ter que enfrentar seus pupilos Cigano ou Pezão algum dia. Como vai ser isso?
A gente nunca vai lutar entre si. Isso é certo e combinado. Não tem dinheiro que faça isso. Esse tipo de competição não é sadio nem em treino. Meu sucesso é ver o cara ser campeão mundial, seja o Cigano, o Pezão ou qualquer um do nosso time. Isso me deixa tão satisfeito quanto ganhar o título. Eu não lutava contra meu irmão, por que vou lutar com os caras?

Você e seu irmão trocaram de lugar em alguma luta no passado?
Não. Mas teve um episódio engraçado... Na virada de 2004 para 2005, fui lutar na final do Pride lá no Japão contra o Fedor. O evento era meio afastado de Tóquio. O pessoal saiu meio-dia para a luta, que era meia-noite. Mas às dez da noite havia uma apresentação na Fuji TV. Saí do hotel às cinco da tarde, mas tava nevando pra caralho. Fechou o metrô, as ruas. Fiquei numa estação do metrô congelando, e a produção me ligando. Quando eram quase dez horas, eu falei: meu irmão está aí no ginásio, bota um capuz e apresenta como se fosse eu. Ninguém percebeu nada. Mas acabei perdendo a luta: cheguei 20 minutos antes, exausto depois de um dia inteiro congelando no metrô. Foi minha segunda derrota para o Fedor.

“A minha agressividade é natural. Eu nasci com isso. É como um dom”

E de namorada você e seu irmão já trocaram?
Já, já. Na adolescência, eu estava ficando com uma garota que não era muito a fim e que o Rogério achava linda. Eu liberei, e ele foi lá dizendo que era eu. Ficou com ela e depois contou a verdade. Eu já namorei uma mulher que ele namorou um tempo depois, a gente até brigou na época.

De porrada?
De discutir. Mas depois a gente se entendeu.

Com a fama como lutador, aumentou muito o assédio?
Rola muito com o Minotauro. Mas eu procuro separar o Minotauro do Rodrigo. Se eu vejo que a mulher está interessada no cara famoso, eu dou um jeito de escapar.

E as ring girls? Deve ser difícil se concentrar com elas passando na sua frente na hora da luta...
Nem olho para elas. Não faço sexo também antes das lutas. Não bebo quase nunca. E drogas eu nunca usei mesmo. Se você está focado, concentrado, traçou uma estratégia, não pode ficar distraído, pensando em mulher. Depois da luta, tudo bem. Dá para dar uma olhadinha [risos].

“Já morei junto com quatro, cinco namoradas, incluindo a mãe da minha filha. Não deu muito certo”

Você já foi casado?
Morei junto com umas quatro, cinco namoradas, incluindo a mãe da minha filha. Não deu muito certo. Cara, eu viajo muito, sou muito focado no que faço. Com a mãe da minha filha, eu estava numa fase que estava viajando pra caramba. Fui para Abu Dhabi, Japão, me mudei para os EUA. Minha vida é meio desorganizada para ter alguém para casar. Preferi me dedicar mais à minha carreira.

Você consegue acompanhar a vida da sua filha?
Consigo. Ela está com 11 anos. Sempre que dá ela está comigo. Eu não passo dois meses sem vir ao Brasil. Dou um pulo em Salvador, onde ela mora, ou ela vem aqui pro Rio.

Você acha que devia haver lutas femininas no UFC?
Acho que é legal mulher lutando. A mulher não tem tanta força física, então vira um lance mais técnico. Elas já estão no Strikeforce, o campeonato que o UFC comprou. A Cris Cyborg, brasileira, arrebenta lá. Na nossa academia, uns 30% dos alunos são mulheres. Elas costumam praticar esportes em que não conseguem colocar a tensão para fora. No MMA, elas extravasam.

Eu mostrei para algumas pessoas que não acompanham o MMA aquelas encaradas que os lutadores dão antes das lutas e eles acharam meio gay...
A coisa da encarada antes das lutas é um lance de intimidação. Mas tem lutadores que não olham para tua cara, como o Fedor, que olha para baixo e na luta é um monstro. Uma coisa que é normal no jiu-jítsu é a galera se beijar no rosto depois da luta. Eu beijo o Pezão, o Cigano. Quem não está acostumado fala: “Pô, os caras se beijam”. Mas a gente é tão amigo, tem tanto contato no dia a dia, que fica normal. É um esporte de contato físico, o tempo inteiro um cara agarrado com outro. Mas não tem maldade. Eu já dei aula para turma feminina, tinha umas alunas lindas, a gente ficava treinando naquelas posições, a mulher cara a cara comigo. Mas nunca pensei em nada sexual. É natural estar lá com o corpo colado, deixa de ser sensual.

Jorge Bispo

Minotauro e seu buldogue francês, o Temaki

Minotauro e seu buldogue francês, o Temaki

Você conhece algum caso de homossexualidade no MMA?
Não conheço... Tinha um lutador americano, era um peso pesado top quando comecei minha carreira, todo mundo desconfiava que ele era, mas não houve comprovação. Claro, não vou dizer o nome. Ele era bem afeminado fora do ringue, bem estranho.

Mas você tem algum preconceito com gays?
Não. Mas eu não treinaria com gay. Eu não tenho maldade, não acho aquele contato físico sexual. Mas vai que ele tem essa maldade de ter um contato físico comigo, de ficar ali agarrado...Eu não tenho e não gostaria que alguém tivesse, entendeu? Eu não teria problema nenhum de ter um aluno gay na minha academia, mas preferiria não treinar com ele.

Você não conhece nenhum homossexual no MMA, mas metrossexual tem muito, né?
Demais. A vaidade no MMA é pior que no mundo da moda. Tem muitos que se depilam, usam brinco, como o Anderson, o [Fabio] Maldonado, que são do nosso time. Uma vez eu me hospedei com o Maldonado numa casa de um gringo superchato, que pediu para não usar o banheiro pessoal dele. E a primeira coisa que o Maldonado fez foi se depilar no banheiro do cara, com a máquina do cara. O gringo ficou puto. Outra vez, o Maldonado me deu um selinho na boca, só de sacanagem, depois de uma luta na minha terra, em Vitória da Conquista. O pessoal não perdoou, ficou gritando: “Veado, veado!”. O Maldonado é uma figura (risos).

Você aproveitou o sucesso do MMA para juntar um patrimônio?
Tenho quatro imóveis no Rio, um em San Diego, um em Salvador. Tenho academia aqui, outra em San Diego e quatro franqueadas. Eu e meu irmão lançamos há seis meses no Brasil nossa marca de suplemento, baseada na dieta que eu faço no dia a dia, com proteína, glutamina e BCAA [aminoácidos de cadeia ramificada]. E vamos lançar uma série de produtos com nosso nome em associação com a maior marca do mercado americano. Vai ter luva, caneleira, protetor de cabeça, short de luta, saco de pancada, equipamentos funcionais para academia, tudo com meu nome e o do meu irmão. O negócio cresceu muito no Brasil. Eu tinha quatro patrocinadores nos EUA, hoje em dia eu sou patrocinado aqui. Mas, para mim, o mais importante foi ter conseguido montar uma estrutura para nosso time, para nossos alunos. Quando eu mando atletas para treinar nos EUA, eles têm casa, motorista, secretários. E, aqui no Brasil, nossa academia é uma das poucas com um esquema profissional, tem preparador físico, fisiologista, fisioterapeuta, refeitório, alojamento para 12 atletas. Faço coisas para atletas nossos que nunca fizeram para mim.

Os lutadores do seu time com quem eu conversei O chamam de líder, de mestre. Você se vê nesse papel?
Você não se posiciona como líder. Você ajuda as pessoas e acontece naturalmente. Mas eu vejo como uma parceria. Da mesma forma que tive contribuição no sucesso de cada um deles, eles tiveram no meu sucesso. Eu dependo do suor do Pezão para tentar ter um resultado positivo, do suor do Cigano, do Feijão, do meu irmão e do Anderson. E eles dependem do meu.

Você tem religião?
Sou católico pelos meus pais. Mas meu avô, pai do meu pai, era evangélico. Então frequentei a igreja católica e a igreja evangélica. Meu irmão mais velho é kardecista. Já frequentei também o centro espírita dele em Salvador. Tem uma igreja Bola de Neve aqui do lado do meu apartamento no Rio. Já fui algumas vezes. Acho legal seguir religião, acreditar em Deus. Hoje não frequento muito a igreja, mas rezo sempre. Rezo antes das lutas, peço proteção para vencer e para não machucar meu adversário.

Você chora de vez em quando?
Em algumas ocasiões. Chorei quando minha filha nasceu. Quando me machuquei e achei que não fosse mais voltar a lutar. Choro com injustiça em eventos. Naquela vez que lutei com Fedor, que achei que devia ganhar e pararam a luta, fui para o hotel e chorei. Nas derrotas de amigos, nas derrotas do meu irmão. Quando me operei, chorei porque minha mãe se machucou e minha namorada foi embora levando meu cachorro. Sou um cara emotivo.

Criolo

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Alexandre Orion, Pedro Inoue

Autor do disco mais elogiado do ano, incensado pela crítica e por uma devota massa de fãs, indicado a cinco prêmios no VMB, shows abarrotados. Criolo está por cima, não se discute. Mas o seu o sucesso é tudo, menos repentino. Está apenas colhendo os frutos de mais de 20 anos de rap – e 35 de uma dedicada e improvável história de educação em família

Você pergunta. Mas não encontra uma resposta pronta. E sim uma incontida fala ornada de poesia, difusa e um tanto disléxica. Um flow caudaloso de imagens, gestos, pausas dramáticas, recorrências e repetições que não denota um MC experiente – o que, de fato, Criolo é. Parece mais o lapidado sintoma de um homem angustiado. E não serão shows apinhados, fãs de todos os orçamentos, elogios rasgados e impressos, discos esgotados, uma capa da Trip ou um dueto com Caetano Veloso que vão acalmar, um pouco que seja, sua alma trêmula. Porque toda essa atividade sísmica na psique de nosso entrevistado não diz respeito a fama, dinheiro ou prestígio. Tem a ver com... carma?

Porque, cá pra nós, talvez essa angústia tenha começado há muito tempo, antes mesmo de Kleber nascer. Quando sua mãe, a dona Vilani, era só uma criança correndo com um pedaço de carne crua embrulhado no jornal do dia anterior. Ela tinha que chegar logo em casa, antes que o sangue manchasse todas as letras no papel e nada mais fosse legível. Era como ela matava sua fome por leitura e completava, autodidata, sua alfabetização. Já que não havia escola, nem livros, nem dinheiro... e a embalagem era a única coisa com palavras impressas disponível na região carente do Ceará. Escritos que ela decifrava a duras penas, comparando com seu nome (tudo o que sabia escrever quando seu pai morreu) e deduzindo as demais letras, depois sílabas e palavras. Hoje, ao escutar sua mãe descrevendo essa cena, Kleber tem os olhos empoçados.

Mais do que música, é essa improvável urgência o que Criolo nos oferece. Quando compõe, canta, improvisa ou, simplesmente, fala em uma entrevista. “Muito legal o que está acontecendo comigo hoje. Mas legal mesmo seria eu não sentir essa dor no peito”, ele diz, ao refletir sobre a repercussão de seu novo álbum, Nó na orelha. O disco rapidamente transcendeu as invisíveis, e agora menos rigorosas, fronteiras entre o rap nacional e a canção. Entre seus fãs antigos de rinhas e eventos de hip hop e um público mais amplo, menos aguerrido. Provocou um tiroteio de adjetivos generosos da crítica, que, refém de rótulos e preconceitos, enumerou não sei quantos “estilos” entre as dez faixas do disco. Muita gente, como se houvesse distinção, decretou que Criolo fez “a ponte que faltava entre o rap e a música brasileira”. Bobagem... Se ele fez alguma ponte nesse disco, foi entre sua história e um público cada vez maior – e mais carente.

Divulgação

Nó na Orelha

Nó na Orelha

“Todo mundo tem fome. Se não é de feijão e farinha, é de amor”, filosofa. E com isso explica um pouco do que está por trás da unanimidade que a canção “Não existe amor em SP” alcançou. A música nem deveria estar no álbum. Foi feita de repente, melodia e letra, enquanto esperava os atrasados produtores do disco, na porta do estúdio El Rocha. A letra que fala sobre o abismo entre a cidade e as pessoas, sobre a solidão de viver entre milhões de desconhecidos, evocou um amor mais difuso, espiritual – e tocou muita gente. Foram mais de 200 mil downloads em três meses, versões na voz de outros artistas. Canção, disco e clipe de “Subirudoistiozin” lhe renderam cinco indicações para o VMB, entre elas disco e artista do ano. Além do convite para dividir o palco da cerimônia em um dueto com Caetano Veloso e um coro emocionado em todo show.

Rajneesh do Grajaú
Até pouco tempo, ele era Criolo Doido. MC de boa quilometragem em São Paulo, um dos fundadores da Rinha de MCs, tradicional duelo de rappers bons de improviso, e voz frequente no Pagode da 27, samba comunitário de seu bairro, o Grajaú, na zona sul da cidade. Mas, Doido ou não, Criolo estava em crise. “Me questionava se eu deveria continuar no palco”, ele confessa, “se eu não tinha outras formas de colaborar. Foi quando Marcelo Cabral veio com a ideia de gravar algumas músicas do amigo. Até para não passar batido.” Sem pretensão, do começo ao fim, o projeto tomou corpo.

Curiosamente, o disco é fruto de tudo, menos dessa tal falta de amor em SP. Sem gravadora, orçamento super-reduzido, Criolo virou apenas o talento ao redor do qual gravitou muita gente que... amou o projeto. E estava a fim de ajudar sem esperar muito em troca. Cabral convidou Ganjaman para coproduzir a bolacha. Músico experiente, rodado no mainstream e no underground, Ganja entendeu logo o que tinha na mão. “Eu faria na boa um disco tradicional de rap. Mas quando ele cantou umas músicas vi que era um material rico pra cacete. Que tinha espaço ali para arranjos de banda mesmo.”

Ganja hospedou o cantor em sua casa, e trabalharam duro. Alistaram alguns dos melhores músicos de São Paulo. O único selo que acompanha o disco independente é o da Matilha Cultural, um coletivo de São Paulo do qual Cabral faz parte e que reúne artistas e ativistas em torno de diferentes causas. Entre elas, apoiar a gravação do que muita gente está chamando de melhor disco do ano. Sem verba de divulgação, com uma assessoria de imprensa voluntária, foi na rede que as primeiras faixas de Nó na orelha correram como rastilho de pólvora.

“Legal esse momento que estou vivendo. Mas legal mesmo seria não precisar cantar o que canto. Sentir essa dor no peito”

E seus shows ganharam não apenas uma finíssima banda, mas um público mais heterogêneo e devotado. É ao vivo, arrisca o repórter, que se entende melhor os tantos holofotes sobre o rapaz. Ele tem real domínio do público e de sua voz. Sabe se colocar ao mesmo tempo como líder e como um mero membro de uma súbita congregação. Mesmo entre boleros, raps, afrobeats, covers de Nelson Ned, é difícil não pensar que paira sobre as mãos erguidas e as vozes em uníssono um ar de culto, de igreja. Criolo não assume, nem é besta de admitir, a presença e o pique de profeta. Mas, por conta de frequentes, e sinceros, arroubos metafísicos e hiperbólicos, o rajneesh do Grajaú ganhou entre os mais chegados o apelido de Criosho.

MC, intérprete, compositor, artista 24 horas de plantão... Papéis cada vez mais públicos que ele assume. Exceto um, que ocupou 12 anos de seu currículo: professor. Dando aulas de arte em escolas ou no delicado papel de arte-educador, em que tentava a difícil primeira abordagem a menores de rua. “Não gosto de falar sobre isso”, desvia, “não quero parecer que estou me promovendo em cima disso.” Mas foi essa vocação, sonhada desde criança e herdada de sua mãe, que parece ter um papel inevitável em sua poesia e sua visão do mundo. E o contraste radical entre o amparo, a educação e os valores que aprendeu em casa e a carência, o egoísmo e o descaso que testemunhou nas ruas é o que parece ter criado essa urgência que construiu o homem angustiado, o MC de verbo farto, o artista de que todos falam. E o entrevistado a seguir.

Você canta desde os 13 anos. São mais de 20 anos de carreira, um nome consolidado no rap nacional. Mas com o lançamento do Nó na orelha seu som chegou para muito mais gente. É estranho esse sucesso “súbito”?
Quando eu comecei com 12, 13 anos de idade, não pensei que alguém fosse me escutar. Eu sempre fiz tudo por amor ao rap e por uma vontade muito grande de contribuir. Eu cantava porque tinha necessidade de expressar uma dor que eu sentia, e ela perdura até hoje. Mas é totalmente diferente de uma pessoa que entrou nessa pra fazer sucesso. Tanto que, até pouco tempo antes do disco, eu me questionei se deveria continuar subindo no palco. Se minha construção de texto, de ideias, ainda iria evoluir. Se não tinha outras formas de contribuir. Porque o MC no palco é só a ponta de um iceberg. Foi nessa época de questionamento que nasceu o Nó na orelha. De um registro de um cara que iria deixar os palcos. Sem dor nenhuma, com o maior orgulho. Veio da vontade de amigos que ajudaram a criar uma situação para eu ir ao estúdio não deixar esse material passar batido. E a coisa foi virando, ganhando corpo. E agora estamos vivendo este momento tão legal, o reconhecimento, esses músicos maravilhosos que estão perto de mim. Mas legal mesmo seria eu não precisar cantar o que eu canto.

Arquivo Pessoal

Kleber aos dois aninhos, de chupeta, ao lado de seu irmão Clayton

Kleber aos dois aninhos, de chupeta, ao lado de seu irmão Clayton

Como assim?
Legal seria eu não sentir essa dor no peito. Eu faço música porque eu tô desesperado! Porque eu não me ponho à parte. Eu sou povo, sou do Grajaú. Tenho orgulho das pessoas que lutam por lá. Vou fazer 36 anos e vejo o quanto o mundo ainda está sofrido. Então só paro se alguém me matar. Porque eu sinto essa urgência de conversar com as pessoas. E eu acho que a música abre um diálogo. De certa forma, você não se sente só. Tem gente me escutando porque eu tô há 20 anos nessa. As pessoas vão esbarrando em mim. Um foi há dez anos, outro há 15 anos. Quando alguém fala que eu sou maravilhoso, ou me xinga, é porque estabeleceu um diálogo. É mágico isso! Não precisa glamorizar, inventar que estou fazendo sucesso agora.

Não é uma questão de glamour. mas quando esse diálogo ganha escala Deixa de ser tão pessoal.
Por um lado sim. Mas a mensagem passa e a gente cria uma ponte. Porque está todo mundo passando fome. Essa é a verdade. Estamos todos morrendo de fome. Seja de feijão com farinha, seja de amor. Por isso essa atenção toda, essas coisas que vêm acontecendo. Mais do que nunca hoje a arte é uma coisa buscada, valorizada. Porque o lúdico, a magia da comunicação, isso supre uma fome das pessoas.

Mas a exposição, foto no jornal, jornalistas te chamando de gênio... Você não acha esse hype meio perigoso?
Quando te elogiam demais você acaba arrumando inimigo sem saber. Peço desculpa a todos. Mas eu não estou em busca de elogios. Só faço música com o coração. Se um dia fizer outro disco vai ser com a mesma intensidade, com o mesmo amor que eu fiz esse. O que as pessoas falarem eu vou respeitar, é a opinião delas. Mas também não posso reclamar de uma pessoa que tá me mandando uma energia positiva. O irmão fez um elogio pra mim, ele tá emocionado, se identificou, muito obrigado! Receber um elogio, com tanta gente maravilhosa que tem feito música no Brasil, já é muita coisa.

Mas você sente seu ego sendo testado por conta disso?
O ego é o que mata o homem... Se cair nessa eu danço, porque a expectativa é do outro, então você vai sempre decepcionar. Se eu sou uma pessoa especial? Pro seu Cleon e pra dona Vilani, eu sou especial, porque sou filho deles. Mas quando subo no palco, as pessoas cantando junto, eu sei que cada um tem uma história e que poderia gastar seu tempo com qualquer outra coisa. Mas eles estão ali. Com essa vontade de estar junto. Então seria muita burrice achar que isso é por minha causa apenas. É uma multidão que faz tudo isso acontecer. Mas é claro que aí tem outro lado... Da superexposição, da supervalorização da arte. Porque lógico que já criaram um comércio disso. Óbvio. Os caras meteram cream cheese no temaki!

Cream cheese? No temaki?
Vamos fazer essa analogia bobinha. Meteram cream cheese no temaki, sabe o que isso significa? Que toda arte milenar que envolve esse prato, toda a cultura, a história dessas pessoas... não importa. Porque o que interessa é vender. Não tá ligado na tradição, na origem das coisas, não gostou do sabor? Mete cream cheese no bagulho. E assim vai indo tudo. E a gente consome. Esse é o risco quando massificam qualquer coisa. Quando essa informação da origem, da verdade das coisas não chega, em vez de bater em quem não recebeu a informação e consome, tem que questionar quem não deixou essa informação chegar.

Mas você corre esse risco cream cheese?
Todo mundo que tá se aproximando por enquanto vem porque se identifica. Eu não tenho poder de lobby, não tenho grana. Eu tenho uma carreira de 23 anos, sempre fui na contramão de holofote, na contramão de um caminho só para aparecer. Eu sei a minha origem. Lá no Grajaú ninguém vai perguntar de onde você veio, como você chegou lá. Se tá na hora do almoço, você vai almoçar. Se tiver frio, alguém vai dar um agasalho. Quando eu falo que “Não existe amor em SP”, é mais ou menos isso. O amor tá naquilo que as pessoas têm vergonha de ver, na delicadeza. Não na cidade, nas prioridades do sistema.

“Todo mundo está passando fome. Seja de feijão com farinha, seja de amor. Por isso a arte é tão valorizada”

Quais são essas prioridades?
O ser humano é a última coisa com que as pessoas se preocupam. Carros, celular, roupas sofisticadas. Isso tudo não é para os seres humanos, é pra alguém consumir e gerar grana, pra quem tem grana continuar com grana. Os seres humanos são meros detalhes nessa esteira. Eles devem amar aquela parte bíblica do crescei e multiplicai-vos. Porque, quanto mais gente, mais vão consumir.

Muita gente acredita que esses levantes no mundo todo acontecem porque as pessoas estão começando a perceber que esse sistema não está mais funcionando.
Acho que nunca funcionou. Aos poucos as pessoas vão acordando. A tecnologia ajuda nisso. As pessoas estão se comunicando. Os pensamentos comuns meio que acabam se encontrando no universo virtual, e isso tá fazendo coisas acontecerem. Um cara que sente uma coisa, aí ele lê um texto de uma pessoa que se identifica, faz uma conexão, e de repente tem uma rede de pessoas que se articulam e a coisa acontece. Mas, ao mesmo tempo, eu também acredito que tudo que está acontecendo é porque eles deixam. São válvulas de escape, tipo: “Vamos deixar eles acharem que podem protestar, só pra não ficar incomodando tanto, depois a gente retoma tudo como antes”.

Mas a diferença hoje em dia é que as coisas parecem estar saindo um pouco do controle, não?
Acho que não. Quem tem o poder tem o controle. E eles sabem que tem que existir uma ideia de esperança. Senão você é uma planta sem sol. O jovem sem esperança não tem força para trabalhar. Se você não trabalha, não mexe com a economia. Eles precisam de um cidadão minimamente pseudofeliz que continue consumindo.

Alexandre Orion, Pedro Inoue

pose alternativa para a capa

pose alternativa para a capa

Mas você não está simplificando, resumindo demais um inimigo? Quem são “eles”?
Eu sei que existem, mas eu nunca cheguei perto. O rosto não vai aparecer nunca. Vamos então pegar o nome de dez empresas que dominam o planeta financeiramente. Pode ser a própria ideia de corporação. Porque o ser humano nesse processo não existe. Só importa a corporação, o lucro. “Eles” é essa ideia. Essa fome, esse desespero, a loucura, a insanidade de nunca “tá bom”, nunca ser o suficiente. Gente gananciosa que vive em outro planeta. Eles não enxergam um ser humano, enxergam um consumidor e um trabalhador. Porque, se vissem seres humanos, Belo Monte jamais aconteceria.

Mas, falando em corporação, seu clipe foi uma parceria com a Nike, mostra os tênis etc.
Eu não estou à parte de tudo. Senão eu teria que andar vestido com uma saca de café e calçando garrafas PET. Eu fiz uma ação de marketing, mas não tenho contrato. Mas eu sei quem eu sou. Uma coisa é se deslumbrar, outra é criar mecanismos pra você trabalhar e sobreviver minimamente. Foram pessoas, seres humanos que se identificaram. E isso ajudou minimamente a pagar aluguel de equipamento. E é maravilhoso te falar isso porque quase ninguém iria saber. Todos os profissionais envolvidos cobraram um quarto do que esse clipe custaria. Foi pela vontade de participar, de colaborar para a mensagem passar para a frente. Mas a economia não vai mudar porque minha música está sendo mais escutada. Não tem jeito.

Escutando você, dá a impressão de que você não vê muita saída para o mundo.
A gente vive em um mundo em que pessoas morrem de frio, de fome na rua. Que desmatam o que resta de floresta. O planeta morrendo e de alguma maneira a gente não entra em pânico. O absurdo virou a regra e a sanidade, a exceção. Tanto que quando você vê um grupo ou uma pessoa fazendo algo em prol dos outros, sem esperar muito em troca, isso toca a gente de um jeito emocionante. E muitas vezes basta para você acreditar que alguma coisa tá mudando... Isso é uma desgraça emocional! E não é que eu não veja saída. Mas é que eu sinto que as pessoas são educadas para não pensar. Vou dar um exemplo. Quando falo que tem as oficinas abertas de xadrez no Grajaú, as pessoas ficam abismadas. “O quê?! Xadrez?!” Quando falo que tem um café filosófico no Grajaú, eles se assustam. Isso é uma agressão pra mim. É que no mundo deles eu não penso. Porque todo mundo, rico, pobre, não interessa... todo mundo foi educado para ser engrenagem.

E você sente que escapou disso?
Eu não leio muito. Li 3% do que minha mãe leu. Tenho dificuldade. Não sei tocar um instrumento musical, sou péssimo em matemática. Eu só tirava nota C. Não ia muito bem na escola, mas ia muito bem em me relacionar com as pessoas, meus amigos. Mas é que não conta relação humana no currículo. Eu aprendi em casa a importância disso. Tendo exemplos de sensibilidade, de muita solidariedade, de carinho com os outros. E aprendi assim a ver que a gente é mais do que o que está posto pela sociedade.

E isso não é levado em consideração na escola?
Dentro das escolas públicas, por exemplo, nós temos professores maravilhosos. Pessoas comprometidas, sensíveis, que lutam pra caramba por amor ao ensino. Mas aí vem o governo de São Paulo e tira filosofia do currículo, por exemplo. Depois como você quer cobrar sensibilidade das pessoas se você não a oferece? É triste... Mas, se você pensar, a escola só deixou de ser coisa de elite e se tornou pública com a revolução industrial, pra formar operário. Mas vai além disso. É importante a gente falar de escola? É claro que sim! Mas é muita inocência a gente falar de escola num país onde até a saúde é comércio. Se a sociedade não tem sensibilidade nem para lidar com a saúde, vai ter para tratar de educação?

Você também tem uma história como educador. Como foi essa experiência?
Dura, muito dura. Eu trabalhei com criança e adolescente por 12 anos. Uma coisa é você saber das coisas que acontecem, outra coisa é você estar lá. Porque minha função muitas vezes não era dar uma aula, ensinar. Era na rua mesmo, fazer a primeira abordagem, criar um vínculo. Abrir um diálogo. Mas eu nem gosto de falar sobre isso, não acho legal.

Por que, deixa você triste?
Não é isso. Mas eu respeito tanto esses professores compromissados, os arte-educadores, esses heróis que fazem a abordagem na rua, que eu omito minha história para não parecer que estou usando isso de alguma forma, que uso esse personagem para divulgar meu trampo. Eu não acho que as pessoas precisam saber disso pra julgar minha música, minha mensagem.

Mas a gente não está falando da sua música apenas. Você mesmo diz que o palco, o disco, são a ponta de um iceberg. Não é importante falar da sua história, das coisas que você aprendeu?
Certo... isso veio dessa vontade que aprendi com minha mãe, dessa sede de aprender e ajudar os outros. Desde criança eu passava na frente de escola e ficava imaginando que um dia eu queria dar aula ali... Um dia eu tornei esse sonho realidade e virei arte-educador. Trabalhei com ONGs, em projetos da prefeitura. O trabalho era abordar as crianças, os adolescentes, criar uma relação para poder perguntar se o moleque precisa tomar um banho... comer... se quer uma muda de roupa. Sem ofender, descobrir se ele sabe onde está sua família. E acompanhar. Descobrir o porquê de aquela criança estar na rua. Se a família tem estrutura para receber essa criança de volta. Muitas vezes não tem... Não é um trabalho fácil. Por isso não gosto de falar, entende?

Algo bem mais básico do que simplesmente ensinar.
Por isso digo que educação é, antes de mais nada, um ato de amor. Abrir um vínculo, minimamente, de um modo que não incomode, porque a rua é a casa dele. Você que é o de fora. Precisa de muita coragem para se dar conta de que você está na frente de um indivíduo, que ele está vivo. Para viver essa ilusão de achar que está colaborando de alguma forma, aceitar o desfecho de um caso, a realidade das coisas básicas da vida... E, com sorte, encaminhar essa pessoa para... eita, meu Deus... esse mundo que está posto. Esse mundo que pensa que prendendo ou batendo na cara de um menino de rua vai resolver o problema de armas e drogas no Brasil. Eu falo isso com dor no coração. Muita gente vai falar que sou pessimista, ranzinza. Mas também posso falar de zilhões de pessoas que estão na luta pra tentar mudar isso, e não querem holofote. Fazem a mudança é dentro de casa.

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Arquivo Pessoal

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Dona Vilani e seu filho Kléber

Escola Maternal
Escritora, filósofa e mãe. Dona Vilani explica por que a lição mais importante de todas é o amor ao conhecimento

Esta entrevista poderia correr por horas. E correu, de fato, entre a hora do almoço e um jogo da seleção brasileira. Mas, quanto mais Criolo falava sobre educação, mais ficava claro que para entender sua real relação com o tema da presente revista o lugar adequado não era o agradável bar do Biu, em Pinheiros, onde esticamos o almoço. O certo era o Grajaú. Mais especificamente na salinha da escola estadual onde trabalha dona Vilani. Professora, filósofa, escritora – e mãe de cinco. Incluso nosso Kleber.

O verbo de dona Vilani é quase a antítese do filho. Calmo, construído em um discurso tão equilibrado e coerente que sai como um texto. Exala a paciência típica das tutoras de vocação que, no caso dela, beira a virtuose. Didática, em palavras e exemplos, a história e a rotina dela jogam luz sobre alguns dos mais reais, óbvios e ainda assim ocultos problemas da educação nacional. Faz elogios à escola pública, que formou não só ela, mas toda a prole. Dois, além de Criolo, se tornaram professores. Pensa sobre o descaso dos pais, e do país, na hora pensar a educação. “É muito fácil jogar a culpa na escola”, ela diz, “mas ninguém quer ensinar que o conhecimento não serve para ganhar dinheiro. Serve para nos tornar humanos.”

“É um trabalho que dura a vida toda. Precisamos entender que estamos em constante formação. Para educar o outro, temos que educar a nós mesmos.” E educar a si mesmo é algo que dona Vilani tem autoridade para falar. Desde sua autoalfabetização, ela nunca mais parou. Nem de estudar nem de dividir conhecimento. Primeiro com os filhos, depois com a comunidade. Organiza saraus de poesia, um café filosófico, já abriu a sala de casa para um cursinho pré-vestibular voluntário, completou o ensino médio com o filho Kleber, formou-se em filosofia, virou professora e hoje segue na escola atendendo alunos. Depois de anos na lousa, voltou ao básico para ajudar crianças e jovens em dificuldade. Hoje, para ensinar, ela escuta. E, para a Trip, ela fala.

Arquivo Pessoal

Criolinho recebendo seu primeiro diploma

Criolinho recebendo seu primeiro diploma

Qual o seu papel aqui na escola?
Dona Vilani: Trabalho como professora pública há mais de 18 anos. Em 2005 passei a ter dificuldade pra escrever. Descobri que estava com uma doença chamada distonia. O médico disse que eu deveria me retirar da sala de aula, porque eu não poderia mais escrever na lousa. Eu entrei em pânico! O que eu ia fazer da minha vida? Aí me ocorreu uma coisa. Eu estava estudando para especialização em filosofia clínica, que é a filosofia adaptada à psicoterapia. Então resolvi fazer um projeto, aqui na escola, pra não ficar longe do aluno, que tem o objetivo de ouvir o aluno e tentar entendê-lo como parte do processo educativo. Tem gente que cria passarinho, cuida de samambaias… eu gosto de gente. De entrar na subjetividade de cada um, tentar entender cada ser como ele é.

Explique melhor.
Eu observei ao longo da minha vida que o professor briga com o aluno, manda pro coordenador, que briga com o aluno e chama o pai, que por sua vez briga com o aluno. Nesse processo é muito difícil alguém escutar e entender o problema do aluno. E não é que as pessoas não querem ouvir, elas não têm tempo. Aí pensei: por que eu não faço isso? No começo eu via os alunos que estavam com dificuldade de aprendizagem, ia de sala em sala chamando um por um para conversar. Hoje os alunos já me procuram sozinhos, eles querem ser ouvidos.

Qual você acha que é o principal problema deles?
O grande problema é incompreensão na família. Justamente por essa questão de não serem ouvidos. Semana passada, por exemplo, eu deixei o pai com o filho na minha sala e falei: “Vocês precisam conversar”. Quando voltei o pai chorava copiosamente, e eles estavam abraçados. Isso é uma vitória enorme. Veja, minha experiência é periferia, morei a vida inteira aqui. A luta pela sobrevivência engole as pessoas. As pessoas priorizam mesmo trazer o feijão pra casa. E felizes os filhos que têm os pais que batalham pelo feijão, porque muitos infelizmente nem isso têm. É um distanciamento daquilo que é ser família, essa coisa humana, da compreensão, da aceitação do outro, do diálogo. Meu trabalho hoje é promover isso.

É um papel que não é tradicionalmente da escola.
Os professores me chamam de psicóloga, mas sou uma professora que gosta de escutar. Eu não tenho essa preocupação com a cura, diagnóstico. A gente está quebrando umas barreiras. É um trabalho muito simples, de descobrir onde o problema está, buscar ajudar como posso, e colocar aquela criança, aquela família, em uma condição melhor. Não financeira, mas emocional. Isso está na base da educação. É muito gostoso, e um pouquinho cansativo às vezes. Quando você escuta a dor do outro, acaba carregando um pouco dela. Imagina uma criança dizendo que nem o pai a quer. Nem a mãe, nem a tia, nem a avó... sO que eu posso dizer a ela? Às vezes dói.

Então conta um pouco como foi a sua própria educação.
Ih, meu filho. Você tem tempo? [Risos.] Assim... logo cedo minha mãe foi embora de casa. Então ficaram eu, meu irmão e meu pai. Meu pai era um homem trabalhador, cheio de talentos. Mas quando ele faleceu eu tinha 8 anos. E fui morar com a esposa do meu irmão mais velho. Até tentaram me matricular no grupo escolar, mas ela tinha um filho todo ano. E quem cuidava das crianças era eu. Não dava pra estudar. Então tive que me alfabetizar sozinha.

“O conhecimento serve para nos tornar mais humanos. É simples ”

Como foi isso?
Meu pai, antes de morrer, me ensinou a escrever o meu nome. E ele sempre me punha no colo e lia muitas histórias pra mim. Isso abriu meu interesse pela leitura. Aí, um dia, escutei um poema do Manuel Bandeira. Era a coisa mais linda! Aquele dia eu me apaixonei e não teve volta. Depois que eu cuidava das crianças, me trancava pra ler. Naquele tempo a carne vinha embrulhada em jornal do dia anterior. Eu vinha correndo do açougue pra não passar o sangue da carne pro jornal. Pegava o meu nome e ficava tirando as letras do jornal, fazia uma salada. E aprendi. Casei, vim embora pra São Paulo, tive quatro filhos, adotei mais um. Aí, quando fui colocar o Kleber no ensino médio, acabei me matriculando também. Fizemos os três anos juntos. Foi uma fase muito boa da vida. Virei uma atração na escola pela minha idade. Eu chamava o pessoal pra vir para minha casa no fim de semana pra estudar. Escrevi uma peça, meus filhos todos faziam parte do elenco. No segundo ano escrevi um livro como trabalho de arte. O pessoal me incentivou, acabei publicando. Era uma emoção estar sentada num banco escolar, tanto que até hoje não consegui sair da escola.

Foi quando decidiu ser professora?
Eu sempre fui apaixonada pelo conhecimento. E de certa forma sempre tive esse papel, mesmo em casa. E, se eu não tinha conteúdo para ajudar meus filhos, então eu tinha que buscar. E eu fiz isso por amor ao conhecimento e por amor aos meus filhos. Eu via no bairro como se comportavam as famílias, as crianças, a forma de falar, o linguajar. Não generalizando, mas havia certa grosseria no falar. Palavras que me desagradavam. Eu não queria isso pra eles. Mas depois do ensino médio, quando tive uma oportunidade, fui fazer filosofia. Aí me tornei professora da rede pública e nunca mais saí.

E qual a avaliação da senhora sobre a escola pública?
A escola pública tem professores maravilhosos. Eu saí da escola pública, meu filho que é professor saiu da escola pública, o Kleber saiu da escola pública, todos os meus filhos. O que acontece que escola pública é tão malfalada? Eu percebo que falta uma integração maior entre a escola e a família. A diretora faz convocação para uma reunião de pais, os pais chegam já querendo ir embora. Eles não querem ouvir sobre o filho.

A que você atribui essa distância?
Os pais do aluno da escola pública, não generalizando, precisam lutar mais pela sobrevivência. Claro que desgasta muito. Mas isso não justifica apenas... Porque nas escolas particulares também tem esse problema. As pessoas estão sempre correndo atrás de algo a mais. Eu tive uma senhora maravilhosa que cuidou de mim na infância. Ela era analfabeta, mas dizia assim: “O ser humano é uma vasilha que nunca enche”. Mais tarde no curso de psicanálise na USP entendi isso melhor com Freud [risos]. Ninguém mais lê em família ou se interessa pelo que cada um pensa. As famílias têm que pensar que feijão e arroz é muito bom, mas existem outras formas de alimentar. Nossa psique, emoções, tudo isso precisa ser alimentado. É isso que os pais precisam pensar. Não adianta jogar a responsabilidade toda na escola, sabe?

Você, que criou seus filhos e continuou educando adolescentes, sente que há uma diferença grande entre essas gerações?
Bastante. Eu acho que o professor, bem ou mal, era uma referência, os pais eram uma referência de conhecimento. Ainda se valorizava o mestre. Hoje é tudo instantâneo. Você liga o computador e não precisa de mestre para nenhuma pesquisa. Não há mais aquela preocupação de buscar diretrizes. Pela imaturidade intelectual do aluno, ele acha que não precisa dessa orientação.

E a escola está dando conta dessa transformação tão rápida?
Exigir da escola é demais. Toda sociedade deveria pensar nesse acolhimento. E não pode ser com palavras, tem que ser com ações. O grupo de que faço parte se reúne, todo primeiro sábado do mês, no café filosófico. É aberto pra todas as idades, alunos, donas de casa, pais de família. No outro sábado a gente se reúne para falar de questões do meio ambiente, refletindo qual o papel daquela comunidade no meio em que ela vive. No mesmo sábado tem o recital de poesia. É pouco, mas estamos dando exemplo. Pense você. Quantos filhos veem os pais estudando? Para muitas pessoas é perda de tempo.

Fomos educados assim?
Foi colocado implicitamente que o conhecimento é para você ganhar dinheiro. Aí o aluno estuda, estuda e não ganha dinheiro. Aí vem a frustração. Quantos caminhos tortuosos essa molecada vai seguir, exatamente por isso, por não poder comprar necessidades criadas, incentivadas pela televisão? É muito triste ser frustrado, imagina pra uma criança.

E para que serve, então, conhecimento?
Eu digo aos alunos que nós fomos programados para o conhecimento, pois somos dotados de razão. O objetivo do conhecimento é nos humanizar. Desde o jardim de infância tem de avisar o aluno que ele tem de estudar para se tornar gente. Aí está o X da questão. Quem busca o conhecimento se torna mais humano. Aquele que não busca se embrutece. É muito simples.

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Pedro Inoue

Orion faz o logo da Trip

Orion faz o logo da Trip

O homem da capa

Para ajudar a conceber a arte de uma de nossas capas do mês, não havia nome melhor do que Alexandre Orion. Conhecido por seus stencils, e pela forma como as imagens que cria nas paredes dialogam com a realidade, produzindo cenas inesperadas, ele próprio tem uma relação com o Grajaú.

Mauro Neri, colaborador e assistente em seu trabalho artístico, cresceu no bairro e havia sido aluno tanto de dona Vilani como de Criolo, nos tempos em que o cantor era professor de arte. Orion e Criolo tinham muitos amigos em comum no lugar. Mas ainda não se conheciam.

Quando se encontraram, finalmente, para um almoço, elaboraram juntos a ideia do ônibus escolar que abre esta entrevista, e do carrinho de mão cheio de livros que virou capa e pôster que acompanham esta edição.

A ideia de Criolo e Orion era apresentar a educação no Brasil como uma construção em andamento – e ele, Criolo, como um operário apenas nesse processo. Os grafites foram feitos todos no Grajaú.

Zé Celso

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Aos 74 anos de uma vida dedicada à libertação artística e sexual, José Celso Martinez Corrêa, um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro, faz seu manifesto a favor da diversidade: “A sexualidade é um mistério tão grande. O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da homossexualidade. Não acredito na identidade, mas na mistura”

“Eu não acredito em gueto gay, gueto negro, gueto disso, gueto daquilo. Não acredito em ‘clube do bolinha’, em ‘cada macaco no seu galho’, em ‘não me toque’. A natureza é diversa, mas ao lado da diversidade tem a antropofagia, as coisas e os seres se entredevoram.”

José Celso Martinez Corrêa, daqui pra frente somente Zé Celso, sempre diz algo diverso. Nos últimos 50 anos, durante os quais ocupou papel central na cultura brasileira, incluído um período de mais de dez anos de “ócio criativo”, o criador, diretor, ator, autor e força motriz do Teatro Oficina, de São Paulo, vai sempre além do lugar-comum, do discurso do momento, daquilo que queremos ou não queremos ouvir.

Não seria diferente em relação ao tema que move esta edição: “Vejo a diversidade como algo que te devora. Sou contra a divisão, a afirmação de uma identidade. Não acredito em identidade brasileira, mas na mistura. Como diz João Gilberto, ‘o brasileiro não tem personalidade, ele não precisa.’”

107 facadas

A primeira entrevista da minha vida foi com o Zé Celso, há mais de 20 anos, ainda no tempo da faculdade. Queria conhecer o artista que revolucionou os palcos brasileiros com espetáculos como O rei da vela (1967) e Roda viva (1968), com música de Chico Buarque. E entender por que aquele que era considerado por boa parte de seus pares (diretores, atores, atrizes, até mesmo críticos) “o maior diretor de teatro brasileiro” estava sumido, fora de cena desde meados da década de 70, quando, após ser preso e torturado por agentes do regime militar, foi para o exílio.

Aos que duvidavam que ele voltaria para retomar seu papel de destaque na cena cultural do país, avisou com todas as letras: “Eu vou voltar, o Oficina vai voltar”. O retorno definitivo foi detonado por um crime hediondo. No Natal de 1987, seu irmão Luiz Antônio Martinez Corrêa, também diretor e ator, foi assassinado a facadas em seu apartamento num ataque homofóbico.

Luiz Antônio estava em cartaz com o monólogo O ébrio e, após sua morte, Zé Celso assumiu o papel. Poucos meses depois, em entrevista ao programa Roda viva, decretou: “Não, nunca... Eu não quero nunca mais sair de cena... Quero atuar, dirigir, tudo, agora eu vou numa outra viagem”.

E que viagem. Nas últimas duas décadas, foi o mais fecundo homem de teatro brasileiro, com montagens históricas como As bacantes (1996), Cacilda! (1998) e a adaptação para o palco da obra monumental de Euclides da Cunha, Os sertões (a partir de 2001).

No segundo tête-à-tête de minha vida com Zé Celso, ele se manifesta favorável a uma lei que criminalize a homofobia, mas não só. “Sou a favor de uma lei contra todos os crimes fóbicos. Meu irmão foi assassinado com 107 facadas. Sete facadas matam um homem, para que outras cem? O que o cara quer matar ao apunhalar um cadáver sem parar? Uma coisa que não consegue matar nele mesmo, fugir de seu próprio Eros. Precisa passar por um processo de terapia sexual tântrica.”

Embora não sejam mais amantes, Zé Celso vive há quase 25 anos com Marcelo Drummond, protagonista de muitas de suas peças. “Temos dois apartamentos unidos, eu vivo numa ponta e ele na outra, com o namorado dele. Somos parceiros de trabalho e de vida há quase 25 anos. Admito que laços como esses devam ser sancionados por uma lei, mas eu não me casaria.”

Ao falar sobre sexualidade, afasta rótulos: “Acredito que ela é um mistério tão grande. O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da 
homossexualidade. Sou um homem sexual”.

Sem se rifar

Em 25 de novembro, estreia o documentário Evoé, em que o diretor Tadeu Jungle leva Zé Celso para visitar três lugares seminais de seu universo humano e artístico: a Grécia, onde surgiu o teatro orgiástico até hoje realizado pelo Oficina; Canudos, palco da revolta de Antônio Conselheiro narrada em Os sertões; e a praia de Coruripe, em Alagoas, onde em 1556 os índios caetés devoraram o primeiro bispo do Brasil, dom Pedro Fernandes Sardinha. O documentário também traz entrevistas e imagens históricas dos mais de 50 anos de carreira de Zé Celso.

“O Zé fez tudo o que quis?”, pergunta o repórter a Tadeu. “É a única pessoa que eu conheço que só fez o que ele queria. Não rifou nem a alma nem o corpo. Foi muito difícil, mas, movido pelo desejo e pela intuição, ele conquistou muita coisa. Ele carrega essa medalha com a persistência de um guerreiro.”

"Não posso mais tomar alucinógeno porque sou cardíaco. Só posso fumar maconha e tomar vinho"

[Zé Celso chega ao Oficina para a entrevista já avisando: “Antes de tudo eu preciso fumar um baseado para ficar lúcido”.]

Gabriel Rinaldi

Zé Celso

Zé Celso

Ficar lúcido? Claro, o estado mais lúcido é o de transe... Não posso mais tomar alucinógeno, porque é vasoconstritor e eu sou cardíaco. Só posso fumar maconha e tomar vinho, porque ambos abrem as artérias. O momento de mais lucidez minha, de preparação, é queimar um baseado e tomar um banho. Aí vêm as melhores sacações. Só acordo depois que fumo um 
baseado e tomo guaraná em pó. Tum! Pluguei, tô no ar! Antes eu não estava, quando cheguei aqui.

Por quê? Estava chapado, desligado...Esta santa erva, que chamam de Santa Maria, ela faz isso muito rapidamente. Você pode fazer isso simplesmente respirando, meditando. Mas a maconha acelera a lucidez...

Então não há antagonismo entre lucidez e drogas? Não, esse é o conceito de lucidez da velha sociedade positivista, cartesiana, lógica, que acredita numa organização do mundo em torno de um princípio. Eu não acredito em nada disso. Não é o cartesiano, penso logo existo. É existo, logo estou, estou! Antigamente os antropólogos chegavam às tribos, viam tudo de fora e não entendiam nada. Quando passaram a tomar a ayahuasca, as poções mágicas, compreenderam um outro tipo de lucidez, que é a lucidez do pensamento selvagem, que o Lévi-Strauss disse que é a única coisa universal. E o teatro é um ritual arcaico. Eu me lembro nos anos 60 quando a gente começou a fazer as peças viajando de ácido, de cogumelo, a plateia toda embarcava! Dava pra perceber no ar as partículas lisérgicas.

O ser humano tem necessidade de perder o controle? Eu não perco o controle. É como um computador... Eu fico muito mais, digamos, no meu estado pré-lógico, tenho uma lógica muito maior que no meu estado careta. Reflito mais, crio mais, organizo, faço as ligações das coisas. O descontrole é você permanecer careta. É perigoso! Você careta está atrás de uma máscara, está sendo manipulado, obrigado a ficar sujeito àquele papel que tem na sociedade. O que houve na cultura no Brasil até os anos 60, com exceção dos anos 20 do século passado, é que estava tudo programado. Nos anos 60 houve uma desprogramação. Houve de repente uma percepção do aqui e agora, em 1968... Em 67, quando da montagem de O rei da vela, pela primeira vez os conceitos de Oswald de Andrade viraram carne. Ao mesmo tempo no cinema acontecia o Terra em transe; nas artes plásticas o Hélio Oiticica tirava da parede o quadro, vestia no corpo e dançava; o Caetano compunha “Tropicália”; o Gil usava guitarra elétrica; o Plínio Marcos falava palavrões... Essa sincronia que houve em 67 no Brasil antecedeu em certo sentido o que viria a explodir em 68, na França. Quando fomos para lá com O rei da vela, já em 68, não tinha legendas em francês e o público ria e chorava do começo ao fim. Passava uma coisa que ninguém conseguia explicar. Uma sintonia com um retorno ao paganismo. Por que eu não posso ocupar isso? É meu! Que piração é essa de ficar esperando sei lá o quê? Nós tivemos uma sorte enorme de ter acontecido isso. Foi uma terra em transe que fez isso como lava de vulcão, pôs pra fora essa geração, que foi massacrada nos sanatórios, lobotomizada, cortaram a ligação com o cérebro arcaico, com o cérebro frontal, pra pessoa não sonhar, não viajar, ficar desligada.

O ex-presidente Fernando Henrique está levantando a questão da descriminalização da maconha... Mas ele tem um lado extremamente absurdo, que é o de legalizar o usuário e punir o traficante. Se a maconha é legal, então é um comércio como outro qualquer. É uma coisa de Clinton, de fumou e não tragou... Eu acho pouco. Muita hipocrisia. Mas é legal ele falar, deixa ele falar! E pra ele é muito bom queimar uns baseados, está numa idade boa pra isso. Se os velhos fumassem, seriam tão mais felizes. Reativa a memória...

Reativa?! Todo mundo diz o contrário...Imagina! Reativa a memória mais proustiana, o cérebro arcaico, pré-lógico, ela (des)civiliza. Porque a civilização recalca a memória, faz você selecionar a memória e fazer uma imagem de si extremamente construída. E a maconha desconstrói tudo. Você entra de novo em contato com o cosmos, em estado quase de inocência, de virgindade. E redescobre tudo. Eu quero propor uma lei que seria muito sensata. Quero propor não somente a descriminalização como a produção e a comercialização, e o imposto viria para a área cultural. Sou a favor do plantio de uma maconha de alta qualidade, sem noia, sem amônia, sem aquela carga toda que ela carrega hoje. Tudo supervisionado pelos ministérios da Saúde e da Cultura. A única coisa que estimula a violência é a proibição, só isso, mais nada! Se você proíbe sabonete, ai você vai ver, vai surgir criminoso atrás do sabonete.

E essa crise do crack, que vicia logo de cara... Parece que a cura é a maconha, junto com outras coisas pode recuperar muito. E o teatro, a arte. Porque a arte é mais excitante que o crime. Talvez essas pessoas sejam as mais próximas da arte, as mais desesperadas, que não encontram mesmo lugar neste mundo. Você trabalhar com arte no sentido radical é uma coisa que pira. Precisamos colocar essas pessoas em espaços onde elas possam criar, colocar pra fora suas angústias. Que recebam cultura de vida. O que motiva você? O maior motivo de tudo é sempre o tesão. A gente tem uma tendência ao outro, uma tendência a procriar também... Sejam filhos carnais ou objetos, obras de arte, que são como filhos... Esse teatro, é como se eu fosse o bisavô dele. O padre Vieira disse uma frase muito bonita: “Só existimos quando fazemos. Quando não fazemos, somente duramos”.

"As diversidades se atraem. Eu não gosto de uma pessoa igual a mim. O Oswald tem uma frase bonita: ‘só me interessa o que não é meu’"

Esta edição tem como tema a diversidade. Isso sempre esteve no seu vocabulário ou está meio na moda? 
A diversidade existe na natureza, e, ao lado da diversidade, existe a antropofagia. As coisas se entredevoram. Isso é fatal. Não fui eu, nem Oswald de Andrade, nem os índios que inventamos. Eles estavam mais próximos do contato com a natureza para perceber isso... Não acredito em divisões, em guetos. Pelo contrário, as diversidades se atraem. Eu não gosto de uma pessoa exatamente igual a mim. O Oswald tem uma frase muito bonita: “Só me interessa o que não é meu”. Você procura sempre o outro. A diversidade é um grande estímulo para a antropofagia, para a devoração, para comer e ser comido.

A diversidade está presente em seu trabalho? De que maneira? O teatro vai ao encontro de todas as identidades, aliás, de todas as (des)identidades... porque eu não acredito em identidade. A primeira coisa que eu trabalho é que o ator tem que rebolar. Rebolar é importantíssimo, vem da África, onde tem influência muçulmana, a dança do ventre. O corpo tem que se desocidentalizar. A cabeça ocidental não é diversa, ela acredita num deus único, no estado, no pai, no chefe, é uma sociedade edipiana. Acredita que tem uma verdade, não existe verdade, existe a vida como ela é, com as mil multiplicidades de formas de vida que existem. A gente trabalha com criança de rua, elas são muito inteligentes. Quando viajamos, aprendemos pra caralho com elas. No Rio trazem o funk, aquele funk que arrasa, na Bahia, o axé, em Pernambuco, o frevo e o mangue beat, no Ceará, o forró. A gente aprende com criança, bicho, planta, pedra. Com artistas jovens e mais antigos, gente pobre, gente rica, brancos, negros, indígenas, estrangeiros.

Gabriel Rinaldi

Zé Celso

Zé Celso

Com que idade você percebeu sua diversidade sexual? Eu gostava muito de brincar de barro no quintal de casa, em Araraquara [interior de São Paulo], que era enorme. E brincava com toda a molecada... Na rua de trás era a zona. Minha mãe era muito moralista e tentava fazer um cordão de isolamento, mas tínhamos uma atração enorme pela zona. Tinha uma puta chamada Dora, que fumava pela boceta. À noite eu ficava ouvindo o cabaré das putas, chamava Majestique, achava que era palavrão, tocava uns sambas, uma jazz band, eu ficava acordado. Uma vez fugi, uma puta me encontrou e me levou pra casa, chamava Bentinha. Levei uma surra enorme.

Você foi reprimido? Muito, mas nunca me deixei reprimir. Sempre fui muito ruim, rebelde, desobediente. Minha mãe tinha formação espanhola, de bater, tudo... Meu avô era franquista. Um homem que eu adorava, mas tinha aquela linha espanhola de inquisição, castigo, ajoelhar no milho, proibir de ir ao cinema.

E seu pai? Meu pai era maravilhoso. Quieto, um silêncio...

Não era repressor? Nada, nada. Era um homem muito bonito, elegante. No casamento vestiu um terno bois de rose, uma cor que o Clark Gable usava num filme. Ele ia muito ao cinema, tinha uma filmadora 16 mm. Tinha uma biblioteca, em casa tinha obras de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Tchecov, Goethe, Euclides... Uma das pimeiras edições de Os sertões. Meu avô paterno também era espanhol, mas era hippie total, tocava guitarra. Minha avó era índia, doidona, minha bisavó andava a cavalo de pé no lombo do bicho, depois pirou, ficava dando cambalhotas com 90 anos, doida. Da minha mãe tinha esse lado espanhol, italiano, cristão. Tomei partido do lado do meu pai. Mas minha geração teve um problema muito grave, teve que matar a família no sentido de matar os personagens, pai, mãe, irmã, avô, aquilo tolhia muito. A família era um microestado, com papéis definidérrimos, se você não matasse... Eu comecei como artista quando perdi um papagaio, sentei na máquina e escrevi Vento forte pra papagaio subir, minha primeira peça, sobre essa necessidade de ir embora, deixar a terra natal...

"A sexualidade é uma coisa absolutamente desconhecida porque a igreja cometeu um dos maiores pecados do mundo ao criminalizar o sexo"

Eu ia perguntar isso. Essa foi a primeira coisa que você escreveu? Escrevia antes, mas nada que prestasse, coisas que não passavam por mim. Aí eu vi o filme Um bonde chamado Desejo. Até então achava que as pessoas não tinham “por dentro”, que só eu tinha subjetividade. E as pessoas eram de papelão. Quando vi a Vivien Leigh, o Marlon Brando... foi o Elia Kazan [diretor do filme] quem me revelou a intersubjetividade.

Que idade você tinha? Ah... eu devia ter uns, não sei exatamente... uns 13... Fui a uma sessão no Ipiranga [bairro de São Paulo], eu morava em Araraquara, mas vinha passar férias na casa do meu avô, bem aqui em frente. Sou meio Kant, vivi nesse lugar eternamente. Saí pra todos os lados, mas meu negócio é aqui. Uma coisa que eu quero dizer, para não perder o roteiro dos meus 74 anos, 53 de teatro, é que quero construir aqui na Bela Vista, no Bexiga, um espaço arquitetônico e urbanístico que a gente chama de Anhangabaú da Felicidade, porque vai ser construído no terreno do Silvio Santos. Vai ter um teatro-estádio, o estádio Oswald de Andrade, uma universidade 
antropófoga, a primeira turma já está cursando. Vai ter creche, uma oficina de florestas para reflorestar o bairro. Revitalizar o Bixiga como aconteceu na Lapa, no Rio, que hoje é um paraíso infernal maravilhoso, porque lá foi cultivado o Circo Voador, a Fundição Progresso, o samba, o choro. O Bexiga pode tornar a ser, ligando-se à Augusta e à praça Roosevelt, um centro de mistura total, esse é meu superobjetivo agora.

Qual é o papel da orgia no seu teatro? A orgia está na origem do teatro grego. O encontro no teatro é orgiástico porque tem os atores, o público, você está vivo, tem aquele tesão, aquela eletricidade, sente as pessoas. O ser humano tem que se conhecer mais cedo ou mais tarde. A sexualidade é uma coisa absolutamente desconhecida porque a Igreja cometeu um dos maiores pecados do mundo ao criminalizar o sexo, de onde a gente vem. Nietzsche tem razão, o cristianismo é das coisas mais degradadoras da condição humana. O que o cristão chama de alma pra mim é Eros. A alma erótica, quando fica com tesão, que vibra, é a mesma vibração da criação estética. Você fica tomado por aquilo e atinge um estado... As maiores inspirações vêm do sexo transformado em Eros. Sexo platônico, que erradamente os monges da Idade Média traduziram como sendo o amor sem físico, sem corpo. Mas não existe corpo sem alma, alma sem corpo. Eu fiz O banquete, de Platão, aqui... Há séculos sou atormentado pela pergunta: “Por que você usa a nudez em cena?”. Eu acho que é o figurino mais bonito que existe, é muito difícil atuar nu. “Ah, você quer tirar a roupa?” Isso não quer dizer nada. É outra coisa. O culto ao corpo. O corpo que tem que estar preparado pra ficar nu.

Você é a favor de uma lei que criminalize a homofobia? Sim, porque qualquer fobia, se for assassina, o cara tem que ser tirado e cuidado. Tem que fazer ele cair na real. Ele está fugindo do Eros dele. Todo homofóbico é uma bicha enrustida. Meu irmão foi assassinado com 107 facadas. Sete facadas matam um homem. Para que as outras? O que um cara está querendo matar ao apunhalar um cadáver? Está querendo matar algo que está nele e que ele não pode matar. Devia ter uma lei, sim, contra todos os crimes fóbicos. Porque tem homofobia, negrofobia, tem oficinafobia, tem zé-celsofobia. Recebi muita ameaça de morte e não só porque sou gay. Deve ser por outras coisas. Fui torturado [durante a ditadura militar] e até hoje não sei por quê.

Há preconceito na forma como a imprensa trata a homessexualidade? A imprensa trata com preconceito tudo, no sentido de vender para a classe média, porque há uma ditadura da classe média. No teatro, 90% das peças são para a classe média, já que é o público que paga, que vai ao teatro, então só faz para aquela classe. É disso que a gente procura fugir. A gente procura inclusive no elenco ser transracial, transcultural, procura levar outra cultura, da tragédia e da comédia, porque o drama é para a classe média. Odeio drama. No Brasil não tem imprensa marrom. Sou a favor da imprensa marrom. O sucesso de Os sertões na Alemanha foi por causa da imprensa marrom, que publicava artigos contra nós, mostrando a gente pelado, cheio de tarja no pau, na boceta. Pelo menos a imprensa marrom fala, aqui é só essa exaltação da burguesia. O problema não é a homofobia. Nós recebemos essa subvenção da Petrobras, sempre com muita dificuldade, muita demora. Aí sai uma coluna social falando de ajudazinha número um, ajudazinha número dois, como se fosse corrupção o dinheiro da Petrobras ser investido num teatro que tem 50 anos. Uma boa parte dos jornalistas, esses eu trato a pontapés, faz perguntas para fazer escândalo. Eu sou a favor do escândalo, mas não é o escândalo que eu quero fazer. O que eu quero fazer, que é subversivo, não sai.

"Todo homofóbico é uma bicha enrustida"

Você é ciumento? Fui, não sou mais. Pelo contrário, sou instigantemente provocativo para que aconteçam coisas. Incentivo que as pessoas namorem no teatro, à vontade.

E você é ciumento do seu teatro? Não, mas eu gosto dele, defendo ele.

Dos atores e das atrizes? Não. Eu trabalho a liberdade absoluta entre as pessoas. O Oficina Uzyna Uzona é uma organização onde tem muita coisa que eu nem sei que está acontecendo. Felizmente a gente conseguiu uma auto-organização... Dou muita importância ao autocoroamento, como Napoleão fez, as bacantes fazem. A pessoa sabe de si. O mais importante para o ator de teatro é ser um anarquista coroado. Ele é um louco que se coroa, assume. Porque no teatro a entrega é total, como no amor. Tenho a tendência de exigir que as pessoas tenham a mesma entrega, mas não posso exigir nada. Trabalho para que isso aconteça. Incentivo pessoas que tenham um mínimo de autodeterminação a desenvolver seu máximo potencial humano. A maior função do teatro é desenvolver a consciência do poderio energético que o indivíduo tem. Claro, o indivíduo plugado na coletividade. Só o cara que é plugado no coletivo e no mundo tem o poder de enfrentar essa lavagem cerebral da cultura dominante, da anticultura, da contracultura. Eu não sou contracultura, sou a favor da cultura. A contracultura é a que minimiza o potencial e o mistério da vida, do humano.

Gabriel Rinaldi

Zé Celso

Zé Celso

E a discussão do casamento gay? Eu não me casaria nunca. Mas acho importante, se isso é importante pra alguém...

Teme que possa reproduzir o modelo heterossexual, com a monogamia no centro? Depende da cabeça das pessoas. O cara pode ser gay e supercareta. Eu não me casaria, mas vivo com o Marcelo Drummond, que é protagonista neste teatro, é o Hamlet, é o Oswald. Não somos mais amantes, mas vivemos em dois apartamentos unidos, eu numa ponta, ele noutra, com o namorado dele. Faz 25 anos que a gente trabalha e vive junto. Criam-se laços, econômicos e de outros tipos, que admito que devam ser sancionados. Mas eu não me casaria.

No documentário Evoé, que o Tadeu Jungle acaba de finalizar sobre você, uma hora você canta uma música mais ou menos assim: “Que os meus inimigos vivam muito para ver de perto a minha vitória...” [Começa a cantar] “E com essa fazer a narração da nossa história.”

Então, Zé, quem são seus inimigos hoje? Olha... é uma coisa que desanima... que não está à altura da luta. O Silvio Santos, com quem briguei muito para não construir um shopping em torno do Oficina, estava à altura. Foi um adversário maravilhoso, me ensinou muito. Se não fosse ele, eu não teria o conhecimento que tenho hoje do capital financeiro, de como funciona o sistema e como enfrentá-lo. Mas a burocracia é um inimigo abstrato... Não existem fundos no mundo que possam resolver o trânsito de São Paulo e a burocracia. É um tormento... a relação que tem o estado... a coisa mais difícil que existe atualmente é... são as relações de impedimento de produção. Nós somos trans-humanos para fazer o que fazemos. E a dificuldade que há do entendimento disso. Também acho que o maior inimigo hoje seja certa fobia que as pessoas passaram a ter do teatro. O teatro deveria ser popular como o futebol. Porque o trabalho do teatro pressupõe a formação de craques. De divas. De divos. O ator deveria ter as condições que tem o jogador de futebol. Nós trabalhamos com concentração, com muitos exercícios físicos. Essa fobia da cultura... A cultura não constou na agenda da Dilma. O lugar foi ocupado por fundamentalistas. A discussão do que é cultural, aborto, tratamento ao homossexual, sei lá, tudo isso virou discussão entre Igrejas querendo tomar o poder e o lugar da cultura. Porque isso é cultura. São as coisas fundamentais da vida, né? Daí vem o desrespeito ambiental, às tribos indígenas... porque falta a noção da cultura.

Mas isso não vem de agora... O apoio à cultura brasileira floresceu na época de Getúlio Vargas, quando o Gustavo Capanema era ministro. Nos anos 60 o teatro tinha muita importância, por isso foi tão reprimido a partir de 68. Os militares reprimiram a cultura porque sabiam que era uma coisa perigosa para a ordem que eles estavam estabelecendo. Com o neoliberalismo a tendência foi de a cultura virar mercadoria, serviço, consumo. Já o Gilberto Gil e o Juca Ferreira trouxeram a tropicália, a antropofagia para o Ministério da Cultura. O próprio Lula foi um presidente antropófago.

Como assim? Ele fez um governo cheio de rebolado. De Carmen Miranda. De pega pra cá, joga pra lá. Ele sambou no poder e foi comendo tudo o que podia. Fez um governo incompreensível do ponto de vista marxista. Só quando ele abandonou a ideologia realmente e foi para o pragmatismo, que é a essência da antropofagia – é o que é e, dentro do que é, o que eu posso fazer? –, quando ele superou a máscara de operário, de líder sindical, quando se descobriu pernambucano, quando chegou até a mãe dele de volta, aí ele teve uma humanização progressiva. E descobriu a si mesmo. Antes tinha muita influência da Igreja. O Lula fez um governo laico maravilhoso nesse sentido. Com nenhuma religião, com nenhuma ideologia, com nada. E teve um Ministério da Cultura luxuoso. O Gil e o Juca conseguiram uma verba extraordinária, como o ministério nunca tinha visto.

"Lula fez um governo cheio de rebolado, de Carmen Miranda"

E a Dilma, como está esse começo? Gostei muito do discurso dela na ONU, do que disse sobre globalização, sobre nosso direito de interferir e participar de qualquer assunto no mundo. Seu erro trágico foi o corte de dois terços no Ministério da Cultura, depois de toda a luta do Gil. A [ministra] Ana de Holanda está sem armas. No Brasil essa questão do corte fiscal virou tabu, ninguém pode tocar nisso. O fato de a Dilma não ter entendido ainda a excepcionalidade da cultura, isso me preocupa. O teatro precisa estar no centro, no coração de um plano estratégico da erradicação da miséria.

Explique isso melhor. A erradicação da miséria se dá juntamente com a erradicação da miséria cultural. Mais do que a educação. Porque a educação pode se propagar e formar uma série de indivíduos voltados para o mercado e que não vão saber de si. Não vão saber o que têm na frente do nariz. Não são criadores. Já o teatro é uma universidade... é a coisa que mais forma o indivíduo em contato com o outro, com o coletivo. O teatro é a catarse, você sai diferente do que entrou. Só a cultura propicia a possibilidade de sonhar, de imaginar, de criticar, de saber de si mesmo, de saber do seu corpo, de saber da natureza. A cultura, e não a macroeconomia, é a infraestrutura da vida, a energia propulsora. A macroeconomia está fazendo mal à humanidade. Quando o indivíduo, por meio da cultura, desperta para a autopercepção de que é livre, na hora ele sai da miséria. Porque tem muita gente que tem dinheiro e está na miséria, humanamente falando. Não sabe de si, está perdida. Aí vai para o crack, para o consumo, para essa bobagem de celebridade.

E a educação? Os ministérios da Educação e da Cultura deveriam se juntar, não 
compreendo educação sem cultura nem cultura sem educação. A gente vive uma época de inteligência, de saber e de inventividade. Tanto que nos Estados Unidos tem gente que está abandonando universidades para ir ao Silicon Valley, onde ficam as empresas de tecnologia. A China investe 18% em pesquisa, o Brasil investe 1%. O Brasil deveria priorizar os ministérios da Educação e da Cultura e o Ministério da Ciência e Tecnologia, que são realmente as coisas que podem levar o Brasil para outro patamar. Com a responsabilidade que o Brasil tem diante dos problemas do mundo hoje, não haver investimento nessas áreas é algo doentio, uma fobia. Não querer crescer, não querer desenvolver, querer ficar cover, querer comprar coisa de segunda mão, querer continuar zumbi, autista. Eu aposto inteiramente na nossa cultura, não como algo nacionalista. É a mistura de gente, gente que tem de sobreviver no balanço do samba, no equilíbrio desequilibrado do samba, é um país que, se tiver investimento, nossa! É hora de juntar educação, cultura, ciência e tecnologia e investir maciçamente. Mandar ver.

Essa é a sua visão de Brasil? Ligado, evidentemente, à saúde e ao ambientalismo. E tem que democratizar a democracia. Nosso congresso hoje não é democrático. Precisamos ter uma democracia mais direta.

"Sinto dificuldade de conseguir coisas que outros conseguem com facilidade. Depois de morto, talvez seja mais fácil. Mas eu gosto da vida"

Como está sua saúde, Zé? Não está boa, não. Estou com um pouco de labirintite, o coração doente, tenho um marca-passo. Agora, com 74 anos, estou começando a sentir realmente a velhice. Até o ano passado eu não sentia. Agora, como fiquei dois anos sem férias e trabalhei demais, mas demais mesmo, sem parar nenhum dia, tenho a impressão que perdi... Estou tendo muito pesadelo, tenho que me reconstruir a cada dia. Tô muito cansado, preciso ficar uns 15 dias no mar. Agora eu vou para Pernambuco, ficar o dia inteiro no mar, na água quente, tem de ser quente. E caminhar, caminhar muito. E depois voltar para o teatro.

Tem medo de morrer? Não tenho medo da morte, eu tenho desejo de viver. Eu sei que também tenho certa importância na realização de vários projetos. Mas talvez as coisas aconteçam mais rapidamente sem mim. Como em vida eu sou uma pessoa que aprontou muito, não sou unanimidade. Eu sinto muita dificuldade de conseguir as coisas que outras pessoas conseguem com mais facilidade. Depois de morto, talvez seja mais fácil [risos]. Mas eu gosto de viver. Eu gosto da vida.


Luana Piovani

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Christian Gaul

Luana Piovani

Luana Piovani

Falando abertamente sobre família, arte, maconha, seus ex-amores, o atual, gravidez, sexo no casamento, TV Globo e o que mais lhe foi perguntado, Luana reafirma sua disposição de não viver a vida sob nenhum tipo de controle e de não se juntar à extensa lista de “mulheres release” no cenário artístico/midiático nacional. Custe o que isso tudo custar

Acreditem! Luana Piovani ganhou novos tons de magenta. Desde o seu primeiro e inesquecível ensaio sensual para a Trip, em 1997 (aos 20 anos, seguido de outro em 2002, aos 25, e de um terceiro não menos memorável em 2007, aos 30), o nome dessa cor primária também conhecida como carmim, na precisa graduação de 20%, foi evocado na vã tentativa de descrever uma de suas características mais marcantes: o tom dos lábios e da epiderme fina que deixa ver suavizado o sangue italiano que corre firme e periférico em suas veias. Na ocasião, tratava-se apenas de uma despretensiosa tentativa de apelar à escala cromática para tornar mais tangível o que é intangível, ao menos para a imensa maioria dos frustrados mortais. Mas não é que, apelando aos registros enciclopédicos, lá estão significados muito mais reveladores? A palavra magenta “deriva da cor do sangue derramado numa batalha travada na cidade de mesmo nome, na Itália, em 1859”. E mais, segundo o mesmo verbete virtual, “é geralmente relacionada à sensualidade e ao sexo feminino”.

Batalhas, guerras, sensualidade e sexo feminino. Que maneira mais completa de descrever uma das mais perfeitas representantes da melhor estirpe das bombshells brasileiras?

Aliás, vejamos o que é exatamente, conforme as mesmas enciclopédias pouco britânicas, uma bombshell. O primeiro verbete já bate um bolão. Simples e direto: “artefato explosivo”.

Mas deve haver mais. Vejamos o segundo, aqui numa tradução livre: “mulher extremamente atraente do ponto de vista sexual. Bombshells são ícones populares reconhecidos, entre outros atributos, por seus seios fartos, sex appeal e , originalmente pela sua ‘loirice’”.

Talvez uma simples foto de Luana retirada do seu próximo ensaio posando nua, que ilustrará a capa e muitas páginas da Trip de dezembro, pudesse perfeitamente fundir e substituir sem nenhum prejuízo de cognição os dois verbetes acima e, ainda, de lambuja, servir como a mais exata e bem-acabada definição para o termo magenta.

Grávida, definitivamente mais madura por um lado e ainda mais desbocada e sem travas por outro, Luana recebeu a Trip no apartamento em que vive, agora, com o pai de seu filho, que se chamará Dom, o surfista profissional Pedro “Scooby” Vianna, e deixou claro que continua disposta a expor o que pensa da vida, a viver com intensidade e a bater em quem pise em seus calos, ainda que depois possa vir a sofrer com as consequências ou até, eventualmente, a se arrepender. Mas, mais do que tudo, Luana prova que optou mesmo pela “cruzadinha difícil” e que não está a fim de seguir os manuais de “media training” ou de se transformar num “press release” humano, como vem acontecendo com boa parte de seus pares no mundo midiático, artístico e televisivo. Mesmo que isso lhe custe uma fama indesejável de encrenqueira ou inconsequente. Com vocês, Luana Piovani calibre três ponto cinco.

Eu te conheço há 15 anos e vejo uma mudança. dá a impressão de que você sacou que esse seu ímpeto precisa ser atenuado. A maturidade traz isso, você percebe que Às vezes é melhor engolir  um sapo. dá para ver isso acontecendo em você, mas em dose menor do que em outras pessoas. Faz sentido? 
Sim, faz sentido! O amadurecimento vem. Depois de todas as rasteiras você baixa a bola mesmo. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que a batalha de trabalho que eu iniciei aos 14 anos faz com que eu tenha essa segurança do que eu sou e do que eu represento, o que eu posso conquistar com as ferramentas que Deus me deu e eu aperfeiçoei. A cada dia me valorizo mais, porque eu fiz escolhas que sempre foram muito diferentes das tradicionais. Sabe palavra cruzada, que você pode comprar a superdifícil ou a fácil? Eu sempre peguei a superdifícil. Eu podia estar fazendo novela, podia estar fazendo todas as campanhas do mundo, podia ter posado pra Playboy três vezes, eu podia estar com a minha ilha em Angra, andando de helicóptero, mas eu não quero! Quero que as pessoas me respeitem como ser humano, quero que elas entendam que os paparazzi não têm direito de me seguir e fazer da minha vida uma novela. Eu podia ter colocado um fio dental e ter dado três reboladas, mas não era isso que eu queria.

E por que você continua falando não pra Playboy, por exemplo? 
Porque quero poder fazer um trabalho de exposição de corpo e de sensualidade, porém num patamar acima, sem ficar posando de quatro, sem ficar botando dedinho na boca, fazendo cara de “vem me pegar”. Quero fazer um trabalho mais artístico, mais atrelado à atitude, com a gargalhada, com o não fazer cara de nada, com o simplesmente estar ali. De novo, é a história de não escolher a cruzadinha fácil, e a Tripsempre optou pela cruzadinha muito difícil. No mês passado vi que tinha saído a edição sobre educação. Eu falei: “Cara, eu critico tanto a educação no Brasil, preciso devorar essa Trip”, para que eu tenha mais argumentos. Lembro de falar para o Pedro: “Olha por que a Trip é a Trip: todo mundo faz matéria sobre Enem, melhor escola, melhor faculdade... eles fizeram uma matéria com a pior escola do Brasil!”. Então é justamente você nadar contra a correnteza, e eu me identifico demais com esse movimento.

"Eu podia botar fio dental e sair rebolando, mas não quero! Quero que me respeitem como ser humano"

 

O novo ensaio que sai na revista em dezembro está maravilhoso, e é o quarto em 15 anos. Como dizia aquele comercial antigo, qual o seu segredo de beleza? 
Adoro! Cara, eu acho que é a consciência. A consciência é o segredo de tudo, não só da beleza, é do bem-estar como um todo.

Como a gravidez mexe com isso? 
Olha, o fato de eu estar grávida é um pouco complicado, porque eu sempre lidei com a beleza, com a boa forma física e tal. E você chega num momento em que vai engordar. Ao mesmo tempo, dentro de você existe um registro: “Não engorde”. Lembro de algumas vezes me olhar no espelho e pensar “gente, eu preciso emagrecer”, mas logo depois, “cara, tô maluca! Eu tô grávida!”. Vou, na melhor das hipóteses, engordar 10 kg. Cara, isso é uma vida, uma loucura! Mas faço análise, sou uma ótima condutora de mim. É uma questão de bom senso. Quando eu precisava emagrecer pra fazer Trip ou pra desfilar na escola de samba eu dava uma trabalhadinha.

 

Christian Gaul

Luana em outro momento do ensaio sensual de nossa próxima edição, clicado em outubro passado

Luana em outro momento do ensaio sensual de nossa próxima edição, clicado em outubro passado

O que é essa trabalhadinha? 
É cortar o carboidrato à noite, só comer pão no café da manhã, comer pouco no almoço, viver de sopa, de carne.

Mas musculação, essas coisas...? 
Ah, você dá uma trabalhada na musculação. Eu estou há sete anos com meu personal, mas agora nesta gravidez ele mal me viu porque estou trabalhando direto. Daí eu falei: “Em janeiro eu posso”. Ele respondeu: “Mas, pô, você vai começar a fazer musculação com sete meses de gravidez? Não indico, vai para uma hidroginástica mesmo, vai fazer caminhada”. Sempre fiz exercício físico, nunca existiu sedentarismo na minha vida.

Essa história de se sentir mais sensual na gravidez rolou com você? 
Não. Tô me sentindo igual. E tem essa coisa de engordar, e como eu estou engordando sem malhar dá uma gelatinada no corpo, você se sente uma coisa meio “blaaumabalum”, meio malemolente. É baixo-astral, mas eu tô grávida, depois vai voltar tudo a ser como era, porque eu sou superdisciplinada.

Então teremos o ensaio Luana aos 40? 
É engraçado que eu estava falando com a Dulce, que é a stylist do ensaio, e eu disse: “Este é o meu último”. E ela: “Que teu último nada! Imagina você com 40 anos! Aí mesmo é que você vai querer fazer”. Falei: “Será?”. O menino vai estar pequeno, ainda não vai ter tanta dor de cabeça, mas eu tô pensando no menino.

Então a dúvida é o dos 50, né? 
Taí dona Bruna Lombardi que não nos deixa mentir... Aquela foto da perna dela com aquele músculo da bunda marcado... eu fiquei invejosa, né?

Tem a história da libido da grávida, das alterações hormonais etc. nesse departamento do sexo mudou alguma coisa? 
Cara, continua igual. Talvez até, pra contradizer todas as lendas, tenha baixado um pouco. Porque tem uma mudança hormonal, que às vezes é para um lado, às vezes é pro outro... Quando essa coisa forte vem, eu vou mordendo o Pedro, sabe? Mas eu não tô subindo pelas paredes, amor de manhã, de tarde e de noite. Porque eu acordo às sete da manhã, chego às nove da noite exausta! É tirar a maquiagem, tomar banho, comer a porra da proteína com a sopa, deitar e dormir. E ele também cansado. Mas é claro que a gente tem uma vida sexual deliciosa, eu não virei uma gravidinha parada, não!

Você acha que vai ser uma mãe meio louca, correndo atrás da cria, protegendo? 
Eu acho que vou ser uma mãe meio louca, porque eu sou meio louca, no excelente sentido da palavra. E fui criada empinando pipa, na rua, brincando de esconde-esconde, com meninas e meninos, não tinha muito esse medo de coisas sexuais, não tinha essa coisa de bullying... Mas minha mãe sempre foi muito rígida com a gente no colégio, de a gente ter medo de ter uma nota vermelha. Se ela chegava do trabalho às oito da noite e eu falava que não tinha feito a lição, eu sabia que ia tomar uma sova. Então eu acho que vou ser uma mãe que vai deixar o filho solto, não vou superproteger, quero que ele suje a roupa, sabe? Mas também quero ser muito rígida, acho importante estabelecer os limites. Eu chamo minha mãe e meu pai de senhor e senhora até hoje.

"Qualquer pessoa que levante o tom de voz pra lutar pelos seus direitos é vista como briguenta; eu sou essa pessoa"

O moleque vai nascer num mundo que está bem caótico. Você pensa nisso? 
Penso, mas eu acredito na conta de multiplicação. Pra mim, o amor só faz conta de multiplicação. Acabei de entrar pro clube dos que acreditam num mundo melhor e ajudam esse clube doando o que a gente tem de melhor, que são os nossos filhos. Então eu acho que o meu filho vai ser um espartano na guerra contra o mal. Transformador. É essa a minha contribuição. Acho que ele vai cuidar da natureza, que ele vai incentivar a cidadania. Então, eu não tenho medo não, acho que a conta vai ser a favor.

Na sua última entrevista para a Trip, cinco anos atrás, você disse que ia dar uma parada com o chopinho e o cigarrinho. O que aconteceu de lá pra cá? 
Cara, vou te dizer que, desde o dia em que eu tomei o meu primeiro chope, nunca deixei de tomar. E o cigarro virou mesmo meu hábito desde que passei por essa tragédia da agressão, ele foi muito minha muleta. E, de lá pra cá, eu me transformei numa fumante. As pessoas me falam: “Luana, como é que você faz dieta e não para de beber?”. Cara, eu não sei explicar... Mas, quando se engravida, gira uma chave dentro da gente, não tem explicação, não faz mais falta! Não vou dizer que nunca mais botei uma gota de álcool na boca. No meu aniversário, a gente estava em Los Angeles e eu tomei três taças de champanhe e uma cerveja. Mas eu fiz isso uma vez. Cigarro parece que eu nunca fumei na minha vida, não tenho a menor vontade de acender um.

Nos Estados Unidos a bebida é chamada de spirit, porque ela teria o poder de liberar o espírito. O que ela faz com você quando bebe? 
A minha analista tenta entender muito isso, porque, ao mesmo tempo em que eu sempre gostei muito de beber, eu sempre me preocupei muito com isso. E, pelo fato de eu beber todo dia, sempre tive medo de me tornar alcoólatra. E a minha mãe é abstêmia, então tem uma culpa que vem de cima para baixo. A minha mãe acha que eu sou o ser humano mais bebum que existe! Quase um Pagodinho. Eu falava muito disso na minha análise, e ela pegava pesado, me perguntava: “Por que você tem que se dopar, se drogar?”. Porque eu acho que a vida a seco é muito chata, e a minha tem um peso ainda maior. Eu não sei o que é privacidade, como é bom estar no anonimato. Só quando você perde é que você sabe que teve. É muito incômodo ser observado 24 horas por dia. Você não pode tirar a calcinha da bunda, não pode coçar o seu nariz, não pode estar com o olho inchado porque o seu vô morreu. Porque tudo vira notícia, e as pessoas especulam. Então, porque seu vô morreu você foi demitida... É muito pesado. E eu me dopo pra não notar isso, pra brincar que eu não estou vendo. Se vou à praia, já vejo cinco caras correndo ao meu redor, e todas as pessoas que estão perto de mim se constrangem pela situação. Porque ainda tem isto: umas pessoas olham com curiosidade, e muitas com pena. Elas ficam constrangidas. E você tem que fingir que tá tudo bem.

Se fosse formada em direito, você seria advogada de defesa ou promotora? 
Eu acho que seria uma promotora.

"Sempre tive medo de me tornar alcoólatra. Minha mãe acha que eu sou quase um Zeca Pagodinho"

Você gosta de brigar, né? 
Eu sou filha da minha mãe, né? Mas não é brigar, brigar dá uma sensação pejorativa. Mas é brigar pelos seus direitos. A gente vive num país ainda muito novo, que ainda oferece pouquíssima educação para a sua população, o que faz com que ela tenha zero noção dos seus direitos como cidadã. Então qualquer pessoa que levante o dedo ou o tom de voz pra lutar pelos seus direitos é vista como briguenta, e eu sou essa pessoa. Eu me lembro, quando era pequena, da minha mãe comprando leite de caixinha, vinha uma caixinha com o leite estragado e ela se dava ao trabalho de voltar ao supermercado lá longe e reclamar.

Mas tem também um prazer pelo enfrentamento, não tem? 
Teve as polêmicas no twitter, a história com o Profissão repórter...
 Teve, sim, justamente porque chegamos àquele lugar do meu direito como cidadã. Eu não tô aqui pra ser personagem do circo de ninguém. Quero e devo ser respeitada como ser humano, porque eu pago os meus impostos, conheço os meus direitos, cumpro com os meus deveres. Eu estava indo almoçar com o Pedro, e daí veio uma menina correndo na minha direção com mais dois. Então já teve aquele constrangimento, né? As pessoas te olhando, com pena, você fazendo cara de débil mental, fingindo que aquela porra toda não está acontecendo. Veio essa mulher com o microfone na mão, se apresentou, falou: “Oi, Luana, eu queria saber o que você acha dos paparazzi”. O Profissão repórter era sobre isso, o que eu só vim descobrir depois. Eu falei assim: “Eu não só não gosto deles, como não tenho nenhuma declaração a fazer sobre eles”. Continuei andando e fui almoçar. Na volta, o cinegrafista ligou a câmera e começou a me filmar, daí eu fui na direção dele e falei assim: “Isso é uma falta de respeito, essa imagem é minha e você não pode me filmar, eu já falei que não quero fazer parte dessa matéria”. Daí ele desligou a câmera e parou. Só que é óbvio que isso tudo foi usado. Agora, fazendo um paralelo, como é que você acha que eu me sinto trabalhando dentro dessa empresa?

Christian Gaul

Um aperitivo do ensaio clicado por Christian Gaul, que sai na nossa próxima edição

Um aperitivo do ensaio clicado por Christian Gaul, que sai na nossa próxima edição

É isso que eu ia perguntar. É a mesma casa em que você está trabalhando... 
É uma loucura, me dá dor na boca do estômago.

Você reclamou? 
Não, porque não adianta nada, porque aquilo ali é um lugar imenso, onde tem 75 mil coisas que acontecem ao mesmo tempo, 1 milhão de caciques pra 1 trilhão de índios. Enquanto eu conseguir trabalhar desse jeito – com eles, mas em paralelo –, é assim que eu vou levar a minha vida. Eu já entendi que não posso trabalhar em panelas que não são as minhas. Agora é muito triste, porque o que eu acho que eles deviam ter feito é não ter utilizado a minha imagem.

Você deu entrevista a um jornal alternativo falando que fumava maconha, e isso repercutiu com estrondo. Por que ainda é assim? 
Porque os interesses econômicos em relação à legalização da maconha ainda não existem. Tudo nesse teatro social gira em torno de interesses políticos e econômicos.

Você parou de fumar maconha na gravidez? 
Parei de fumar pra gravidez. Quando eu fiz Casseta e Planeta, perguntei pro Bussunda: “Bussunda, querido, o que você diz quando alguém pergunta sobre maconha, sobre droga?”. E ele disse, citando alguém que eu infelizmente não lembro quem: “Eu me tornei uma pessoa pública, não posso mais responder sobre esse tipo de coisa”. É estranho, porque com bebida não tem essa coisa. Me explica por que se pode beber nesta terra como se fosse a coisa mais incrível do mundo? Gente, o Edmundo matou três! Olha quanta gente morre. Eu, por exemplo, não dirijo, mas desde que se instalou a lei seca foi a maior felicidade! Eu só vejo meus amigos reclamando, e eu sou a mais feliz do mundo! Porque eu acho que, se você vai beber, você tem que ir de táxi! Todos os dias é só tragédia de bebum dirigindo. E parece que diante disso tá tudo bem.

"É muito incômodo ser observado 24 horas por dia. Tudo vira notícia, é pesado. Eu me dopo pra não notar isso"

Você faria a propaganda de cerveja? 
Faria porque eu bebo! Na verdade, eu nunca quis fazer por uma posição minha. É aquilo: a gente vai amadurecendo e vai deixando um pouco de ser tão radical. Jamais faria essa propaganda óbvia de loirinha de biquinho rodeada por morenos de barba malfeita de balcão. Acho que tem que fazer uma mulher chegando ao balcão e falando: “Por favor, cê me vê uma gelada? Mas do cu da foca, tá?”. Daí ela olha pro lado, tem dois caras e ela vira e fala: “Vocês tão sozinhos? Tão precisando de companhia?”. Isso foi o que eu sempre fiz na minha vida. Por que a mulher ainda está nesse lugar de objeto sexual? O mundo mudou, as mulheres estão ganhando mais do que os homens já tem tempo! A gente tem uma presidente no poder! Por que a mulher precisa estar de calcinha e sutiã pra dizer que bateu o carro? Ainda se coloca a mulher nesse lugar pequeno...

Você acha que a Gisele posa de boba fazendo esse papel? 
Eu acho que a Gisele tá cagando pra gente, amor. Tá com a conta gorda, não tá nem aí pro que as cucarachas do Brasil estão pensando. Ela tem um homem maravilhoso, um filho maravilhoso, uma mansão em Los Angeles maravilhosa...

Mas você não acha que a Gisele, que é uma das referências femininas no Brasil, tem uma responsabilidade sobre essa imagem que ela projeta? 
Não. As pessoas acham que os artistas têm que ter essa responsabilidade. Mas eu não concordo. Temos a responsabilidade de sermos bons cidadãos, de cobrar dos políticos que a gente elege, de cuidar para que esse planeta sobreviva pros nossos netos. A gente não está aqui pra catequizar ninguém. As pessoas me questionam: “Ah, mas você faz a mulher invisível, que tá de calcinha e sutiã o tempo todo”. Mas eu não estou de Luana, eu estou contando uma história, uma fantasia, porque o personagem do Selton é casado, e muito bem casado, com uma mulher que ganha três vezes o que ele ganha. É completamente diferente. Eu não vendo uma coisa que eu não consumo. Eu não vendo sopa que te emagrece, eu não vendo remédio que te deixa bonita.

Como você lida com dinheiro? você coloca em segundo plano, mas não em quinto, é isso? 
Eu tenho uma vida muito cara, tenho três casas que eu sustento, uma aqui, uma em São Paulo e uma em Nova York. Custo mensal altíssimo. Não tem gente que gosta de ter BMW e helicóptero? Eu gosto de ter três casas, de chegar e abrir o meu guarda-roupa, ter todos os meus casacos de frio lá dentro e já ter minha padaria, meu supermercado, minha lanchonete. Me faz bem, eu me sinto uma nova-iorquina. Eu recebo muito as pessoas, divido meu lençol, porque eu não estou falando de uma casa para alugar, é a minha casa. Eu acho que na vida tudo só é bom quando a gente divide, porque se é pra ter sozinha não tem a menor graça.

"Neguinho te tacha como a estrela do ano porque você pediu um queijo de Minas pra comer"

Você mencionou há pouco nossa presidente. Você está contente com a Dilma, com o que ela está fazendo? 
Contente eu ainda estou longe de estar. Mas, por exemplo, esse bando de demissão que ela fez dos corruptos que estavam em volta, eu acho muito bom. O Lula não fez isso, né? Ele ficou brincando de estar com a venda sobre os olhos. E eu quero morrer de ódio disso. Eu já me sinto mais digna por ter uma mulher como ela que está fazendo isso.

Como foi o seu encontro com o Pedro? 
Foi maravilhoso. A nossa história é hilária. Eu tinha acabado de terminar um relacionamento e decidi viajar no Carnaval. Falei: “Vou me picar para evitar possíveis dores de cabeça”. Porque eu conheço o Carnaval carioca e me conheço... Mas voltei de viagem um dia antes do desfile das campeãs e decidi ir. Organizei o bonde das solteiras... Éramos umas sete, oito meninas juntas. Nós ainda fizemos o videozinho do “All the Single Ladies”, todas animadíssimas, veio todo mundo se arrumar em casa... E fomos com tudo, bem cedo. Deu umas 11h30, pouquíssima gente no camarote e chega o Pedro sozinho. Ele deu de cara com a Veri e com a Nicole, duas amigas em comum. Ele já olhou pra mim e disse: “Nossa, você é mais bonita pessoalmente”. Daí eu pensei: “A noite hoje é minha! Cheguei não tem nem meia hora e já me dei bem”. Depois de uns 10, 15 min, eu chamei a Nic e falei: “Nic, você avisa esse menino que, se ele ficar aqui, eu vou abater!”. Ela não falou nada. Deu uma meia hora e ele disse pra Nic: “Olha só, eu vou agarrar essa mulher”. E ela também não veio me trazer o recado. Daí começou o show do Zeca Pagodinho, e eu: “Meu Deus, eu amo Zeca Pagodinho, eu quero dançar com ele, meu sonho é fazer uma propaganda com o Zeca”. Ele falou: “Duvido que você vá lá dançar com o Zeca”. E eu: “Coitado, você não me conhece mesmo, garoto”. Não deu 10 min, o Zeca olhou e disse: “Luana Piovani?”. E me botou no palco pra sambar. E eu olhei pro Pedro e falei: “Viu?”. Tipo, se fodeu. Depois de um tempo, a gente se cruzou numa rampa. Daí eu meti a mão no peito dele e disse: “Vem cá, você tava onde? Você sumiu”. Daí ele: “Opa, tipo, foi notada a minha ausência”. E, desde então, ele não saiu mais do lado, já botou a mãozinha na cintura e não sei o quê... e eu falava: “Guenta a van, que aqui não vai dar, espera a van”. Isso até virou um bordão entre a gente.

E na van vocês já se beijaram? 
Já. E daí a gente nunca mais se separou. Depois de dois meses a gente estava morando junto e com três meses e meio eu fiquei grávida.

Você disse que não queria ir ao Carnaval porque se conhece, isso quer dizer que você tem medo de Si mesma, que você sabe que é incontrolável? 
Não, não é medo não... É autoconhecimento. Eu sei o que sou, quais são as armas que eu tenho e como utilizá-las. Tava todo mundo solteira. E querendo arrebentar mesmo. Morena, bem na fita, com as contas pagas! Eu vou que agora eu quero ver neguinho caindo. E daí eu fui.

"Não adianta reclamar na Globo. Tem 1 milhão de caciques pra 1 trilhão de índios"

Você não ficou triste quando separou de seu ex-namorado Felipe Simão? 
Olha, não fiquei. Tem umas coisas na minha vida que, apesar de parecerem ruins, são uma grande graça recebida. E eu aprendi isso, depois de tantos tropeços. Eu comecei a enxergar o que a vida estava querendo me dizer. Dessa vez ela me deu vários sinais que eu fiz questão de não ver. E aí a vida falou: “Bom, vou dar uma rasteira para ela acordar”. Então foi até um alívio, porque era um relacionamento muito difícil, era uma constante porradaria, insegurança, ciúme, pegação no pé. Até que você fala: “Caralho, por que ele não acredita em mim?”. Você se sente um criminoso preso injustamente.

Quando acontece esse tipo de coisa, você sofre? 
No momento sofro e não tenho vergonha de dizer. Mas eu tenho essa faculdade, esse mestrado e esse doutorado, né? Eu não nasci para sofrer. A última vez em que eu sofri muito foi aos 27 anos. Foi quando o Marquinho Palmeira terminou comigo... Sofri uns 40 dias, aí falei: “Não tá dando, o que é isso, senhores e senhoras, com 27 anos na cara, com a vida toda organizada...”.

Por que ele terminou com você? 
Porque ele é muito mais maduro e viu que nós nunca íamos dar certo, apesar de a gente se gostar muito. E hoje sei que para um relacionamento dar certo não basta o amor. Tem que ter afinidades mesmo, e nós não tínhamos. Eu tinha folga e queria ir pra Nova York, ele queria ir pra fazenda, cuidar da plantação orgânica dele. Aquela coisa bucólica não é pra mim.

Falando de fazenda, você me lembrou do Dado Dolabella [risos] 
Sei, o outro defunto...

Foi uma fase em que você ficou muito exposta, se envolveu em umas situações erradas. O que aconteceu ali? Você estava meio cega? 
Não sei. Se a gente partir do princípio de que o amor cega, sim, eu estava cega. Foi um período meio punk. No fim da minha segunda volta com ele rolaram vários boatos ruins, que têm a ver com a síndrome do pequeno poder da Globo. Neguinho te tacha como a estrela do ano porque você pediu um queijo de minas pra comer. As pessoas se aproveitaram desse momento frágil em que eu estava depois de ser agredida para pulverizar pequenas histórias. Saíram uns três boatos de que eu, em vez de agredida, tinha virado agressora! E isso nunca aconteceu. Então a sociedade marrom, que são as pessoas que vendem fofoca, resolveu fazer do meu momento frágil um circo, e me colocou de fera nele. Agora, a grande cagada foi eu ter voltado pra ele! Foi nesse momento que eu estava cega, porque a gente tinha se separado da primeira vez por conta de uma agressão física, não comigo. Ele agrediu a mãe dele, e a mãe dele me ligou falando isso. Aí minha mãe disse: “Mas ele agrediu a mãe dele, como é que você vai voltar?”. E eu passei por cima. Então esse foi o meu momento de cegueira.

"A gente tem uma presidente no poder. Por que a mulher precisa estar de calcinha pra dizer que bateu o carro?"

Qual o seu lado que você menos gosta? 
Ai, eu ainda tenho um lado de rancor dentro de mim, um rancor atrelado à crítica. Porque eu sempre fiz a cruzadinha muito difícil, eu sou crítica com quem escolheu a fácil. Eu não deixo de julgar as meninas do fio dental que rebolaram. Eu acho que podiam ter escolhido outra coisa. Podiam estar no meu time, me ajudando. E, quando eu vejo, estão lá. E é louco que as pessoas aplaudem, e daí eu fico puta da vida! Porque eu vejo que estou sozinha, né?

Se tivesse uma régua para medir sua carreira como atriz, em que estágio você acha que está, de 0 a 100? 
Acho que eu tô no 70. Ainda preciso crescer muito, ainda me falta fazer os clássicos, mas já fui de A a Z. Depois que eu fiz o monólogo Pássaro da noite para 50 pessoas que me aplaudiam extasiados, eu faço Brecht, faço Shakespeare, faço qualquer coisa.

A Marcia Tiburi, sua ex-colega do Saia justa, te chamou de “bobinha do mal”. Tem ainda um registro grande de prepotência na sua imagem. O que você acha dessa situação? 
Prepotência vem de “pré-potência”. E eu acho que eu não sou “pré-potente” porque eu conheço a potência que eu sou. Eu sei quanto eu posso faturar, quanto mais grana eu teria se tivesse ligado a minha máquina de dinheiro. E isso incomoda as pessoas. As pessoas ainda vivem em um circo de personagens, então o bom é você fingir que não se acha bonita, é você fingir que não se acha competente. Então, se você me perguntar de 0 a 10 o que eu me acho como atriz, eu vou dizer 7. Agora, por exemplo, como produtora teatral, eu não sei se tem uma tão boa quanto eu. As pessoas não estão acostumadas a ouvir isso, e eu falo sem a menor vergonha. “Ah, Luana, você se acha bonita?” Como é que a pessoa me faz essa pergunta!? Claro que eu me acho bonita! Eu tenho espelho na minha casa!

Então você não é uma bobinha do mal? 
Não, eu não sou... Posso ser uma bobinha, mas nunca do mal.

Marcelo Freixo

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Jorge Bispo

 

Enquanto mídia, governo e boa parte da população do Rio de Janeiro celebram a nova fase do combate ao crime organizado na cidade, um homem pede cautela. Mais do que isso: pede providências bem mais profundas do que as UPPs. O deputado estadual Marcelo Freixo é um dos maiores inimigos das milícias, do violento e corrupto acordo entre governo e policiais que buscam assumir o controle de regiões antes dominadas pelo tráfico. Por isso sua cabeça está a prêmio. Hoje ele vive sob um duro esquema de proteção e já teve que deixar o país quando as ameaças se tornaram mais perigosas. Isso o fará desistir do mandato? Só se for para virar prefeito do Rio de Janeiro

O Rio de Janeiro está eufórico. A cidade se prepara para se tornar o centro do universo: sede da final da Copa do Mundo de 2014, da Olimpíada de 2016 e da Petrobras, empresa que neste momento esburaca a camada do pré-sal no fundo do oceano para trazer à superfície trilhões de litros de petróleo. A polícia sobe morros e instala UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora, que colocam traficantes para correr. Na fachada do hotel Marina, na beira da praia do Leblon, um imenso cartaz declara que “O Rio é dos bons” e agradece: “Obrigado, Força Policial”. Os famosos botecos da cidade são só sorrisos, celebrações de negócios fechados e reuniões sobre futuras oportunidades. Governos municipal, estadual e federal, pela primeira vez aliados entre si, com amplo apoio da mídia, em especial da carioca Rede Globo, comemoram os bons tempos.

Em meio a tanto oba-oba, um sujeito insiste em jogar areia na festa. O deputado estadual Marcelo Freixo, contrariando o otimismo generalizado, afirma com todas as letras: “O Rio nunca correu tanto risco de cair nas mãos da máfia”. Ele se refere às milícias, formadas por policiais, aliadas de vários políticos locais e paparicadas por todos os principais partidos. “Elas infiltraram o sistema todo”, diz ele. Até a casa onde ele trabalha, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Freixo calcula que algo em torno de 90% dos deputados estaduais por lá têm ligações com centros sociais, as instituições que proveem serviços que deveriam ser papel do estado em comunidades carentes. E que geralmente são o braço comunitário do poder mafioso das milícias.

Por causa dessa mania de atrapalhar festas, Freixo já recebeu 27 ameaças de morte e só anda pela cidade escoltado por policiais à paisana. Não pode ir à praia, apesar de morar pertinho do mar, e só vai ao cinema se planejar com antecedência. As ameaças começaram em 2008, quando Freixo comandou uma CPI que investigou as milícias e terminou com a prisão de mais de 500 pessoas, incluindo vereadores e deputados. Apesar dos indiciamentos, ele afirma que nenhuma das mais de 50 providências sugeridas pela CPI foram colocadas em prática e que, como consequência, o poder miliciano não parou de crescer. “Havia 170 milícias quando fizemos a CPI. Agora são pelo menos 300”, diz.

Em agosto deste ano, a juíza Patrícia Acioli, eleitora de Freixo que vinha punindo milicianos, foi morta por policiais – 21 balas. De lá para cá, as ameaças contra o deputado aumentaram. Revelou-se que um policial tinha recebido a oferta de R$ 400 mil para matá-lo. Em novembro, com o estresse em sua família beirando o insuportável, ele resolveu sair do Brasil e ir passar duas semanas na Espanha, para se proteger dos assassinos e permitir que a polícia reforçasse sua segurança e blindasse seu carro.

Jorge Bispo

 

Freixo foi a inspiração para o personagem Diogo Fraga, que, ao lado do Coronel Nascimento, foi um dos protagonistas do filme Tropa de elite 2, que expôs as conexões entre o crime organizado e o poder público no Rio e no Brasil todo. Assim como o personagem do filme, ele é historiador, ativista de direitos humanos e deu aulas de história para detentos em presídios. Assim como Fraga, também Freixo conquistou a confiança tanto dos presos quanto de vários policiais do Bope e, antes de virar político, participou diversas vezes de negociações entre a polícia e detentos para encerrar rebeliões na cadeia. “O filme só não reflete a realidade quando retrata minha vida pessoal”, diz. “Eu não me casei com a ex-mulher do Coronel Nascimento.”

Eleito deputado estadual pelo PSOL com 13.507 votos em 2006, Freixo reelegeu-se em 2010 com a segunda maior votação do estado: 177.253 votos, menor apenas que a do apresentador policialesco Wagner Montes. Ele é um dos parlamentares mais admirados da casa, inclusive por políticos de direita. É também um dos deputados mais ativos no Palácio Tiradentes. Durante as sessões plenárias, enquanto a maioria dos deputados se agrupa em animadas rodinhas festivas, ele se mantém sério, concentrado, fazendo anotações e discordando frequentemente dos oradores. Muitas votações acabam com apenas um voto contrário quebrando a unanimidade: o dele.

Agora, mantendo o hábito de estragar festas, Freixo prepara-se para lançar-se candidato a prefeito do Rio, enfrentando uma imensa coalizão de quase 20 partidos que apoiam a reeleição do atual prefeito, Eduardo Paes. Paes conta com o apoio quase unânime da grande mídia, além de uma infinidade de financiadores. Já Freixo terá uma dúzia de segundos na TV, o engajamento de militantes voluntários e o apoio de alguns empresários e artistas, entre eles seu amigo José Padilha, diretor de Tropa de elite, e de Wagner Moura, o ator que interpretou o Coronel Nascimento, nêmesis de Diogo Fraga no filme.

Apesar da luta desigual, Paes já demonstrou que está incomodado com o adversário e que pretende jogar duro com ele. Segundo o jornalista Ricardo Boechat, da BandNews, foi a equipe do prefeito que espalhou o boato, depois desmentido, de que Freixo não viajou para a Espanha para se proteger de ameaças de morte, mas para fazer palestras que já estavam agendadas previamente.

Para entrevistar Freixo, a reportagem da Trip apareceu de manhã no gabinete do deputado. A conversa transcorreu sob o olhar vigilante mas discreto dos policiais à paisana. Os encontros eram agendados pessoalmente, por receio de que houvesse um grampo no telefone e que nossa combinação desse pistas sobre a agenda de Freixo.

Apesar da pressão de viver sob ameaça de morte, Freixo se mantém bem-humorado, faz piadas sobre a política no Rio e não se arrepende de nada. “Eu faria tudo de novo”, diz.

Afinal, UPP é bom ou ruim? 
Olha, eu sempre defendi o policiamento comunitário. Eu acho que o princípio de a polícia estar no lugar é inquestionável. Se você disser “não tem mais o tráfico armado aqui, não tem mais invasão de facção, não tem mais troca de tiro”, não dá para dizer que isso é ruim. Ponto. Agora, dizer que a solução é essa e que o problema está resolvido... Qualquer polícia do mundo, para avançar, como aconteceu na Irlanda, tem três pontos que são fundamentais. O primeiro é aproximação com a comunidade, que a UPP garante. Além disso, tem que ter valorização salarial e formação, e isso nossos policiais não têm e continuam não tendo. O salário é absurdamente baixo, a formação é muito precária. E tem que ter controle sobre a polícia. Isso a nossa também não tem. As corregedorias e ouvidorias são lamentáveis.

A história que Tropa de elite 2 conta é mesmo a sua? 
O Tropa 2 é baseado no que aconteceu na CPI das Milícias, mas é um filme de ficção. E quer saber? É ficção sim porque a realidade é muito pior do que um filme é capaz de mostrar. O Bráulio [Mantovani, roteirista do filme] veio aqui à Assembleia Legislativa, assistiu a todas as sessões da CPI, leu todos os depoimentos, conversamos inúmeras vezes. Ele me deu a chance de discutir o roteiro e acolheu várias sugestões. Tomei muito café da manhã no hotel onde o Irandhir [Santos, o ator que interpretou Diogo Fraga] ficava hospedado no Flamengo, debatendo as cenas e construindo as falas. O personagem é mesmo muito baseado em mim.

E como é que começou essa sua história? 
Eu sou lá de Niterói, da periferia, de um bairro chamado Fonseca. E eu sempre fui boleiro, era cabeça de área. E o único campo de futebol do Fonseca ficava dentro da cadeia. Todo domingo, eu e os meninos da favela, a Vila Ipiranga, alugávamos o campo da cadeia, você acredita nisso?

E seus pais deixavam você ir jogar bola na cadeia? 
Pois é, veja como as coisas mudaram. Imagina hoje um garoto de 15 anos falando: “Mãe, eu vou jogar bola com o povo da favela no campo da cadeia”. A mãe tem um treco. Mas, para mim, a hora mais feliz era aquela: ir jogar bola na cadeia todo domingo. A gente adorava. O juiz era sempre um preso, era o único campo de futebol onde ninguém chamava o juiz de ladrão. Como ninguém nunca quer catar, geralmente o goleiro era um preso também. Eu sabia que os caras estavam presos e tudo, mas não ligava, meu negócio era jogar futebol. E aí aquilo fica de alguma maneira dentro da gente.

E isso foi criando um interesse seu pelo sistema prisional. 
Exatamente. Depois fui fazer faculdade, entrei em economia e larguei quase no fim do curso para fazer história. Um dia, quando eu tinha 21 anos, estava na faculdade e vi um cartazinho muito vagabundo, que dizia “precisamos de estagiário para dar aula no presídio Edgard Costa”. Na hora eu soube que queria fazer isso.

Que história era essa de aula dentro da cadeia? 
Tinha duas celas desativadas lá – eram os bons tempos, em que você podia ter cela desativada, hoje está tudo superlotado. E tinha uma socióloga chamada Regina Brasil, que era agente prisional, que propôs à direção do presídio que ela construísse uma escola ali. A direção respondeu: “Desde que não gaste dinheiro e não me encha o saco, tudo bem”. Aí ela fez esse cartaz mambembe e eu fui um dos primeiros a chegar. Ela falou: “Mas aqui não tem remuneração, é para dar aula de graça. E é para montar tudo, não tem cadeira, não tem nem quadro-negro”. Só tinha o cartazinho. E eu trabalhei anos em presídio como voluntário.

“Minha luta por direitos humanos é antiga. o mandato é mais uma etapa”

E vivia do quê? 
Eu trabalhava num cursinho pré-vestibular. Mas em paralelo fui me envolvendo com organizações de direitos humanos que lidavam com prisões. Depois de dar aula, fui voluntário num projeto de prevenção ao HIV e à Aids e então virei pesquisador da área de segurança numa ONG chamada Justiça Global. E, como representante da Justiça Global, eu pertencia ao Conselho da Comunidade, que era um conselho de várias organizações de direitos humanos, previsto pela lei de execução penal. Entre 2000 e 2004, fui presidente do conselho, e aí visitei todas as prisões do Rio e passei a conhecer todos os presos pelo nome.

Todos? 
Ah, não vou dizer todos, mas eu conhecia muitos. Então, quando tinha uma rebelião, e rebelião sempre se faz com refém, o Bope ia me buscar em casa. Naquela época eu já era professor de história em cursinho. Teve vezes em que aconteceu exatamente como no filme. Eu estava dando aula e recebia uma mensagem pelo celular – “urgente” – e eu já sabia o que era e interrompia a aula. Eles precisavam ter alguém negociando os termos de rendição, para criar confiabilidade. Por anos, participei da negociação de todas as rebeliões que aconteceram no Rio. E, nesse tempo todo, nunca teve uma pessoa ferida, uma pessoa morta, nenhum problema. Nunca.

Arquivo Pessoal

Marcelo aos 4, todo pimpão com seu primeiro uniforme escolar

Marcelo aos 4, todo pimpão com seu primeiro uniforme escolar

Como eram essas participações nas negociações? 
Eu chegava ao presídio e recebia do Bope uma avaliação da situação. Qual era o perfil da cadeia, dos presos, quem eram os líderes, quantos reféns. Primeiro tinha que haver uma negociação entre mim e os negociadores do Bope, porque eu não podia falar uma coisa e o Bope fazer outra.

Vocês não pensavam igual, né? 
Não, mas eles sabiam que, se a negociação desse errado, depois seria impossível fazer outra. Até porque, se isso acontecesse, eu não estaria na próxima. E ninguém nunca mais se entregaria se eles faltassem com a palavra. Então eles não poderiam me usar pra ter a rendição das armas e depois fazer o que não estava combinado. E eu ia falar com os presos, garantia a eles que só sairia dali quando o último guarda saísse, que não teria esculacho, que não teria Carandiru – “Carandiru” era um termo sempre usado nessas situações.

Interessante o seu papel nessa história. Quando os presos não confiam no Estado e vice-versa, precisa ter alguém em quem os dois lados confiem, não é isso? 
Olha, os presos nunca me pediram nada. E eu quando fui candidato nunca visitei uma prisão pra pedir apoio. Nunca fui em uma favela onde eles tinham liderança para pedir voto. Nunca pedi um cotonete para esses caras. E eles nunca me pediram nada que não fosse dentro da lei. Sempre tiveram respeito absoluto. Essa relação de saber quem é quem era fundamental na hora de negociar, porque eu não era um deles. Eu não era sócio. Não tinha sacanagem, entendeu? Tanto é que tinha um guarda, que hoje é subsecretário, que nunca participou de esquema de propina e eles aceitavam que negociasse junto comigo. Já outros guardas que participavam de esquema eles não aceitavam, porque não tinham moral.

E você considera seu trabalho como parlamentar uma continuação dessa história? 
Sim, claro. A luta pelos direitos humanos é antiga, o mandato é mais uma etapa. As pessoas da equipe que trabalham comigo são as mesmas que se conheceram na luta. Quando me elegi, em 2006, foi um ano em que as milícias começaram a crescer muito. E quem conhecia as favelas no Rio já claramente identificava a milícia como algo muito perigoso e muito diferente do que a gente conhecia. E naquela época elas estavam buscando legitimidade. Eles já tinham vereadores eleitos e, quando me elegi, um miliciano foi eleito junto comigo [Freixo se refere a José Natalino Guimarães, do DEM, um policial civil que seria preso em 2008.]

Foi aí que você tomou a iniciativa de criar a CPI das Milícias? 
Foi. Logo no primeiro mês de mandato, procurei alguns parlamentares que eu achava que pudessem topar essa briga e ninguém aceitou assinar comigo. Eu compreendo, é mesmo um nível de enfrentamento muito barra-pesada. Mas para a gente estava claro que era preciso fazer isso. Porque, se for pra dizer que certas coisas eu não enfrento, é melhor não ter mandato. Se eu tenho mandato, eu não tenho o direito de negar as principais lutas, por mais que isso tenha consequências. E aí fiz esse pedido de CPI no início de fevereiro de 2007 e fiquei um ano e meio esperando. Eu não tinha mais esperança de que ela fosse aberta, porque a milícia tinha muita força na casa. Tinha muita força na sociedade.

Tinha certa legitimidade, não é? 
Muita. Além de ter miliciano ali dentro da Assembleia, o poder público não tinha interesse em enfrentá-las. O ex-prefeito chamava a milícia de “autodefesa comunitária”. Tem entrevista do atual prefeito no RJTV dizendo que as chamadas “polícias mineiras” eram um modelo de segurança. Os comandantes de batalhões diziam que a milícia era um mal menor, que ela ajudava a enfrentar o tráfico. Então havia uma construção de legitimidade do crime. Por isso que eu achava que era um crime ainda mais perigoso que o tráfico, porque era um crime que estava dentro do estado, que operava dentro da máquina pública, que crescia e que tinha todas as características de máfia: era extremamente violenta, extremamente bem armada, poderosa economicamente e com um projeto de poder.

E o tráfico não tem projeto de poder? 
Nem de perto. Não tem projeto nem de vida, quanto mais de poder. O varejo da droga é muito violento, mas eles não sabem nem o que é estado. Vivem uma relação de poder absolutamente local, enquanto o crime organizado é sempre internacional. Crime organizado é quem faz as armas e a munição chegarem para eles.

E esse cara nós não sabemos nem o nome dele, não é? 
Nem os garotos sabem. Quem está na favela não tem nem acesso a eles. Quantas vezes você acha que o Nem saiu da Rocinha? É provável que nenhuma. Quantas vezes ele saiu do Rio de Janeiro? A primeira vez foi agora, quando foi levado para o presídio federal. E esse é o crime organizado? Crime organizado é onde tem dinheiro e poder, não é onde tem barbárie. Crime organizado é feito por gente fina, elegante, mas não muito sincera. E as milícias, ao contrário do tráfico, operam nessa lógica. Elas são um fenômeno recente, que começou a surgir em 2000. 
A primeira reportagem que menciona a palavra “milícia” foi da Vera Araújo, no O Globo, em 2005. A Verinha depois foi ameaçada de morte, foi perseguida.

O que em si já demonstra a natureza diferente da milícia, não é? 
Traficantes não ameaçavam jornalistas de morte... Traficante nunca matou juiz no Rio. Traficante nunca ameaçou um parlamentar.

E nunca elegeu deputado. 
Imagina. O tráfico é “já é, nóis vai”, a milícia é “vossa excelência”. E a questão é que as milícias são donas de currais eleitorais, e por isso elas interessam a muita gente, a muitos políticos. A milícia se baseia em domínio territorial. De certa maneira, ela é fruto de um processo muito antigo de uma polícia violenta, corrupta, que serve a uma elite política corrupta. A ponto de a gente ter tido como chefe da polícia durante dois governos alguém que era o chefe das quadrilhas, o Álvaro Lins [que trabalhou nos governos de Anthony e Rosinha Garotinho e acabou preso em flagrante graças às investigações da CPI]. Então a polícia historicamente se caracteriza pelo domínio de territórios, principalmente onde o estado não chega através dos seus serviços.

Onde o Estado está ausente... 
Eu não gosto da teoria do estado ausente. O estado não é ausente. Ele é presente na zona sul de uma maneira e nas zonas norte e oeste de outra. Para a zona sul ele leva serviços. Nas favelas ele chega só através dos seus instrumentos de controle. Porque quando você fala de estado ausente parece que ele não tem o controle, o que não é verdade. O estado tem o controle, mas às vezes ele leiloa. A gente não tem estado paralelo no Rio, tem um estado leiloado. A propriedade é do estado, eu tomo de volta a hora que quiser expulsando os inquilinos. A UPP é a prova de que inquilino pode perder o seu prestígio. Todo vez que se desmonta uma rede de tráfico se descobre um caderninho, igual a esse seu de anotações. Precário igual. E sempre aparece lá a propina, o pagamento semanal. Sempre, não tem uma exceção. Se não pagar, para de funcionar.

E isso é o aluguel que o inquilino paga ao Estado. 
É. O tráfico é inquilino, mas não se vê como inquilino. “É nóis, né?”, e aí picha lá: “CV” [Comando Vermelho]. Já a milícia não pixa “milícia” – ela apresenta um distintivo. A milícia, assim como toda máfia, não se diz criminosa. Milícia vai à reunião no Palácio. Ela se candidata a vereador. Ela inaugura obra da Cedae [a empresa de águas e esgotos do Rio] ao lado do governador. Por que milicianos inauguram uma obra do estado? Porque eles eram a base do governo naquele local. E, ao mesmo tempo, eram o crime daquele local. Crime, polícia e política se misturam.

E é um domínio territorial. 
Sim, elas dominam territorialmente e militarmente. Mas, diferente do tráfico, a milícia não bota uma barricada, não impede a polícia de entrar. A milícia é a polícia. Ela domina as atividades econômicas. Por exemplo, a distribuição do gás: ninguém mais vende gás a não ser a milícia. A polícia do Rio achou um depósito em Campo Grande com 5 mil botijões de gás, que ocupava um quarteirão inteiro. Domina também o transporte alternativo, que é sua maior fonte de financiamento. Domina o gatonet [a instalação pirata de TV a cabo]. E cobra a taxa de segurança – que eu chamo de taxa-lhe-protejo-de-mim-mesmo. Mas o seu discurso é o da “ordem”, do combate ao tráfico, porque eles buscam a legitimidade, querem o poder, dialogam com o poder. Eles têm um projeto de estado. É diferente de quem nunca esteve no estado – nem nas suas escolas, nem na sua saúde. Eu não estou dizendo com isso que você não tenha que enfrentar o tráfico para enfrentar só a milícia. O que você não pode fazer é ficar escolhendo quem vai enfrentar. Crime é crime e tem que ser enfrentado. Hoje não estamos enfrentando quem é mais perigoso.

E a milícia reproduz as hierarquias do Estado? 
Não necessariamente. Tinha muito cabo, muito sargento dono de milícia, que empregava gente de patentes mais altas. É gente que vive nas comunidades e que já tinha relações antigas ali. Então eles dominam essas atividades econômicas que são extremamente lucrativas. Tivemos acesso ao faturamento só com o transporte alternativo de uma das milícias. Eles faturavam R$ 60 mil por dia. Esse dinheiro compra muita arma e muita gente – e serve para fazer campanha. O domínio territorial das milícias se transforma em domínio eleitoral. Todo miliciano é reconhecido pela sua capacidade de brutalidade, mas é também dono de um centro social e faz atendimento, o que é típico da máfia. É um braço de terror e outro braço de assistência.

“O estado não é ausente. Na zona sul ele leva serviços. Na favela, os instrumentos de controle. E o controle pode ser leiloado”

Como são esses centros sociais? 
São casas que oferecem atendimento odontológico e ginecológico, cabeleireiro, tiram documentos, fazem festas. E muitas vezes são conveniadas com o poder público, recebem dinheiro do estado. É mais do que um desleixo do poder público, é o poder público que se sustenta através do estado leiloado. Eu diria que, hoje, aqui na Assembleia Legislativa, 90% dos deputados têm centro social – o que não quer dizer que eles sejam todos milicianos, mas mostra o estado da democracia aqui no Rio.

E, quanto mais tempo esses centros sociais continuarem lá, mais difícil vai ser se livrar deles, não é? 
Até porque é diferente do tráfico. Para livrar-se do tráfico, o estado fala: “Vou botar uma UPP aí, a polícia vai entrar, saiam”. Mas você vai fazer o que com a milícia? A milícia é a polícia. O único jeito de combatê-la é com inteligência policial. Você precisa olhar para dentro da sua polícia, saber quem é quem, precisa de investigação. Nós conseguimos colocar mais de 500 milicianos na cadeia com a CPI, e claro que isso é importante. Mas tirar da milícia esse território e esse poder econômico é muito mais importante que as prisões, e isso não foi feito.

Divulgação

Fraga, o deputado do filme Tropa de Elite, mais do que inspirado em Marcelo Freixo

Fraga, o deputado do filme Tropa de Elite, mais do que inspirado em Marcelo Freixo

O poder delas então não diminuiu?
Na época da CPI eram 170 áreas dominadas pelas milícias, hoje são mais de 300. Porque apenas prender não elimina a milícia, inclusive porque ela continua comandando de dentro da cadeia. Hoje a milícia mata uma juíza, ameaça um parlamentar, tortura jornalistas. Ano que vem ela vai eleger gente para a Câmara dos Vereadores.

E como faz para combatê-las? 
Tem que ter vontade política de enfrentá-las, não basta vontade policial, não basta prender. Tem que tirar delas o domínio do transporte alternativo – o prefeito até agora não fez nada em relação a isso. Para isso, claro, o transporte público tem que funcionar. A Agência Nacional de Petróleo tem que fiscalizar a distribuição do gás – não fiscaliza. Milícia até hoje não é nem crime no Brasil. Se um membro é condenado, é por formação de quadrilha, tentativa de homicídio, homicídio, porte de arma... O projeto para criminalizar a milícia está tramitando desde 2009 no Congresso, mas ninguém tem interesse em votar. Em 2009, fui ao Congresso Nacional, em Brasília, para dizer que essa realidade era só do Rio, mas em breve seria nacional. Voltei agora em 2011 pra dizer “essa realidade já é nacional”. Porque o governo não fez p... nenhuma. O que leva o Rio de Janeiro a ter milícia não é uma exclusividade carioca. Polícia mal paga, polícia e política envolvidas em domínio territorial, clientelismo e assistencialismo político misturados: esses ingredientes você encontra no Brasil inteiro. Hoje tem coisa muito semelhante às milícias do Rio em muitos lugares do Brasil.

E, enquanto você está sozinho defendendo essas medidas, você fica numa posição muito frágil, não é? 
Se matam você, acaba o problema deles... Não, ainda tem alguns promotores, alguns poucos juízes. Tinha, por exemplo, a Patrícia Acioli.

Você conhecia a Patrícia? 
Eu tinha pouco contato com ela, mas admirava o trabalho que fazia. Ela me procurou na época da CPI, me pediu o relatório, que ajudou nas investigações dela. A morte dela, para mim, foi um baque muito forte, uma barreira que eles venceram. Quando os caras matam uma juíza, usando arma do estado e munição do estado, isso não é um descuido, é um recado. Prenderam o assassino e, no dia seguinte, o comandante do batalhão foi visitá-lo na cadeia. Então é uma afronta. É o crime organizado peitando, três anos depois da CPI. Isso não mostra enfraquecimento. Depois do crime, eu recebi o filho da Patrícia aqui. Ele estava muito emocionado e veio me falar que a mãe dele tinha votado em mim, que ela gostava muito de mim, que ele queria acompanhar o mandato e que ele só queria me pedir uma coisa: para eu não desistir. Isso foi muito forte.

“O que leva o Rio de Janeiro a ter milícia não é uma exclusividade carioca”

Mudou muito o modo como você encara o risco que está correndo? 
Muito. Acho que, no fundo, eu acreditava que era difícil eles fazerem alguma coisa comigo. Eu não achava que eles fossem capazes de fazer alguma coisa, porque a consequência ia ser muito grande, ia dar uma m... muito grande. Com a morte da Patrícia, isso em mim teve uma mudança radical.

E aí, logo depois, as ameaças contra você começam a se intensificar. 
Pois é. O assassinato dela foi em agosto, em outubro eu começo a receber uma ameaça atrás da outra, num ritmo que eu nunca tinha recebido. Foram sete num mês, duas por semana. Antes disso, tinham sido 20 ao longo de dois anos e meio. E aí mexe muito.

Foi aí que você resolveu sair do país? 
Sim, isso é importante esclarecer. As ameaças foram chegando e eu comecei a encaminhá-las para a Secretaria de Segurança, e não recebia nenhum retorno. Um dia, eu recebo uma documento num papel timbrado da coordenadoria de inteligência da polícia militar. Papel oficial, assinado, que falava de “informações contundentes de risco”, envolvendo o Carlão, que fugiu da cadeia e teria recebido R$ 400 mil do Tony para me matar.

E você conhecia essas pessoas? O Carlão e o Tony? 
Claro, foram indiciados por nós na CPI. O Carlão tinha acabado de fugir, pela porta da frente da cadeia. É gente poderosa, ele tinha um escritório dentro da detenção. Aí eu peguei o telefone e liguei para o Mariano [José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Rio], para saber que providência eles estavam tomando. O Mariano não sabia de nada. Um documento oficial de um órgão subordinado à secretaria, como é que o secretário não sabe? Isso foi um sinal claro para mim de que eles não estavam fazendo nada. Foi então que entrei em contato com o pessoal da Anistia Internacional, e eles se ofereceram para me tirar por uns tempos do Rio. E eu aceitei com três objetivos: primeiro, distensionar minha família. Segundo, reforçar minha segurança. Eu já tinha pedido antes, mas eles não estavam atendendo, não por má vontade, pura burocracia. Seria o tempo para trocar o carro, pegar um com uma blindagem melhor, o que foi feito. E, terceiro, denunciar que as milícias estão mais fortes e que essas ameaças que eu estou recebendo não estão sendo investigadas.

E aí veio a insinuação de que a história toda não passava de marketing político para lançar sua candidatura a prefeito. 
Sim. No segundo dia depois que cheguei à Espanha surge uma informação na mídia de que eu estaria indo para dar palestras numa agenda que já estava marcada. Uma coisa totalmente estapafúrdia. E aí o representante da Anistia teve que dar uma entrevista no rádio no Brasil para desmentir essa versão. E, conforme o Boechat [o jornalista Ricardo Boechat, da BandNews] disse no ar, essa história foi plantada pela própria equipe do prefeito. Para o prefeito fazer isso, ele deve estar incomodado com a minha candidatura.

“Minha campanha não tem dinheiro. Minha aliança é com a sociedade civil”

E como é a construção política dessa candidatura? É viável mesmo? 
Olha, é uma candidatura dificílima, porque a disputa é muito desigual. O Eduardo [Paes, atual prefeito, que busca a reeleição] tem 18 partidos ao lado dele, inclusive duvido que ele consiga lembrar os nomes de todos. Fora Fifa, COI, CBF. Então vai ter muita gente com muito dinheiro, muito recurso. Nós temos gente trabalhando de graça e ideias.

Vai ter um esforço de criar uma coligação, de atrair outros partidos?
A gente está muito empenhado no debate de programa. A grande aliança é com a sociedade civil. Quando o programa estiver pronto, no início do ano que vem, aí em cima da proposta de cidade a gente vê quem quer apoiar. Interessa muito o apoio da Marina Silva, que está num campo ético. Vou conversar com o Romário, por que não? O Romário tem sido um aliado nas brigas nossas contra a CBF. Estamos conversando com o Gabeira.

Arquivo Pessoal

os padrinhos no batismo do pequenino Freixo

os padrinhos no batismo do pequenino Freixo

Quem é que financia sua campanha? 
Ninguém. Não tem dinheiro. Se você pegar as contas, é de rir.

Ninguém? 
Tem assim um primo que deu um dinheiro, um militante que organizou uma festa. O cara pode ajudar com R$ 1 mil, que nas grandes campanhas não significam absolutamente nada, mas para a gente é um luxo. O José Padilha, que é um grande amigo, quer reunir um grupo de empresários que queiram ajudar.

E essa questão de financiamento de campanha, isso é o nó da política brasileira? 
Eu acho isso fundamental. O financiamento público de campanha é um passo importante, porque senão a eleição é mercado. Porque quem financia campanha não financia por simpatia, financia porque é negócio. Parte da sociedade ainda acha que é um absurdo gastar dinheiro público com campanha. Acontece que a gente gasta muito mais dinheiro público com financiamento privado, porque a fatura é alta. No nosso modelo político, o poder do dinheiro determina o resultado eleitoral e isso faz com que a eleição vire um grande negócio. Olhe para as empreiteiras. Quando você vê o Eike Batista ter uma isenção enorme do governo Cabral e depois contribuir com a campanha dele com exatamente 1% do valor que ele teve de isenção, você vê o que a eleição virou.

E um setor que tem poder econômico no Brasil é o tráfico de drogas.
O tráfico de drogas, de armas...

Você acha que tem dinheiro do tráfico de drogas e de armas nas campanhas eleitorais pelo Brasil? 
Não tenho a menor dúvida. Olha só, todo grande negócio precisa de força política, seja lícito ou ilícito. O crime é um grande negócio. O crime não é feito por um desvio de personalidade, alguém que apanhou muito na infância. Ele está dentro da lógica do capital, do investimento, do lucro. E todo grande negócio precisa ter trânsito no Congresso, no Senado, nos ministérios.

Como você vê a política de drogas no Brasil? Como resolve esse problema? 
A lógica repressiva às drogas é uma catástrofe no mundo. O resultado da política de repressão das drogas é o aumento do consumo e da violência. Esse é um debate fundamental de caminhar para o campo da saúde. Enquanto for ilegal esse é um debate exclusivamente policial e isso é uma barreira gigantesca. Eu sei o problema que é. Perdi muitos amigos por conta de drogas. Quem tem alguém drogado em casa sabe o drama que é.

Seja crack ou seja álcool? 
Seja o que for, pode ser droga legal ou ilegal, não dá para ser insensível. A gente só vai ganhar esse debate na hora que a sociedade entender, inclusive os setores mais conservadores, que esse não é um discurso de estímulo à droga. Não pode ser um debate assim: eu sou progressista e você é moralista. Quem ganha com isso é o comércio ilegal.

E agora você está terminando uma nova CPI, não é?
Desta vez para investigar o comércio de armas. Vai fazer tanto barulho quanto a das milícias?
 É uma CPI diferente. Desta vez, não vai ter indiciamentos, até porque o estado nem sequer sabe quem são as pessoas envolvidas. Há dez anos nenhum traficante de armas é preso no Rio de Janeiro, apesar da quantidade absurda de armas que tem por aí. Desta vez vai ser uma CPI muito propositiva no que diz respeito às falhas do poder público no comércio ilegal de armas. Porque o comércio de drogas já nasce ilegal. Arma não. A arma é produzida na fábrica, de maneira legal, só depois uma parte grande da produção é desviada para o comércio ilegal. E o estado tem um descontrole absoluto. Exército não troca informação com polícia federal, que não troca com a polícia civil. Não compartilham dados, não produzem inteligência. A gente quer apontar o que poderia ser feito. É uma CPI pedagógica. Aliás todo meu mandato a gente acha que tem um caráter pedagógico, de construir um novo olhar e uma nova compreensão sobre as coisas. De não achar que o jeito como as coisas são é natural ou que é impossível mudar.

Pedrinho Aguinaga

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Leando Pagliaro

Pedrinho Aguinaga

Pedrinho Aguinaga

Pedrinho Aguinaga era apenas um jovem carioca de família bem relacionada, até que foi eleito o homem mais bonito do Brasil em um programa de TV. Vieram os convites para festas e viagens, os amigos famosos e muitas mulheres: Monique Evans, Vera Fischer, Liza Minelli, Demi Moore... Ele encarnou também o garoto-propaganda de um cigarro com o slogan “O fino que satisfaz”. Mas, após cinco décadas fumando, a nicotina já não satisfaz. Aos 61 anos, ele promete: “Amanhã eu paro”

 

Quando se pensa em propagandas de cigarro, logo vêm à mente aquelas produções arrojadas, milionárias. Houve uma, contudo, que prezava pela simplicidade – e talvez seja justamente por isso que ela permaneça no imaginário dos brasileiros até hoje. O reclame de Chanceller era um galã numa sala de decoração clássica, um bom texto e nada mais. “O fino que satisfaz”, dizia o slogan, um trocadilho que aludia à finura do cigarro e à magreza do rapaz vestido de branco.

Três décadas e meia depois, o fino não satisfaz mais ao garoto-propaganda. Com 61 anos de idade, fumando há 50, Pedrinho Aguinaga quer largar o cigarro. “Subir dois lances de escada e ficar ofegante?! Não estou gostando nada disso. Sai mal na fotografia!”, explica. Mas até que ele não tem do que reclamar. Tirando o pigarro insistente, um leve amarelado nos dentes e uma intoxicação após as filmagens do comercial, por conta dos inúmeros cigarros que foi obrigado a acender, ele garante que ainda não teve grandes problemas decorrentes do vício. Pelo contrário, gaba-se de sua forma física e da “barriga tanquinho”, que sua camisa aberta deixou à mostra durante a entrevista.

A última fala de Pedrinho na propaganda era assim: “Aí você diz: ‘Se Chanceller é tão bom e tão fino, onde estão os carros maravilhosos, os aviões, iates, helicópteros de todo comercial de cigarro?’. Aí eu respondo: ‘E precisa?’”. Tal qual Chanceller, ele nunca precisou. Mas, graças aos amigos, gozou de tudo isso. O prêmio de homem mais bonito do Brasil, ganho no programa de Flávio Cavalcanti em 1970, funcionou como um passe expresso para o mundo dos ricos e famosos.

A vocação para bon-vivant, é bem verdade, já despontava na família. Fernando, seu pai, dentista que nunca exerceu a profissão, era apelidado de Barão e costumava receber em casa gente como Ibrahim Sued (colunista social carioca), Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves. “Ele era ainda mais bonito do que eu, vestia-se muito bem e conversava sobre qualquer assunto”, rememora. Sua mãe, “uma mulher incrível”, era oficial da marinha norte-americana.

Sem muito esforço, Pedrinho construiu uma biografia das mais consteladas. Em uma temporada em Nova York, conheceu Andy Warhol. Foi amigo do bailarino Nureyev, do diretor Pasolini. Atuou em filmes dos Trapalhões, protagonizou uma das cenas mais quentes da história do cinema brasileiro em Rio Babilônia, de Neville D’Almeida, e participou de Banana mecânica, de Carlos Imperial. Colecionou affairs com tantas musas que faria inveja até a Jorginho Guinle – entre os troféus que ele revela, estão Vera Fischer (na época com 18 anos), Rose di Primo (“Primeiro avião brasileiro”), Maria Callas (“Cantou para mim acompanhada de quatro chiuauas!”), Bianca Jagger (“Correu atrás de mim em Londres com a perna quebrada!”), Marisa Berenson (“O melhor corpo que já vi”), Liza Minelli (“Era uma espoleta!”), Demi Moore (“Viajamos para Angra em uma caminhonete sem freio”) e Monique Evans, com quem chegou a morar junto. Essas e outras histórias ele conta salivando, com o costume aristocrático de se referir a todos, famosos ou não, por nome e sobrenome. O repórter, ele chama de príncipe.

“Parar é fácil”

Trip encontrou Pedrinho em seu apartamento em Copacabana, no quarto andar do prédio Alice, construído pela sua avó. Hoje o playboy leva uma vida espartana, financiada pelo aluguel de imóveis da família e por trabalhos esparsos. Em 2007, participou de um ensaio que o fotógrafo americano Terry Richardson fez no Rio de Janeiro. No ano passado, estrelou a campanha de Dia dos Pais da marca de roupas Reserva. Atualmente, se diz ph.D. (“por ‘hora’ desempregado”).

Antes habitué das boates Studio 54 e Hipopotamus, Pedrinho aposentou-se da noite. Consequentemente, as namoradas diminuíram. “Ninguém me aguenta mais, estou ficando muito chato”, revela. Depois de conhecer Deus e o mundo, diz que seus melhores amigos “são o padeiro, o porteiro e o açougueiro da rua”.

a antológica propaganda de Chanceller

a antológica propaganda de Chanceller

Esta não é a primeira vez que ele tentará parar de fumar. “Parar é fácil, já parei centenas de vezes”, brinca. Mas agora, garante, é para valer. Pé de valsa que é, ele quer estar bem para dançar com a neta de 2 anos, filha de Armando, fruto da relação com Monique. E explica, com os olhos cheios d’água, que só não para imediatamente porque Penélope, sua labradora de 13 anos, fora sacrificada poucas horas antes. Mas ele jura: “Amanhã eu paro”.

Quando você começou a fumar? 
Comecei a fumar com 11 anos, em 1961. Estudava em colégio interno e antigamente a informação que se tinha era completamente diferente. Era o final de uma época em que se anunciava que o tabaco fazia bem.

Médicos apareciam em publicidade de cigarro... 
Todo mundo fumava! Se você pega um filme até a década de 50 todos que estão em cena estão fumando. Era impressionante o poder do cigarro! Quando criança, eu fumava dois cigarros por dia, isso quando dava para fumar. Escondia no bolso do casaco para o padre não pegar, botava nas costas da mão e conversava com ele ao mesmo tempo tentando disfarçar... Às vezes, a gente tinha que colocar dentro do bolso, aceso mesmo, e o padre falava “vamos conversar um pouco” e você, “não, agora não posso”.

Seus pais fumavam? 
Meu pai fumava muito, minha mãe nunca fumou. Ele fumava quatro maços por dia. Não tinha cinzeiro, tinha tacho. Aí parou um dia. O médico deve ter dito que, se ele não parasse, não ia ver o próximo Natal. Foi isso que deu a ele uma sobrevida, pois morreu com 86 anos. Os Aguinagas são todos bem longevos. Tenho um tio de 95 que está puto com o Detran porque não querem renovar a carteira dele. Outro, com 91, está inconformado com a Infraero, porque não deixam ele tirar um brevê de piloto.

Como foi sua infância? 
Nasci no Rio de Janeiro, mas logo fui mandado para São João del Rei. Como fazia muita besteira, meu avô exigiu que eu fosse mandado para um colégio interno. Minha mãe era americana, não queria bater de frente com ele. Então eu fui. Quem ficou encarregada de mim lá foi a dona Sinhá, uma senhora de 81 anos que era mãe do Tancredo Neves, que era amigo do meu pai. Depois fui para Petrópolis, para outro internato, e depois para o Dom Pedro II, quando voltei para o Rio de Janeiro, aos 15 anos. Lá foi minha fantasia erótica juvenil.

Foi onde aconteceu sua iniciação sexual? 
Não, sacanagem fiz desde cedo. A primeira foi com a filha da empregada do colégio, uma negona de 14 anos, e eu com 9, 10. Eu tinha ganhado uma bicicleta aro 28 que não dava pra mim, era muito grande. Ela me perguntou se podia dar uma volta com ela e eu disse “pode, mas depois vai ter que ir pra escada comigo”. Ela topou. Tive que ficar no degrau de cima para dar pé. O canivete ficou logo apontado [risos]. Lembro até hoje do cheiro dela, das tetas. Ela era nova, mas era grande tipo o beque central do Vasco.

Mas essa foi a sua primeira vez de verdade? 
Não, a primeira eu devia ter uns 13 anos. Estava com um amigo meu de 16. Ele roubou o telefone de umas putas que o irmão mais velho tinha, ligou e marcou duas meninas para a gente. Foi num quarto e sala aqui em Copa mesmo.

Foi bom? 
Foi rápido [risos]. Se eu tivesse a experiência de hoje com a vitalidade de ontem eu seria imbatível.

Ser bonito trazia problemas para você na escola? 
Imagina eu com 1,5 metro, pesando 40 quilos. Eu era uma festa pra garotada, mas era sempre malandrinho. Levava muito cascudo, era abusado, mas corria muito. Pra me pegar tinha que correr.

Você tem a fama de nunca ter trabalhado na vida. Já teve algum trabalho formal? 
Claro, pô. Trabalhei como assistente de produção na Globo quando eu tinha 17 anos. Fui parar lá via Walter Clark, que era amigo do meu pai. Também já tive restaurante e vendi esmeraldas.

O que você dizia que queria ser quando crescesse? 
Queria ser diplomata. Ia fazer [Instituto] Rio Branco, toda essa coisa. Fui pra PUC estudar direito, até que era bom aluno, mas aí rolou a coisa do programa do Flávio Cavalcanti. Eu tinha pedido o Gordini da minha tia emprestado para levar uma menina no cinema drive-in, para assistir a E o vento levou. Na volta, bati o carro, arrebentei as quatro rodas e não tinha dinheiro para pagar. Um amigo do meu pai falou do concurso e eu resolvi ir. O prêmio era exatamente a quantia que eu precisava para o conserto.

Como foi virar de repente o homem mais bonito do Brasil? 
Não mexeu nada comigo, nunca quis ganhar nada disso. Mas acabou me dando muita coisa na vida: conhecimento, relacionamentos, viagens... Isso tudo não tem preço. Mas nunca me deixei virar mercadoria. Todo mundo diz: “Porra, por que você nunca casou com uma mulher rica?”. Se eu tivesse casado, você não estaria aqui me entrevistando. Por isso que digo: não sou uma celebridade, sou um artista célebre. Porque celebridade é “vrup”, e eu estou há anos numa carreira artística. Já atuei em vários filmes, tenho registro de ator, mas não me considero um ator completo. Sou um artista da vida. Sou um bom contador de histórias, tenho histórias fascinantes com gente como Andy Warhol. Maria Callas cantou pra mim acompanhada de quatro chiuauas, porra! Quem mais pode dizer isso?!

Como ficou sua vida após o concurso? 
Comecei a ser convidado para tudo que era festa, festival de cinema. Ponte aérea, por exemplo, era só chegar ali no balcão que as meninas me davam um lugarzinho. Hoje em dia eu não faria isso, mas na época era inconsequente. Comecei também a fazer baile de debutante. Fiz uns 500. Eu gostava de fazer, gostava de dançar valsa. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Quando eu já fazia mais sucesso comecei a exigir hotel para mais dois dias na cidade, para conhecer os lugares. E vou te falar: eu dava trabalho nessas cidades, viu [risos].

 

“Com a consciência que tenho hoje dos malefícios do cigarro, eu jamais faria propaganda. Acho que dinheiro nenhum paga isso”

 

Você ficava com as aniversariantes? 
Não, debutante pra mim era homem, cara. Se você fica com uma, perde o resto. Mas tinha sempre a irmã, a prima da debutante [risos]...

Como você foi parar no cinema? 
Por causa do programa do Flávio também. O primeiro filme foi Minha namorada, do Zelito Viana, sócio do Glauber Rocha. Eu tinha 20, 21 anos, atuei com a Fernanda Montenegro sem nunca ter feito teatro, nada. Depois veio Banana mecânica com o [Carlos] Imperial, para mim o cara que mais entendia de cinema no Brasil. Não só tecnicamente, ele tinha sensibilidade, por mais troglodita que fosse. A gente ficou bem amigo, via três, quatro filmes por dia.

E Rio Babilônia, do Neville de Almeida? 
Rio Babilônia foi uma filmagem de Fellini. Eram 300 pessoas, 150 peladas. Tinha bebida, drogas. Você imagina como foi a filmagem... Eu considero esse filme o melhor retrato da década de 70 no Rio: as drogas, o sexo, a roubalheira.

Como foi fazer aquela cena clássica do ménage à trois na piscina com a Denise Dumont e o Joel Barcelos?
A gente entrou na piscina às duas da manhã e ficou até as seis. Mas a Denise já estava tendo um caso com o Joel. Então, na cena em que ela paga boquete pra mim, na verdade ela está com a boca do lado, enquanto ele estava lá atrás dela mandando ver. Ele estava com o pau duro de verdade, eu fiquei só olhando.

Arquivo Pessoal

 com 15 anos, levantando asa para cima da atriz Claudia Cardinale

com 15 anos, levantando asa para cima da atriz Claudia Cardinale

E o comercial do Chanceller, que foi tão marcante, como rolou? 
O diretor do comercial me chamou, e eu topei na hora. No primeiro teste que fiz nem passei. Depois fiz outro, com uma roupa horrível e achei que tivesse sido pior ainda. Mas eles adoraram. Eu tive que fumar quase cem cigarros para fazer aquela foto clássica, que estampava outdoors no Brasil inteiro. Depois fiquei dias no hospital, completamente intoxicado por aquela fumaça toda.

Você se arrepende da propaganda? 
Com a consciência que tenho hoje de todos os malefícios do cigarro, eu jamais faria. O ideal seria se você conseguisse fumar três por dia, mas é impossível.

Você ganhou um bom dinheiro com a propaganda? 
Acho que foi pouco. Fiquei praticamente casado com a marca por três anos! Se fosse hoje em dia, eu poderia me aposentar para sempre. Estamos falando de uma das maiores indústrias do mundo! Mas hoje acho que dinheiro nenhum paga isso. Só que eu não pensava assim na época. Aliás, acho que ninguém pensava.

Quando você acha que a imagem do cigarro passou a ser percebida como algo maléfico? 
Foi uma coisa gradual, mas acho que isso aconteceu pra valer mesmo na década de 80. Demorou... Você se lembra dos comerciais de cigarro? Eram os melhores, os que mais tinham grana. E o da Chanceller era muito criativo. Não tinha avião, lancha, nada. Só eu. Por isso é que virou “o cigarro do Pedrinho”.

Curiosidade: você fumava Chanceller? 
Não, mas passei a fumar, porque eles me davam.

O slogan “O fino que satisfaz” é um tanto dúbio. Faziam piada na época?
Faziam associação com baseado. Mas nunca ninguém brincou com a ideia de que eu tivesse pinto fino.

Você é vaidoso? 
Não. Fiz a barba hoje porque queria matar o tempo, que não passava.

Mas nunca ligou pra roupa, essas coisas? 
Nunca.

Mas você sempre se vestiu tão bem... 
É que os meus amigos sempre me davam roupas. Desfilava para o Simão Azulay, aí ganhava outras várias. Mas não ligo para marca. Só fui saber que existia a Reserva, por exemplo, depois que me chamaram.

Você falou que conheceu o Andy Warhol. Foi na sua temporada como modelo em Nova York? 
Isso. Fiquei lá quatro meses, fui para trabalhar na maior agência de modelos da época. Mas, como teria que começar tudo de novo lá, e eu já tinha a minha história no Brasil, voltei. Posso dizer que tive uma vida prazerosa em Nova York. Éramos um grupo grande ligado a ele. Íamos toda noite na Factory [o famoso estúdio de arte criado por Warhol], depois saíamos em caravana para algum lugar. E ele levando aquelas Polaroids para todo canto. Os filmes eram caros, mas ele ganhava. Não parava de clicar todo mundo.

Dizem que ele era bem excêntrico. 
Ele era esquisitão, só saía de noite. E todo maquiado, porque era quase albino. Ele falava com os olhos, conversava pouco. Para trocar ideia com ele, ele que tinha que ir até você. Ele falava comigo porque me achava bonito, dizia que eu parecia um Joe Dallessandro [muso de Warhol] mais bem-acabado. Ele gostava tanto de mim que fez uma matéria de uma página comigo na Interview [revista fundada pelo artista].

Vamos falar de mulheres? 
Contanto que não sejam brasileiras, vamos.

Por que brasileiras não? 
Porque muitas são avós hoje e, às vezes, não querem se lembrar da história, não querem ser mencionadas. Então se você quiser podemos falar sobre as estrangeiras, algumas que não se importam.

Você contava as mulheres com que ficava? 
Não, era incontável. Entre os anos 70 e 80 era toda noite. Não tinha problema, era só olhar. Minha vida era fácil nesse sentido. Por isso que eu digo que tive uma vida sexual feminina.

 

“Eu tive uma vida sexual feminina. Ficava parado, olhava, dava um sorriso e meia hora depois já estava lá”

 

Como assim? 
Eu chegava no lugar e não precisava ficar lutando. Ficava parado, olhava, dava um sorriso e meia hora depois já estava lá.

A Liza Minelli está na mesma edição da Interview em que você foi entrevistado. Foi nessa época que vocês namoraram? 
Não. Só fui conhecer a Liza no Rio. Tínhamos uma amiga em comum, uma ex-namorada minha, que havia feito o filme Cabaret com ela. Nós nos divertimos na Sapucaí! A Liza era uma espoleta e eu, caretão. Na época eu nem bebia.

E a Demi Moore, como foi a história? 
Ela tinha 18 anos. Veio fazer um filme, o primeiro filme dela, chamado Blame it on Rio, com o Michael Caine. Eu li numa coluna social que ela tinha brigado com o namorado, então já fiquei esperto. Encontrei ela na [boate] Hippopotamus, começamos a conversar e eu perguntei a ela: “Você conhece o paraíso? É um lugar com 365 ilhas, uma para cada dia do ano”. Então cinco e meia da manhã estávamos eu, ela e o Mário de Almeida Franco Júlio numa caminhonete D-20 em direção a Angra dos Reis. Voltamos um dia e meio depois, sem freio na caminhonete [risos]. Bombeia, vai para o acostamento, puxa o freio de mão… Uma loucura. Quase que a grande atriz não sobrevive. Mas na época ela tinha um problema feminino de retenção de líquido, parecia que era cheia de celulite.

Ela ficou mais bonita depois então? 
Muito mais. Porque quando eu a conheci ela tinha aquele cabelo de americana lisinho, um peitinho de moça que era a coisa mais bonita do mundo. Ela não era “a” Demi Moore ainda, eu é que era “o” Pedrinho Aguinaga, entendeu?

A história de vocês acabou em Angra? 
Sim, ela foi embora para os EUA. Eu fiquei aqui, tinha 500 mulheres para…

Você nunca teve namoros mais sérios? 
Não tinha por quê. Muitas vezes as pessoas reclamavam: “Pedro, você só anda sozinho”. Eu falava: “Piores são vocês, que andam com pessoas que não querem mais ter do lado só para agradar os outros”.

Mas não batia solidão às vezes? 
Não. A solidão está dentro de você. Eu conheço gente que vive cercada de amigos e está na maior solidão do mundo. Solitário não quer dizer solidão. O solitário é aquele que anda sozinho. E eu gosto, me locomovo melhor assim. Era sempre do mesmo jeito: eu saía sozinho, mas no final da noite estava com um grupo grande, a gente ia pra um outro lugar etc.

E o casamento com a Monique? 
Foi em 1978, no final da fase mais farra da minha vida. Com ela eu parei. Nos conhecemos na boate Dancing Days. Eu tinha acabado de namorar a Rose di Primo, primeiro avião do Brasil. Falei para minha amiga que estava comigo que ia casar com a Monique. Dito e feito. E olha que ela era casada na época... O marido foi assassinado, mas começamos a namorar quando ele ainda estava vivo.

A gravidez foi sem querer? 
Mais ou menos. Estávamos morando juntos, daí ela engravidou, montamos este apartamento aqui, que era uma gracinha, todo preto e branco. A primeira mega-sena que eu ganhei na minha vida foi o meu filho. Nunca precisei falar duas vezes com ele. Ele é uma doçura, gente fina. Completamente diferente de mim, sério, organizado.

Já houve atritos, por conta das personalidades diferentes? 
Nunca! Fiquei 15 anos respeitando as loucuras da mãe dele. E nunca respondi, porque quem sofre com essas coisas são os filhos. Quando ele tinha 16 anos, ela deu uma daquelas, e ele me disse que eu não precisava explicar, que ele conhecia a mãe.

 

“Hoje em dia ninguém me aguentaria mais, estou ficando muito chato. Sou muito solitário, cheio de manias”

 

O que mais te atrai numa mulher, Pedro? 
A estética. Mas nem sempre tive namoradas esteticamente fulgurantes. Hoje em dia ninguém me aguentaria mais, estou ficando muito chato. Sou muito solitário, cheio de manias. Alguém botar uma escova de dentes dentro da sua casa já tumultua. Se fosse para ter um romance maior hoje teria que ser em dois apartamentos. Eu não tenho medo de ficar sozinho. Qualquer coisa, um amigo pode bancar uma enfermeira. Mas melhor que seja uma enfermeira puta! Carrega, paga um boquete, faz isso, faz aquilo [risos].

Li uma declaração em que você diz que se sente usado pelas mulheres. 
Foi uma brincadeira. Porque todo mundo fala que as mulheres são usadas pelos homens, mas eu não, eu é que era usado! Eu era fraco, dava para qualquer uma [risos]. Tinha um motel perto do Hippopotamus. Cansei de sair de lá, ir para o motel, voltar lá e pegar outra, ir de novo para o motel...

Usava camisinha? 
Nem pensava nisso. O máximo que você pegava era um herpes, mas eu nunca tive doenças venéreas, e olha que dei a cara a tapa. Perdi amigos para a Aids.

Você só gosta de mulher? 
Sexualmente, só. Tive muitos amigos homossexuais, era cortejado, paparicado, mas nunca tratei ninguém mal nem tive bronca.

De onde vem essa mania de chamar todo mundo de príncipe? 
Desde pequeno. Antes eu chamava todo mundo de “minha flor”. Uma vez no meio de uma briga eu falei isso para o cara. E ele: “Você tá me sacaneando?!”. Sempre teve muita gente querendo brigar comigo.

Muitos maridos, imagino... 
Maridos, namorados... Eu andava sozinho, tinha que ter jogo de cintura Mas nunca tive nenhum problema sério. Me diziam: “Vou te dar uma porrada!”. Eu falava: “Isso é fácil. Quero ver me dar uma televisão em cores!”.

Você participou do livro que o fotógrafo Terry Richardson fez recentemente no Rio de Janeiro. Foi legal? 
Fiz as fotos lá com as gêmeas no quarto, depois ele me chamou de volta. Eu estava sozinho naquela cama gigante, pelado, e ele me perguntou se a assistente dele podia fazer as fotos junto. Antes de eu responder ela já estava lá, nua, me dando beijinhos. Depois foi direto e “glag, glag, glag” no meu pau. “Daqui eu não saio”, falei. As fotos foram numa senhora casa, com comida, bebida, pista de dança, tudo. Foi uma tarde ótima.

 

“Os maridos traídos me diziam: ‘Vou te dar uma porrada!’. Eu falava: ‘Isso é fácil. Quero ver me dar uma televisão em cores!’”

 

Qual a sua maior habilidade? 
Eu sou um contador de histórias. E, se eu não conheço, eu invento!

Você inventou alguma aqui? 
Não, aqui é tudo mecânico. Falta muita coisa, porque não tenho uma memória boa. De vez em quando uns amigos vêm com umas histórias que eu nem acredito que são minhas.

Pedrinho em versão barbada

Pedrinho em versão barbada

Você sente falta da vida da noite? 
Não é que eu sinto falta, mas gosto de lembrar, claro. Era um outro Rio de Janeiro. Era o começo de muita coisa, da sexualidade, das drogas... As drogas não tinham essa conotação de violência, eram ligadas a outras coisas.

A que exatamente?
 
Ao prazer.

O que se usava mais na época? 
Maconha.

Mas na noite imagino que o pessoal usava mais cocaína, não é? 
Ah, muito mais. Às vezes eu ficava pensando que os arquitetos tinham que fazer as boates com dez banheiros e uma sala, em vez do contrário. Todo mundo ficava só nos banheiros.

Como é sua relação com as drogas? 
Posso dizer que extraí o melhor delas.

O que mais você usava? 
Ácido nunca foi a minha praia. É uma onda muito cerebral, cansa. Gosto de ter o domínio da viagem. Tanto que não gosto de beber. Deus me livrou desse vício.

Voltando ao cigarro, você já tentou parar outras vezes? 
Como diz o Mark Twain: “Parar é fácil, parei centenas de vezes” [risos]. Hoje fumo 10, 11 cigarros por dia. Mas já fumei dois maços. Ontem e hoje fumei muito mais, por causa da Penélope. Mas quarta-feira eu vou parar. E vou parar porque o cigarro não me acrescenta mais nada. Daqui pra frente, se eu continuar vou perder horas de dança com a minha neta, horas de entretenimento com meu filho, horas com os amigos... Tenho que decidir pela qualidade de vida agora. Já sei de todos os malefícios, de todos os prazeres que o cigarro dá. O que eu podia tirar dele, eu já tirei e, se Deus quiser, agora eu vou parar.

Qual é exatamente o prazer do cigarro? 
É a ideia da realização. Qual é a grande imagem do cigarro? O cara fumando depois do sexo, depois do orgasmo. É a cereja do sundae. Ou então no jogo... Porra, eu ia jogar e eram três, quatro maços do lado. Mas tem viciado para tudo. Eu tinha um amigo que era viciado em remédio para nariz. A gente ia jogar e ele levava três tubinhos. Se tivesse dois ele saía para comprar outro. E o cara era médico! Teve que fazer tratamento para abandonar o vício.

Então você já tentou parar. Agora é pra valer? 
Não tenha dúvidas. Tenho todas as dicas médicas. A Analice Gigliotti, sobrinha do Chico Anysio, tem uma clínica só para isso e está me ajudando no tratamento.

E ele inclui o quê? 
Pastilhas, adesivos, mas, principalmente, treinar a força de vontade. Sempre que tiver vontade de fumar, você bebe água, come alguma coisa. É uma substituição orgânica. Primeira coisa que fiz foi mudar os horários do cigarro. Eu acordava e a primeira coisa que fazia era acender um. Depois que eu ia pensar no dia. Agora eu tomo café da manhã, leio jornal e depois acendo um cigarro. Não posso ter cigarro perto de mim. Eu não tendo, não vou fumar. A nicotina não me dá mais prazer.

Você já teve alguma doença decorrente do fumo? 
Graças a Deus, não.

Já perdeu algum amigo por causa dele? 
Uma porrada, perdi a conta. Pior quando é câncer de boca, de laringe, essas coisas. Eu tinha um amigo argentino, o Miguel, maior playboy da década de 60, que teve câncer de laringe. Era jogador de polo, dono da maior companhia aérea da Argentina, falava sete línguas, não podia ver um rabo de saia, e aconteceu isso. Um dia fiz uma visita e ele parecia bem, todo bronzeado, de terno, elegante. Mas aí disse com uma voz horrível: “Solo no puedo hablar”. Imagina ficar sem falar para o resto da sua vida!

Então esse é um dos seus últimos cigarros, Pedro? 
Meu limite é agora, para dar tempo de o meu organismo se regenerar e me dar uma vida melhor no futuro. Sou esportista, gosto de me mexer. Tudo que é canalizado para o cigarro vou canalizar em outras coisas. Acordar sete da manhã, subir dois lances de escada e ficar ofegante!? Não estou gostando nada disso. Sai mal na fotografia. Eu já tenho todas as armas. Meu filho tem horror a cigarro. Se eu chego com cheiro de cigarro ele nem deixa eu beijar minha neta. Então prefiro abdicar dessa porcaria, que me faz mal, e dançar com a minha neta. Mas para isso eu tenho que estar bem. Tenho 61 anos, mas com essa barriga de tanquinho. Faço pilates, consigo fazer isso [levanta e encosta a mão no chão] e agora vou pegar um pesinho. Se vocês esperassem 20 dias, teriam um galã de verdade. Mas aí vocês fazem outra reportagem: “Pedrinho Aguinaga depois do cigarro”.

P.S. : Na véspera do fechamento desta edição, entramos em contato com Pedro para saber como andava sua luta contra o cigarro. De Búzios, no litoral carioca, onde está passando uma temporada na casa de um amiga, ele respondeu: “É difícil, mas estou reduzindo. Fumo um, dois cigarros por dia. Quando bate ansiedade, dou uma caminhada, vou nadar. Estou me divorciando do cigarro. 
E sem reconciliação”.

Alex Polari

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Desde moleque, Alex Polari quer fazer revolução. Primeiro, como militante político na ditadura. Foi perseguido, torturado e preso por nove anos. Solto, descobriu na ayahuasca uma missão ainda maior: mudar a sociedade, e a si mesmo, através de um despertar espiritual. Um dos líderes da maior comunidade do Santo Daime no mundo, com raízes que se estendem do Acre à Holanda, ele anuncia: “O mundo só vai mudar quando a gente perceber que somos mais do que matéria... Somos luz”

Hoje a Holanda é um país de igrejas vazias. Praticamente 70% da população não se associa a nenhuma religião. Metade desse número se diz ateia. Sem párocos ou paróquias, toda cidade tem de capelas a catedrais disponíveis para locação. Festas, reuniões políticas, feiras, exposições, aulas, peças de teatro tomam hoje o lugar de missas e pregações. Mas não naquela noite, quando um templo com mais de 300 anos de idade nos arredores de Amsterdã foi alugado para servir como uma improvável... igreja.

Do lado de fora, neve densa. Onze graus negativos. Debaixo da abóbada, cerca de 150 pessoas, a maioria grisalha, arrumadinha, vestindo branco, espera o convidado de honra. Quando ele chega, um pouco atrasado, dezenas de holandeses se aproximam. Alguns beijam sua mão, muitos fazem questão de saudá-lo em português: “Padrinho”. Alex Polari sorri tímido, um tanto acostumado, um tanto desconfortável no papel de clérigo. Enquanto ele vai tomando seu lugar no altar, uma senhora fleumática espalha um incenso amazônico pelo recinto. Quase sem sotaque, puxa o coro: “Defuma, defumador, essa casa de Nosso Senhor...”. Foi a primeira canção, abrindo mais de cinco horas de cantoria na sessão de Santo Daime.

Alex Polari serviu o chá, tocou o chocalho e puxou o hinário de cura no centro da roda de pessoas. Mas não foi à Holanda apenas para conduzir o trabalho daquela noite. Ele saiu do Céu do Mapiá, comunidade daimista fincada no Acre, para depor em um tribunal em Amsterdã. Depois de dez anos de uma frágil, porém estável, legalidade, um promotor resolveu pedir a proibição do Santo Daime no país. Como representante institucional e internacional da igreja, Polari teve que explicar, pela enésima vez, por que a bebida não é uma droga, mas um sacramento. Não é um alucinógeno, mas um enteógeno (termo para substâncias que “despertam o divino interior”). Que o chá, comprovadamente, não representa risco à saúde pública, ao contrário, tem poder de cura. E que banir a bebida por conta de um alcaloide proibido (o DMT, no caso) é infringir um direito tido como universal nas democracias modernas: a liberdade religiosa.

Muito antes de se tornar um líder espiritual, aliás, Alex Polari de Alverga já precisou depor muitas vezes. Mas sob condições muito diferentes... Foi preso, violentamente torturado, durante a ditadura brasileira. Ele integrava o VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), um dos movimentos de esquerda da luta armada. Participou de assaltos a bancos e sequestrou o embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, antes de cair nas mãos do regime militar em 1971. Viu seu amigo Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel, ser morto na cadeia na sua frente. Tinha 20 anos de idade. Foi solto aos 29.

“Foram anos de profunda reflexão”, ele conta, “em que descobri que não adiantaria lutar por uma transformação social sem uma transformação pessoal, interna. Quando saí eu buscava um caminho diferente.” Um ano depois, em 1981, o caminho apareceu. Foi com um amigo ao Acre para conhecer um obscuro grupo religioso que utilizava um chá psicoativo como sacramento. Bebeu, foi tomado pelos hinos e pelo efeito do chá e teve uma revelação. Viu a história do universo desdobrar-se em sua mente. Vislumbrou o caminho da evolução à dimensão espiritual da vida. Quando aterrissou de volta, era outro. “Minha vida mudou completamente. Tive certeza de que ali era meu lugar.”

Ele foi um dos primeiros a fundar um grupo daimista fora da floresta. Já em 1982 mantinha uma comunidade em Mauá (RJ) e visitava sempre a igreja no Acre. Seu padrinho, o mestre Sebastião, foi o fundador do Cefluris (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra), até hoje a maior e mais reconhecida divisão da igreja do Santo Daime. Sebastião batizou sua igreja com o nome de seu padrinho, o mitológico mestre Irineu, fundador da doutrina do daime da qual as outras linhagens se originaram. Foi de Irineu a revelação original que ecoa até hoje, do Acre a Amsterdã. Quando teve contato, em 1931, com a ayahuasca em um contexto xamânico, viu no poder da bebida a presença do espírito santo. E fez uma releitura cabocla, sincrética, da história de Jesus. Nas palavras de Alex Polari, “nossa igreja é um tipo de cristianismo visionário”.

Alex tornou-se logo peça-chave na difusão e no reconhecimento do daime como uma religião no Brasil. Estudado, articulado politicamente, acompanhou todas as comissões oficiais que foram ao Acre investigar o tal chá que provocava visões e arrebanhava cada vez mais gente fora da floresta. Aprendeu a doutrina, a conduzir trabalhos, a cozinhar o chá, a falar em nome da igreja, a defendê-la diante de juízes e a ser um rosto público de uma malcompreendida religião. Tornou-se, ele também, um padrinho.

Arquivo CEDOC/ CEFLURIS

Padrinho Sebastião, mentor de Alex

Padrinho Sebastião, mentor de Alex

Aos 62 anos, com três filhos, dois netos, a mesma esposa de quando deixou o cárcere, segue cada vez mais ocupado em sua missão. É um dos líderes da comunidade do Céu do Mapiá no Acre, cuida de um complexo projeto de agricultura orgânica e sustentável na floresta, conduz sessões, cozinha daime, ajuda como pode a população carente local e viaja para dar apoio às igrejas do Cefluris que se espalham pelo mundo. Apesar de tudo isso, garante não fazer proselitismo de sua igreja. “É uma experiência tão forte, tão reveladora, que precisa ser parte de uma escolha, de uma busca pessoal”, ele explica. Sua missão, na verdade, não é arrebanhar fiéis. Mas garantir a existência de um contexto institucional e seguro para que a experiência espiritual visionária esteja disponível ao ser humano. Isso, para ele, transcende e muito sua religião. É, talvez, uma questão de sobrevivência da espécie.

“Nossa cultura fragmentou, compartimentou demais o conhecimento. Acabamos nos iludindo demais com nossos egos e ficamos no escuro sem uma conexão com o divino, com o sentimento de totalidade”, ele reflete. “É preciso não apenas compreender isso, mas buscar essa reconexão. Porque, no fundo, não vejo uma saída para essa crise planetária fora de uma transformação espiritual.”

Ele diz isso um dia depois da sessão em Amsterdã. Ainda sob o impacto de uma visão que tive sob a força do daime, ficou difícil duvidar: de olhos fechados, e contorcido em cólicas, vi um oceano fractal e revolto que invadia a Terra. Algo me dizia que, enquanto a humanidade destrói o mundo esperando Jesus, quem vai voltar, no fundo, será Noé, para resgatar o que for possível. Abri os olhos e vi aqueles senhores e senhoras branquinhos, venerando um retrato de Irineu, um homem negro, tendo epifanias coletivas com hinos compostos no fundo da Amazônia, em uma igreja sem padre na Holanda. Havia um contraste perfeito, uma retomada arcaica no berço do capitalismo em pleno 2012. Eu me sentia mareado em uma arca da salvação interior. E vendo o capitão Polari ali no meio, de olhos fechados, balançando seu chocalho, eu entendi: por trás da barba e da farda branca, o ex-guerrilheiro ainda quer a revolução.

 

“Não vejo uma saída para a crise planetária fora de uma transformação espiritual”

 

Na época em que você era militante político, você já tinha uma busca espiritual? 
Acho que não. Só daquele tipo de olhar para um céu estrelado e perguntar de onde vim, para onde vou, etc. Eu vim de uma família católica, mas quando entrei para a luta política isso se perdeu. Começou mais ou menos devagar, em 1966, 67. Mas quando chegou o AI-5, em 1968, foi o grande momento de ruptura. Nessa época eu buscava no exterior a causa das injustiças e da luta por mudanças na sociedade.

Como foi esse período? 
Minha geração viveu um momento muito profundo e muito duro da história. Éramos jovens, idealistas e libertários. Era o sonho revolucionário do mito de Che Guevara, maio de 68, primavera de Praga. E também do sonho hippie, do LSD, da liberdade sexual, Marcuse, Reich, tudo isso. Eu escolhi o caminho da militância e entrei de cabeça na luta armada, até o começo de 1971, quando fui preso. Vi companheiros desaparecer no cárcere... mas não queria estender muito nisso. Porque hoje é uma coisa que vejo mais como uma experiência, não acho que é mais o cerne da questão.

Mas você não vê uma ponte entre sua luta política, a cadeia e seu caminho espiritual? 
Sim, pois foi um processo de reflexão profunda. Primeiro pelo lado de toda aquela opressão social que de repente foi exercida diretamente sobre mim. Passei dos 20 aos 29 anos preso. Fui torturado. Vi um amigo ser assassinado na minha frente. Depois um processo para entender a inviabilidade das nossas teses, rever os velhos mitos da esquerda. Mas havia naquela luta política um prenúncio de um caminho espiritual, pois houve uma entrega, um sacrifício verdadeiro de se oferecer em nome de uma causa. E me trouxe o entendimento de que não dava para lutar simplesmente pelas questões políticas, mas que havia a necessidade de uma transformação interior. Tanto que quando saí da prisão não me reinseri na sociedade, de onde havia parado.

Nunca mais buscou um caminho de ativismo político? 
Tive uma ou outra reunião, fui em uns encontros na época da fundação do PT. Mas preferi ir para outro lado. Eu já havia conhecido, durante as visitas de amigos nos últimos dois anos na cadeia, a Sônia, minha esposa até hoje. Quando saí, jé éramos casados e tínhamos um filho pequeno, o Thiago. Nessa busca por uma vida diferente no campo, mais alternativa, mudamos para Mauá.

Quando conheceu o Daime? 
Logo no ano seguinte, em 1981, uma coisa fortuita mesmo, quando um amigo trouxe um pouco da Amazônia. Tomei em Mauá, fora da igreja, na natureza. Foi uma coisa forte, parecida com ácido e com outras experiências que já havia tido. Depois um amigo me falou de uma comunidade liderada por um velho patriarca de barbas que tomava ayahuasca. No ano seguinte fui ao Acre para ter contato com o povo de lá. Foi quando senti a força mesmo.

 

“Foi como se eu tivesse visto todo o filme da história da humanidade, da vida, dos minerais, do big bang... estava pasmo”

 

E como foi essa experiência? 
Tomei a bebida. Sentia aquela corrente de pessoas, a música, o canto, a vibração dos maracás... Foi quando eu sentei em uma cadeira de balanço. Aí abriu uma admiração muito forte. Senti que estava em outro lugar, como os índios dizem, “o salão dourado”. De repente aquela cadeira era como uma cabine de uma nave espacial. E foi como se eu tivesse entrado em um buraco negro e visto todo o filme da história da humanidade, da vida, dos animais, dos minerais, do big bang... Estava pasmo e, ao mesmo tempo, sentindo uma bem-aventurança, uma grandeza muito forte.

O que mudou internamente? 
Em um certo sentido aquela visão me transformou. Voltei um outro homem. Um ex-guerrilheiro que toma um chá e canta hinos em louvor a Jesus, Maria e José... acharam que eu tinha pirado. Mas descobri que na espiritualidade não há limite pra nada. Tudo isso ajuda a dar uma quebrada no ego, dá humildade e faz você entender que tudo é possível de alguma maneira. Passei a me considerar um cristão universalista e tenho muita gratidão por como isso me foi passado espiritualmente, como isso me trouxe aonde estou hoje. A mensagem do Jesus histórico, independente da construção teológica, eu vejo como algo profundo no sentido de acessar nossa consciência superior. Quando ele sugere que o reino dos céus está dentro das pessoas mesmo. O sentido maior do ensinamento dele era esse chamado urgente, muito semelhante à urgência dos tempos de hoje.

Com Sebastião, seu mentor

Com Sebastião, seu mentor

E depois? 
Eu percebi que eu era dali. Que não iria mais arredar o pé. Ali conheci o padrinho Sebastião e comecei a me envolver, voltar mais para a Amazônia, levar daime para Mauá. E fizemos uma comunidade por lá. Começou a chegar muita gente... construímos escola, uma estrutura de agricultura orgânica, e fundamos uma igreja do Santo Daime, uma das primeiras fora da Amazônia. Foi algo muito bonito.

Você estava presente no momento em que o Daime chegou à mídia e ao conhecimento do poder público. Como foi essa “recepção”? 
Houve diferentes momentos. O primeiro foi em 1985, nosso sacramento foi proibido sob o pretexto que era droga, continha DMT, etc. Neste mesmo ano foi criado um grupo de estudo e tivemos a sorte de ter gente muito correta, inteligente e aberta nessa comissão, e a bebida foi liberada em 86. Tivemos ainda novos questionamentos ao longo dos anos. Só em 2006 o governo e cientistas estabeleceram a regulamentação definitiva do uso religioso do nosso sacramento. Hoje, as igrejas do exterior estão nessa luta, como aqui na Holanda.

Que tipo de argumento usam hoje em dia contra o daime? 
O argumento é sempre o risco à saúde pública. Algo que não faz o menor sentido. Há décadas nós já comprovamos que não existe risco algum dentro de um contexto religioso. Há um volume enorme de pesquisas nesse sentido. O que ocorre, na prática, é que tentam limitar o direito universal da liberdade religiosa por falta de informação. Não reconhecem uma tradição milenar de uso dessa substância para fins espirituais.

Mas o medo das instituições, muito mais do que a questão religiosa ou química, não é o da alteração da consciência? 
Sem dúvida... Na nossa sociedade atual isso é uma questão fundamental. Perdemos contato com esse tipo de prática que, em outras culturas, foi parte integrante do saber das grandes civilizações do passado.

Você não fala somente da ayahuasca? 
A ayahuasca está em evidência, mas o uso religioso de psicoativos faz parte da humanidade. Se você pesquisar, vai descobrir a importância dos mistérios de Eleusis, por exemplo. Toda a nata do pensamento grego partilhava experiências de alteração da consciência através de uma bebida psicoativa. Boa parte da base do saber ocidental deriva disso. Nos textos sagrados dos vedas é clara a presença do soma, um sacramento que muitos acreditam ser cogumelos mágicos. Se você buscar, vai encontrar algo em todos os continentes e tradições. Ritos desse tipo sempre estiveram entre os humanos e foram, em boa parte, responsáveis pelo que chamamos de religião e cultura. Mas nossa sociedade atual foi se afastando cada vez mais desse tipo de conhecimento. Quem sabe esse não foi o fruto proibido, a maçã da Eva?

A que você atribui essa desconexão da sociedade moderna em relação a esse tipo de espiritualidade? O Ocidente de um modo geral enveredou muito pela estrada da revolução industrial, do racionalismo, da ciência. Claro que isso tudo teve uma importância muito grande para o desenvolvimento humano. Mas essa noção racionalista criou um mundo extremamente compartimentado, fragmentado. Essas divisões duras nos afastam da noção de que há uma unidade no universo. É exatamente nesse ponto que a experiência visionária se torna tão fundamental. Porque traz à tona, de maneira clara, esse sentimento de totalidade, de pertencimento, que é tão importante ao ser humano.

Essa desconexão foi o que abriu o caminho para o culto ao ego que domina nossa cultura hoje? 
Eu acho que o domínio do ego é o coroamento, o reconhecimento da cisão absoluta entre a entidade que chamamos de indivíduo e o sentimento de totalidade, que caracteriza a espiritualidade mais profunda. Isso, para mim, é a causa do vazio existencial. E havia até uma filosofia para dar base a isso. Começaram a acreditar que nosso aprimoramento científico nos levaria, inclusive, a uma evolução moral e espiritual. Mas a primeira grande invenção dessa cultura foi o acúmulo de capital, todas as conquistas imperiais, a aliança entre as empresas coloniais e a igreja sedenta por uma uma nova fronteira de evangelização.

É como se a ciência tivesse se colocado como uma força oposta à espiritualidade? 
Sim, mas é preciso entender que, quando surgiu esse pensamento, ele tinha um sentido humanista, de questionar a religiosidade dogmática, obscurantista. Acontece que na história recente essa tendência se intensificou. O reducionismo científico e o fundamentalismo religioso são duas partes de uma mesma moeda que limita e coloca a nossa realidade numa camisa de força. Nesses últimos três séculos essa foi a tônica. E não precisa mais ser assim. Eu vejo que, hoje em dia, há um caminho inverso. De certos ramos da ciência que buscam uma reaproximação com o espírito a partir das descobertas recentes. A mecânica quântica, por exemplo, dá novos insights espirituais sobre a realidade mais profunda do universo. E coincide muito com o tipo de conhecimento que sempre esteve disponível às culturas ancestrais que mantinham contato com esse tipo de experiência com as plantas de poder. Quando você vê de perto, essas doutrinas tão antigas estavam falando coisas tão modernas... São ideias arcaicas que trazem respostas atuais.

Uma resposta para o que, exatamente? 
Para esse dilema enorme da nossa cultura, da nossa espiritualidade... Essa necessidade de estar sintonizado com o planeta e achar soluções. Temos um sistema cuja lógica é não ter lógica, nem levar em conta os anseios da humanidade que ele deveria servir. Os recursos se esgotam, e a infelicidade aumenta. Fazemos maravilhas tecnológicas, mas tudo indica que se algo não mudar em nossa consciência, o barco pode afundar. Então a resposta que essas experiências oferecem é um caminho para aprofundar a consciência, pois parece que este estado ordinário da mente não está sendo suficiente. E essa experiência direta com o divino oferece não só mais clareza sobre a realidade, mas também um chamado, um aviso para o estado das coisas.

 

“O domínio do ego é o coroamento da cisão entre o indivíduo e a espiritualidade mais profunda”

 

Pensando então nesse aviso, no “estado das coisas”, você acha que superar a mentalidade cartesiana, materialista, está se tornando não só uma questão espiritual, mas de sobrevivência da espécie? 
Hoje se fala muito do colapso, de uma espécie de apocalipse, de fim do mundo. Mas, antes de se manifestar fisicamente com vulcão, tsunami, acho que o apocalipse começa de forma psíquica. A quantidade de sofrimento, de depressão, de vazio existencial... são sinais de alguma coisa. Dificilmente nós vamos achar uma solução para a crise planetária fora de uma revolução espiritual.

Você não enxerga mais uma solução política, cultural, simplesmente? 
Eu acredito que todas as outras formas de ler o mundo faliram no último século. Primeiro no pensamento crítico em relação ao capitalismo, porque não tinha uma perspectiva espiritual. Muita gente, eu inclusive, apostou todas as fichas na perspectiva de que a luta de classes fosse o motor da história. Que a classe proletária surgida como um rebento desse processo de acumulação de capital tivesse disposição de encarnar o processo de evolução social. Essas esperanças não se tornaram tão generosas e acabaram criando problemas e injustiças muito semelhantes aos que queríamos abolir. Depois dessa esperança de luta social, acho que teve um outro investimento. Como se a gente tivesse passado da luta de classes para uma fé na psicanálise, na libertação da libido e da sexualidade. Como se isso, enfim, fosse a resposta.

Arquivo Pessoal

 Alex assinando seu alvará de soltura em 1980

Alex assinando seu alvará de soltura em 1980

Como se a revolução fosse acontecer através do indivíduo? 
É, a revolução da psicanálise e a compreensão do papel dos instintos poderiam servir como uma nova utopia, um novo mito para definir o ser humano e as grandes forças orientadoras da psique. Eu acho que isso já é, de alguma forma, um prenúncio do que acredito ser a questão fundamental: a consciência. Mas mesmo dentro dessa visão, nossas neuroses, psicoses, sociopatias aumentaram... Claro que conquistas inegáveis vieram disso. Tanto da luta socialista quanto da libertação sexual. Mas também não nos mostrou a chave do enigma, da transformação mais profunda do sistema. Não gerou um ser humano novo ou um caminho que parecesse realmente promissor.

Mas esse ser humano novo não é um processo em construção? 
Sim, mas para seguir evoluindo é preciso dar um novo passo.

E que passo é esse? 
Achar um caminho pra reunificar ética, espiritualidade e política. Como gestar isso dentro de um sistema apresentando pane? Como gerar uma coisa viável que não possa ser cooptada pelo capitalismo? Me preocupa que o destino do planeta possa estar na mão de tanta gente que não tem a mínima estatura espiritual para enfrentar as suas responsabilidades históricas. O Obama, se você observar, tem um brilhozinho, mas é um executivo desse sistema todo. Ele é uma metáfora de tudo que a gente tá falando. Da impossibilidade de resolver a coisa dentro dessa mentalidade materialista.

 

“A consciência é a base onde todo o universo se constrói. E não precisa tomar daime para descobrir isso”

 

É como se o capitalismo não fosse um sistema, mas uma mentalidade, a impressão de que a lógica do lucro e do acúmulo são leis naturais? 
Exato. Isso acontece porque tudo está organizado através de trocas comerciais, de mão de obra, em uma engrenagem que não pergunta nada sobre quais são as necessidades humanas ou naturais. E isso virou a base de nossa sobrevivência cotidiana, mas está nos condenando coletivamente. Eu acho que essa insanidade é sensibilizatória, e que ninguém mais consegue acreditar que o mundo possa dar certo, que estejamos caminhando em uma direção construtiva. E a gente fica num ponto bastante preocupante, pois até a ciência de ponta está começando a soar como profecias apocalípticas.

Mas você acredita que estamos perto de um colapso físico? Eu também fico nessa dúvida e tem dias que fico mais apocalíptico, outros menos. Realmente não sei quanto tempo a gente tem antes de achar uma solução viável para sustentar nossa espécie neste planeta. Todos que estão pensando na questão ambiental, ou procurando um novo paradigma econômico, uma nova práxis social, uma nova ética... se encontram, na minha opinião, em uma nova visão espiritual da realidade.

Que visão é essa? 
Isso é complicado de responder, porque o caminho espiritual é, quase que por definição, algo pessoal. Mas precisamos ter o reconhecimento de que o que chamamos de realidade é uma construção da consciência pensante. E não se iludir e não ter apego a esse falso eu. E aprender a operá-lo muito bem dentro dessa vida, mas preparando seu espaço próprio de pesquisa e investigação para se preparar para a morte. Isso não depende necessariamente de uma religião, mas precisa implicar em uma ética nova, uma nova prática social verdadeiramente altruísta. Mas se dar conta disso, experimentar de fato essa realidade mais profunda, pode ser o trabalho de uma vida toda.

Por que dá tanto trabalho perceber que isso aqui é mais do que mera matéria? 
A abordagem da investigação materialista oferece certa lógica. A matéria parece tão organizada, tão lógica, previsível, que existe uma naturalidade em assumir que todo o resto, que não pode ser visto, medido, seja um subproduto. Ou que, simplesmente, não existe. Daí vem a ideia de que a consciência e a vida surgem a partir da matéria, como se fosse uma geração espontânea. Isso é uma concepção que tomou conta do mundo, mas corresponde apenas a um estágio do pensamento e da cultura.

Uma ideia especialmente sedutora para essa era do ego, não?
Dá uma importância enorme ao indivíduo, que se torna um evento raro, insubstituível no universo.
 Exatamente. É a desculpa de que o homem precisa para se declarar o píncaro da evolução. Mas isso não resiste a uma investigação honesta de quem está à procura de entender a essência da sua existência. Quem aprende a aquietar a mente, a afastar os pensamentos ordinários, consegue sentir uma realidade mais profunda e que existe de fato. Está lá. E entende que todo o resto é uma ficção construída em pensamentos, e se torna uma realidade sofisticada, palpável. Mas que não tem base. Pois a vida é uma coisa muito mais sutil. Na verdade, a própria matéria parece emergir da consciência. Ela está em tudo, é a base em que todo o universo se constrói. E não precisa nem tomar daime para descobrir isso. Culturas milenares, no mundo todo, já haviam percebido isso de muitas formas.

Mas isso se dá quase sempre dentro de um nível pessoal. Como isso se torna um sistema social de fato? 
O apego no nível pessoal se torna uma espécie de egoísmo coletivo. Todos precisam se defender uns dos outros, competir, acumular. É o caminho oposto para tornar nossa sociedade viável. A descoberta da consciência como o novo motor da história é o fato mais relevante do nosso tempo. Eu vejo a consciência como base que permeia tudo. Dela emana tudo, inclusive nossa existência. Se nossa mente reinvindica uma existiencia independente, é porque ignora esse fato. Nos identificamos tanto com nosso corpo, pensamentos, que achamos que somos algo separado do todo. Certamente precisamos manter uma identidade própria, mas quando nos aferramos demais a ela e a nossos desejos, isso traz grandes problemas. Essa é a fronteira: uma luta interior que possa trazer uma verdadeira transformação das sociedades. Quando a gente se ilumina por dentro, nosso olhar para fora se torna mais compassivo e altruísta.

De algum modo é como se estivéssemos, de fato, esperando a segunda vinda de Cristo para nos salvar? 
Acredito que o que muita gente está esperando já chegou. A segunda vinda, para mim, é essa revelação interna, o retorno do Cristo de cada um, essa espiritualidade enteógena, a experiência de sentir a divindade, a centelha sagrada que habita dentro da gente. E isso talvez seja a luz que precisamos para enfrentar o que vier por aí.

O daime tem esse poder? 
Isso é o centro da nossa história, uma experiência espiritual direta. Tem momentos de revelação que às vezes um iogue trabalha a vida inteira, ou várias encarnações, para alcançar. Mas o mais difícil é o compromisso, como você precisa destilar toda aquela experiência espiritual, decupar as metáforas para trazer aquilo pra vida prática, mostrar na sua vida que aquilo tem uma validade, provar isso na sua família, amigos... isso é a espiritualidade. Os mestres fundadores dessa religião, sem nenhuma sofisticação intelectual, sem saber o que era sinapse, física quântica, serotonina, perceberam uma coisa valiosíssima. Que, uma vez em contato com essa realidade transcendental, podemos trazer para a vida prática de uma pessoa. Pode ser um intelectual da Europa ou um caboclo no meio da mata amazônica. Uma mesma linguagem, uma mesma mensagem simples, e que pode significar uma maneira melhor de viver a sua vida, em sociedade, em família, com a natureza.

Vocês buscam novos adeptos? 
Tem quase que uma norma na frase de um padrinho nosso: “Convidar é um erro fraternal”. A ayahuasca traz uma experiência muito profunda, um contato com uma dimensão do ser a que não estamos acostumados ou até fugimos dela... A pessoa precisa estar voluntariamente em busca disso para honrar sua experiência.

O daime tem o potencial de se tornar uma das grandes religiões do mundo? 
O Santo Daime nunca será uma religião de massas. Mas isso não impede de que possa dar uma contribuição à humanidade. Considero o daime uma religião genuinamente cristã e universalista. E que oferece uma possibilidade de dentro de qualquer outra tradição. Muita gente se apropria do sacramento porque ele iluminou ainda mais a fé que a pessoa já tinha. Temos muçulmanos, hindus, rabinos que participam de nossas cerimônias.

Como você está vendo essa expansão rápida da ayahuasca no mundo, do chamado xamanismo urbano, o nascimento de outras cosmologias a partir de experiências com DMT? 
Eu acredito que essa medicina tem algo a dizer para o mundo hoje. Mas são dois processos. Um é o crescimento das tradições religiosas ligadas ao uso da ayahuasca. O outro lado é a experiência psiconáutica de gente curiosa. A busca, de toda forma, é válida. Eu ainda acho que dentro de um contexto religioso é mais seguro para a maioria das pessoas. E é a forma original.

Bruno Torturra

Alex logo após conduzir o trabalho de cura na igreja holandesa

Alex logo após conduzir o trabalho de cura na igreja holandesa

Mas para muita gente a própria ideia de igreja, de doutrina, é algo a ser superado nessas experiências visionárias
Sei que existe, da parte de muita gente, uma certa aversão à parte institucional, à ideia de igreja. Entendo e até concordo em parte. A experiência histórica de religiões institucionalizadas não são de todo boas... Mas, principalmente no nosso caso, existe uma necessidade muito grande de manter uma instituição oficial para poder dialogar com o poder oficial e garantir uma legitimidade, e ajudar a garantir que o sacramento siga acessível a todos, mesmo os que não se identificam necessariamente com nosso formato de ritual. Por isso é tão importante valorizar esse interesse recente pelo estudo das vias enteógenas, essa investigação científico espiritual da natureza profunda da consciência. Somos uma espécie muito recente, o neocórtex cerebral tem apenas 500 mil anos. A própria marcha da evolução aponta que a consciência é o campo de batalha. O importante é que se difunda essa experiência de contato direto com Deus. Só vai fazer bem para o mundo.

Mas isso soa um pouco etéreo, metafísico demais para resolver problemas tão práticos, não? 
Acredito mesmo que, para encontrar uma alternativa prática, temos que abrir a mente e o coração para essas transformações. Até porque todos os outros paradigmas de realidade faliram. Claro que tem gente que está esperando uma nave espacial chegar para salvar todo mundo. Penso que nossa nave já está pousada no meio da floresta. Do meu ponto de vista, a espiritualidade é na prática, dentro da sua vida interior e no trabalho social. É pensar grande e agir pequeno. É o nosso laboratório do futuro. Em um raio de alguns quilômetros, dá mesmo para transformar as coisas.

Como é esse trabalho? 
Eu mesmo tenho me dedicado também nesses últimos 20 anos à agricultura sustentável. Temos feito um trabalho de ponta lá, até como forma de buscar essa saída econômica viável, de produzir alimentos e manejar a floresta de modo a mantê-la de pé. A gente trabalha com agricultura de praia, como no começo da agricultura, no Eufrates, no Nilo. Quando o rio enche, o sedimento fertiliza a terra, e nas vazantes você planta todo tipo de cultura nas margens. E tem uma produtividade quase similar à da agricultura mecanizada fertilizada, totalmente natural e a baixo custo. Estamos esperando uma política pública que incentive isso. Conseguimos algumas fundações ligadas a irmãos nossos, da irmandade internacional. Em 2007 e 2008, com a Fundação Banco do Brasil, a gente fez um grande projeto pra criar polos de beneficiamento. A outra parte do projeto é trabalhar com sistemas agroflorestais, replantando a floresta com muitas espécies comestíveis. Adensando a mata original e inserindo outras espécies. É a única saída que vejo para a Amazônia.

 

“Na selva você ganha uma dimensão direta da salvação: é não pisar em cobra, plantar macaxeira, fazer farinha...”

 

É a tal ponte entre política e espiritualidade? 
É curioso, foi dentro do Daime que resgatei minha herança de animal político em um sentido mais pleno. A experiência da militância era muito abstrata, sem contato com a realidade social concreta. Essa minha descoberta espiritual também foi a minha descoberta da Amazônia, do povo brasileiro, ribeirinho, do calor humano, da miséria. Se tornou não só um laboratório de reflexão espiritual como um trabalho social grande. Não é fácil sobreviver na contramão do sistema, fazer uma comunidade sustentável no meio da Amazônia, num lugar de dificílimo acesso. Mas nossa comunidade espiritual, a do padrinho Sebastião, parece menos um ashram do que um canteiro de obra. Todo mundo trabalhando sem parar, rezando, tomando daime, fazendo mutirão. Na selva você ganha uma dimensão muito direta da salvação: tomar cuidado com cobra, plantar macaxeira, fazer farinha. É como o padrinho Sebastião falava: “Povo de Deus, acampado em seus lugares, sempre atento”.

Existe uma receita para a iluminação? 
O padrinho Sebastião também dizia: “tem que unir o positivo com o negativo para haver luz”. Isso é uma lei da iluminação, seja para acender uma lâmpada, quando liga um interruptor, seja para nos iluminar espiritualmente. Tem que trabalhar sua anima, seu inconsciente, seu lado escuro, e colocar ele em contato com seu Eu Superior. Daí vem a luz...

Gustavo Cerbasi

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Márcio Scavone

Gustavo Cerbasi

Gustavo Cerbasi

Um MILHÃO de reais ACUMULADOS Aos 31 anos; um milhão e meio de livros vendidos aos 38. Uma vida acadêmica trocada pelo conforto das listas de autoajuda. nadador, professor, administrador, palestrante, pai, marido e, agora, figurante de cinema. Para quem começou a carreira pensando em não trabalhar (e gosta de lembrar que não precisa mais trabalhar), até que Gustavo Cerbasi tem estado bastante ocupado

Depois de atravessar a portaria mais intimidadora com que já travei contato (com direito a muros da altura de locomotivas, saleta sem janelas e documentos enviados por uma gavetinha de aço cravada no concreto), vaguei lépido por corredores, vagas de estacionamento e elevadores do condomínio de prédios de luxo no bairro da Aclimação, região central de São Paulo, para ter a inédita experiência de ver ao vivo um milionário da mesma idade que eu. Tarde recheada de novidades, vou dizer.

O apartamento de 280 metros quadrados, decorado com esperteza e bom gosto, foi meio que invadido pelos Cerbasi depois de uma suspeita de sequestro que alterou a rotina da família – Gustavo, 38 anos, escritor e palestrante, sua esposa, Adriana, 37, ex-vendedora de implantes dentários, e seus três filhos, Guilherme, Gabrielle e Ana Carolina. Com 1,41 milhão de livros vendidos dos nove títulos que lançou desde 2003, Cerbasi precisava do que ele define como “cuidados que toda pessoa pública no Brasil precisa tomar”: carros blindados, protocolos de segurança ensinados por policiais. “Eu perco, todo mundo perde. Quanto eu poderia investir se não gastasse tanto com segurança?” Cerbasi conta que o apartamento foi escolhido e preparado para que pudesse juntar os familiares. “Já que São Paulo não é tão segura, o jeito é trazer São Paulo para dentro de casa.”

Os ascendentes de Gustavo vieram da Itália no início da década de 1950, depois que a região em que viviam foi destruída pela guerra. Seus avós, seu pai e seus tios se instalaram em Americana, interior de São Paulo, para trabalhar na lavoura. Ganharam e perderam muito dinheiro. O pai do escritor, Tommaso, deixou a casa muito jovem, para tentar a sorte na capital. Casou-se com a paulistana descendente de lituanos Elza e, durante um curto período como representante comercial em Caxias do Sul, interior do Rio Grande Sul, nasceu Gustavo. “Minha memória é de uma infância sem abundância, mas sem falta”, recorda. “Se eu quisesse uma bicicleta, por exemplo, lembro de todo o esforço da família para que eu tivesse aquilo, e depois de como aproveitávamos o presente. Fizemos natação, inglês, mas, quando chegou a época de entrarmos em colégios de primeira linha, meu pai teve de sair de casa para trabalhar a 300 quilômetros, em Porto Ferreira.” Desde então, Gustavo e a irmã Kátia só encontravam com o pai aos finais de semana. Cresceram com a sensação de que o velho Tommaso “trabalhava demais”.

Durante nossa conversa, Cerbasi concluiu que vem da falta que sentia do pai sua busca obstinada por uma carreira que não lhe consumisse a vida pessoal e que, ao mesmo tempo, lhe rendesse R$ 1 milhão até os 41 anos. Cerbasi fez seu milhão aos 31, com uma ajudazinha do período de incertezas que se seguiu à eleição de Lula à presidência, mais ou menos ao mesmo tempo que publicava seu livro mais famoso, Casais inteligentes enriquecem juntos. Até o fechamento desta Trip, o livro já havia vendido 950 mil exemplares e sua adaptação para o cinema (Até que a sorte nos separe, de Roberto Santucci) estava em fase de pós-produção.

Gustavo Cerbasi formou-se em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas, especializou-se em finanças pela Stern School of Business de Nova York e fez mestrado em administração e finanças pela Universidade de São Paulo. Quando ainda era um professor em MBAs, leu o livro Pai rico pai pobre, do americano Robert Kiyosaki, donde tirou a ideia de estabelecer 50 fontes de renda passivas – ou seja, 50 fontes de renda que não dependessem de seu trabalho imediato. Em 2012, entre seus livros, audiobooks, os direitos pela coordenação da coleção de livros Expo Money e a participação no filme, Gustavo tem mais de 60. Isso sem contar as palestras por todo o Brasil, pelas quais cobra o cachê de R$ 14 mil. Guilherme, Gabrielle e Ana Carolina não vão poder se queixar da ausência do pai.

Embora brilhe nas listas de autoajuda há anos, Cerbasi está milhas distante dos livros tipo “cinco passos para enriquecer”. Não só pela bagagem teórica, mas pela visão humana da prosperidade. Uma visão que pode, eventualmente, frustrar uma geração massacrada pela cultura do consumo e pela ciranda financeira do crédito fácil. “O dinheiro é uma ilusão”, disse o escritor durante nossa entrevista. “Para que dinheiro, se você não sabe desfrutar?”

Cerbasi me recebe no mesmo escritório onde, 24 horas antes, havia concluído a última versão de seu décimo livro, O segredo dos casais inteligentes, cujo lançamento está previsto para o início de maio. O escritor aperta minha mão com o vigor de quem já foi um dos quatro melhores nadadores paulistas nos 100 metros costas. Senta-se em sua mesa irritantemente bem arrumada, atrás de uma pequena pilha de papéis, diante de uma estante com dezenas de livros de economia – e de um módulo com vários modelos de carrinhos sem aparente rigor de colecionador –, e começa a contar uma história cheia de números altos.

“Riqueza não é volume patrimonial, é equilíbrio. Tem gente rica com salário mínimo, tem gente em dificuldades com 50 mil reais”

Todo mundo pode ser rico? Ou melhor: todo mundo precisa querer ficar rico?
Se você entende “riqueza” como volume patrimonial, a resposta é não. Mas todo mundo precisa ter equilíbrio. Quem optou por morar em uma cabana em Jericoacoara, vai ter de vender seu peixinho e é bom que acumule uma parte do dinheiro para ter alguma qualidade de vida para quando não tiver mais forças para pescar. Há quem seja rico com um salário mínimo, há quem passe necessidade com R$ 50 mil por mês. Outro dia um cara me perguntou depois de uma palestra: “Gustavo, falando sério, em uma cidade como São Paulo dá para viver com menos de 50 mil?” [Risos.] “Cê tá louco, cara? Você vive em Mônaco?” [Mais risos.] Mas é o custo de viver cercado de segurança, em condomínio fechado, piscina, escola bilíngue, videogame, helicóptero... São escolhas. Eu não convido meus leitores à acumulação, eu os convido ao equilíbrio. Eu acumulei rápido porque não gostava do que fazia, mas o mundo está cheio de gente que ama sua profissão.

Antes de se tornar um escritor, você era professor, mas o que te fez milionário foram investimentos. E você ainda não gostava do que fazia...
Investimentos patrimoniais, ações, imóveis, mas também muitos investimentos na carreira. Na verdade, eu não me preparei para ser professor. Em 1995, eu fazia engenharia mecânica na USP. Tentava conciliar as semanas de provas com as competições e bombei. Perdi a motivação, então fui fazer administração pública na Getúlio Vargas, pensando em ter um segundo currículo e virar um engenheiro vitaminado. Me encantei com marketing, RH, sociologia, psicologia e comecei a achar que faria carreira nessa área mais humana dentro da administração. Depois de formado, um ex-colega de classe me pediu ajuda para um relatório que ele precisava entregar para o Itaú. Ele estava trabalhando numa consultoria de avaliação de empresas e aquele era um negócio gigante. Eu escrevo bem, e na faculdade sempre ficava com a montagem, a redação final dos trabalhos. Passei a semana inteira cuidando daquele trabalho, que era totalmente técnico. Enviei o relatório na noite de sexta-feira e no sábado embarquei para Curitiba para participar de um concurso para a Receita Federal. Não me preparei como deveria por causa do relatório. Precisava acertar 200 questões e acertei 198. Me senti o maior idiota da face da terra por não ter dito não a meu amigo. Mas aconteceu que ele mesmo me ligou naquela semana: “Gustavo, o relatório foi louvado, incensado, admirado, a empresa quer te contratar”. Aceitei, e me dedicava a fazer laudos. Passou um tempo, eu já estava cuidando também da análise. Passou mais tempo e a USP me chamou para uma análise conjunta... Até que a USP me identificou, entendeu que eu tinha jeito para falar com não financeiros, coordenar projetos, conduzir reuniões. Depois de certo tempo, comecei a cobrir aula de um, de outro, a ouvir que “a aula substitutiva foi melhor que a oficial” e em dois anos já havia assumido quatro ou cinco turmas de MBA, em cursos financeiros para gente de marketing ou advogados. Eu falava de finanças em empresas usando ferramentas das finanças pessoais. Imagine: o cara tem aula de contabilidade para o MBA em marketing, sábado à tarde, depois de um jogo do Brasil... Em vez de analisar um balanço da Petrobras, eu pedia para os alunos trazerem as declarações de imposto de renda. Aos poucos, todo mundo percebia a isca: eu só fingia falar de finanças pessoais, mas, na verdade, estava falando de negócios. Eu queria adotar uns livros para minha aula. Era a época em que o Mauro Halfeld estava na lista dos mais vendidos, o Robert Kiyosaki havia lançado o Pai rico pai pobre. Os do Halfed eram muito avançados, falavam de investimentos; o Kiyosaki era ruim porque invertia uns conceitos importantes de contabilidade que podiam confundir meus alunos. Então comecei a preparar minha própria apostila. Quando eu estava com a apostila pronta, dei aula para uma turma da qual fazia parte o Roberto Shinyashiki [psiquiatra e palestrante, um dos papas brasileiros dos livros de autoajuda], sócio da editora Gente. Ele me ajudou a transformar a apostila em livro, e assim saiu Dinheiro: Os segredos de quem tem. Meu objetivo era vender só entre os alunos.

Àquela altura você já tinha feito seu primeiro milhão?
Ainda não. Lancei o livro no início de 2003, havia acabado de me casar. Tínhamos uma grana de um apartamento que havíamos comprado num leilão. Um patrimônio de uns R$ 300, 400 mil e crescendo rápido.

Do seu primeiro milhão, quanto você credita ao investimento financeiro e quanto à remuneração do seu trabalho direto?
Bem, tenho de tomar cuidado com essa resposta, porque quando comprei ações a bolsa estava por volta dos 10 mil pontos, eu sabia que ela estava barata, e não fazia ideia de que fosse valorizar tanto em tão pouco tempo. A minha ambição era acumular R$ 1 milhão até os 41 anos – esse era o exemplo que eu usava em sala de aula. Dizia: “Pessoal, imagina um professor que ganhe R$ 3 mil e more com os pais, ele pode poupar metade do que ganha; se conseguir um pouquinho a mais que a renda fixa, aos 41 anos ele estará milionário!”. Esse era eu. Naquela época, comecei a sacar que todos os meus alunos estavam ganhando dinheiro a partir do que aprendiam sobre análise de balanço. Eles abriam a Gazeta Mercantil às oito da manhã, acompanhavam os indicadores das empresas, comparavam o valor delas com o quanto o mercado pagava no balanço das 8h30 e concluíam o que as corretoras publicariam às duas da tarde. Às 10h30 já havia aluno chispando da aula para comprar ações [risos]. Na época havia uma informação muito evidente, que era o humor do mercado depois da vitória do Lula em 2002. “Eles vão comer criancinhas!”, “quem tem dinheiro é melhor fugir para o Uruguai!” etc. Eu estava quietinho, com meu dinheiro do imóvel, quando comecei a reparar no Abílio Diniz, no Antonio Ermírio, no Michel Klein indo à mídia para defender Lula, dizer que estavam juntos, apoiando, que o Palocci iria falar com o FMI e tal. No dia em que Henrique Meirelles foi anunciado como presidente do Banco Central coloquei todo o meu dinheiro na bolsa, sem pensar. Eu, que imaginava ter R$ 1 milhão aos 41, vi o mercado de capitais quadruplicando. Quando apareci na capa da Você S/A [dezembro de 2005] eu estava virando a marca do milhão. Não foi fruto do investimento em si, mas da combinação de uma escolha sensata, pensando a longo prazo, com a situação atípica da conjuntura.

"Eu dizia: 'imagina um professor que ganhe 3 mil reais, more com os pais e poupe metade do salário. Se conseguir um pouquinho mais do que a renda fixa, aos 41 ele estará milionário'. Esse era eu"

E por que você queria ter R$1 milhão até os 41 anos?
Pra parar de trabalhar. Quando comecei a correr atrás desse milhão, eu estava muito incomodado com o meu trabalho. Era gratificante estar em sala de aula, mas para mim só sobravam as piores aulas, as substitutivas, curso no interior do Ceará, cinco horas de avião e quatro de carro... Eu já não era um bom namorado, passava os finais de semana me arrastando. Queria acumular R$ 1 milhão que rendesse R$ 4 mil por mês para tirar um ano sabático, fazer algum curso, montar uma franquia, ser sócio de alguma coisa.

Eu assisti a uma palestra do Reverendo Ricardo Agreste na qual ele dizia algo como “se você decidir priorizar a sua família, garanto que todos os seus amigos workaholics vão enriquecer mais do que você, e é bom que você se acostume com essa ideia”. Você concorda com isso?
Eles vão crescer patrimonialmente. É que “enriquecer” é um conceito relativo. Porque essa pessoa talvez se satisfaça com menos, por estar mais preocupada com o convívio do que com aquilo que ele pode acumular. Isso tá bem claro no conceito de riqueza que está em meus livros: não preciso ter muito mais. Entretanto, pessoas que têm um argumento forte para não estar com a família, querem recompensá-la. E quanto mais trabalho, mais recompensa, daí há um jogo perigoso que se autoalimenta.

E o dinheiro acaba por destruir a família.
Aí é que está, é uma ilusão. Já vi histórias de pessoas que queriam acumular dinheiro para aos 50 anos fazer o caminho de Santiago de Compostela. O cara chega aos 50 anos e descobre que tem medo de avião porque nunca viajou! Então não é só a família, você destrói toda sua vida quando só ambiciona o futuro e não aprende a desfrutar. E para que dinheiro se você não sabe desfrutar?

Como o seu primeiro livro mexeu com sua carreira de professor?
Cara, esse livro foi supermal recebido na academia... Eu tinha meus superiores na Fundação Instituto de Administração, a FIA, que na época era ligada à USP. Escrevi o livro na maior das boas intenções, separei o primeiro exemplar para mim e o segundo levei pessoalmente para o meu superior. “Ah, é seu, Gustavo? Que legal!” [Faz gestos como se folheasse um livro.] Ele olhava, olhava, ia, voltava, lia uns trechos, folheava de novo... ficou uns dez minutos em silêncio, de repente fechou o livro. “Mas o que é isso?”, ele perguntou, nervoso. “Isso é autoajuda! Você acabou um mestrado agora, tá convidado para fazer doutorado e está jogando seu currículo no lixo pra vender autoajuda por R$ 30? Você não pode fazer isso! Manda recolher!” Me sentia como se tivessem me flagrado na cama com outra. Não imaginava que esse passo em minha carreira seria tão ruim. Na verdade, tudo o que eu queria era avisar as pessoas que, em vez de entrar em financiamentos de 18% ao ano, elas deveriam era poupar um dinheiro que em três anos dobraria de valor. Acho que era movido mais pela indignação do que por qualquer sonho de ser escritor.

Você assume o rótulo de autoajuda?
Eu sou tão autoajuda quanto um guia de ruas é autoajuda. É literatura para quem quer buscar soluções sem recorrer diretamente a um profissional. Era o mesmo conteúdo que eu dava em seis ou sete MBAs, mas o livro saiu com historinhas, ilustrações, uma linguagem autoajuda. Tinha o propósito de ser acessível, de ser comprado pelo grande público, tinha uma linguagem vendedora.

Márcio Scavone

 

Então deve incomodar você ser desvalorizado pela crítica como literatura barata.
É sempre desconfortável estar em situações em que já se chega rotulado e se está sempre contra a parede. Incomoda, como me incomodou ir ao Programa do Jô. Você sabe que quando o Jô não se sente à vontade sobre o assunto passa o tempo desafiando o entrevistado. Na verdade, autoajuda é quase um sinônimo de literatura barata, ruim, sem embasamento, sabedoria copiada de Powerpoints baixados da internet. E, puxa, eu comecei dando aula em MBA... O que eu posso fazer em relação a isso é tentar não ser popularesco. Tive convites para ter colunas em programas de variedades na TV, mas declinei, porque entendi que não iria levar educação financeira para muito mais longe. Não gosto desse mundo de Caras. Apareço quando entendo que posso validar minha teoria.

Como foi que você deixou as aulas?
Logo depois de Dinheiro: Os segredos de quem tem, começaram a surgir convites para palestras não remuneradas. E eu não conseguia atender os pedidos porque tinha uma agenda de aulas muito cheia. Aí aconteceu a grande ruptura em minha carreira porque eu me vi numa crise existencial. Eu havia pedido três meses para o meu mentor, o que me obrigaria a abrir mão do doutorado, e ele não se conformava. “Ficou louco? Tá fumando o quê?” [Risos.] Não me olhava mais nos corredores, eu estava me sentindo muito mal. Daí eu decidi largar tudo e aceitei o convite de um amigo para ser sócio em uma empresa no Canadá. Vendemos tudo e embarcamos sem saber se voltaríamos. Era uma importadora de produtos brasileiros. Era tudo bem amador. Vendemos o suficiente para passar oito meses. Os convites para palestras remuneradas começaram a surgir, o que me despertou para a possibilidade de, finalmente, viver fazendo algo interessante. Foi uma situação muito chata com o meu sócio: “Eu achei que a gente fosse ralar juntos aqui no Canadá, mas você vai ficar rico sozinho no Brasil”, ele disse. Foi muito chato. Nos separamos e eu voltei certo de que havia um trabalho a fazer, e muito certo de que nunca teria um padrão de vida tão bom quanto o dos meus tempos de professor. Talvez aí eu estivesse movido pela primeira vez por um senso de vocação. No final de 2004 a Adriana sustentava a casa praticamente sozinha, tínhamos uma vida supersimples, enquanto eu fazia algumas poucas palestras e preparava meu segundo livro, o Casais inteligentes enriquecem juntos.

Que é seu grande best-seller.
Com 950 mil exemplares vendidos. Esse livro tomou um caminho que eu jamais imaginaria. Eu me sentia um tanto envergonhado porque não sou especialista em relacionamentos nem em discussão de casais. Entretanto, os leitores do Dinheiro criticaram muito dizendo que minha lógica era muito simplista e que não funcionaria na vida de alguém que tivesse um cônjuge perdulário. O foco era o relacionamento. Mas o leitor rapidamente percebe que, da mesma forma como eu disfarçava o assunto de contabilidade em uma roupa de finanças pessoais, dessa vez eu disfarcei o assunto de finanças em uma roupagem relacional.

Esse período sustentado pela esposa mexeu com seu casamento?
Não, não. Na verdade, ela ganhava mais do que eu desde que a gente namorava. Quando casamos, o salário dela era a âncora do nosso orçamento. O meu, de professor, entrava para compras eventuais. Chegamos a fazer terapia de casal, por um tempo, na época em que eu trabalhava demais, na FIA. Ajudou muito, até para o projeto do Casais inteligentes. Mas talvez o melhor que nos aconteceu foi termos passado aqueles oito meses no Canadá, juntos, com o mesmo objetivo. Fez muito bem para o casamento.

Como era a relação do Seu pai com o trabalho e o dinheiro? Algumas das suas decisões me parecem ter raízes muito profundas na forma com que você foi criado.
Uma coisa que eu tinha muito clara no começo da minha carreira é que jamais trabalharia tanto quanto meu pai, a ponto de perder a saúde. Em 2011 ele teve de transplantar o rim por causa de estresse e descuido. Agora ele está bem, rolando com os netos pelo chão. Mas cresci vendo que ele se sacrificava demais para oferecer à família algo que provavelmente não compensaria sua falta. Tive convites muito interessantes na minha carreira. Em um deles, da [empresa alemã de consultoria] Roland Berger, eu cheguei entre os quatro classificados. Assisti a uma minipalestra do vice-presidente na qual ele dizia coisas como: “Vocês vão trabalhar numa noite na Áustria, na seguinte na Bélgica ou em Hong Kong, talvez vejam a família nas férias, no Natal”. Nem esperei o cara terminar. O caminho que encontrei para fugir disso foi ralar e aproveitar ao máximo as oportunidades, poupar enquanto morasse com meus pais, manter hábitos simples, até que conquistasse a independência financeira. Meu objetivo não era ficar rico, era ser independente.

Você tem três filhos pequenos e tem muito dinheiro. Como você lida com o consumismo?
O consumo no Brasil é muito impulsivo. As pessoas estão conquistando espaço na pirâmide social e vivem correndo atrás dessa conquista. Estão trabalhando mais do que deveriam, se dedicando cada vez menos à família, a seus relacionamentos e amizades. Para elas, a aquisição, a compra, é um motivador de felicidade. Mas a felicidade é um estado de espírito, não é um instante. E, como desfrutar é cada vez mais raro, consumimos mais e mais para tentar ter momentos de mais e mais felicidade. Mas acredito no inverso também: quem desfruta mais precisa comprar menos. Se as crianças tivessem menos presentes e os presentes fossem mais desejados e aguardados, talvez fossem desfrutados com mais zelo e por mais tempo. Gostaria que elas entendessem que o trabalho serve não para comprar coisas, mas para proporcionar situações.

“Cresci vendo meu pai sacrificar a saúde para nos dar algo que provavelmente não compensaria a sua falta”

Qual a sua participação no filme Até que a sorte nos separe?
Ele é adaptado do Casais inteligentes. A história é a de um casal que ganha R$ 100 milhões na Mega-Sena da Virada e, dez anos depois, descobre que está quebrado. Parte da graça do filme é explicar por que eles quebraram – porque cada passeio da esposa ao shopping custa R$ 30 mil, por exemplo. A expectativa não era vender muito, mas de repente entrou o melhor produtor, o melhor roteirista, o melhor distribuidor, os melhores atores. Sai dia 12 de outubro, mas o povo está brindando o sucesso desde já.

O que você já viu do filme?
A gravação. O filme está sendo montado ainda. Eu participei de algumas cenas, sem falas, mas pedi para o [diretor] Roberto Santucci para ver na telinha como ficaria no cinema. Tive de cobrir a boca com uma toalha para não atrapalhar o set, de tanto que eu gargalhava.

Um amigo propôs a seguinte questão: se o seu filho pedir 150 mil reais para montar o primeiro negócio ou comprar o primeiro apartamento, em qual situação você teria mais facilidade em dar? Nessa hora eu percebi que eu não tinha tanta cultura empreendedora quanto supunha. O que faria?
Eu não só daria muito facilmente para o primeiro negócio como, se eu tivesse condições de dar os dois, eu o convenceria a não comprar a casa. Sou totalmente contra o fato de que alguém que está construindo a vida, que pode ter vontade de trabalhar no exterior ou em outra cidade, alguém que esteja começando a vida, fique engessado geograficamente. Casa própria é uma grande realização pessoal, mas é uma punição também. O jovem fica medroso. O que eu recomendo aos jovens é que evitem a casa própria, trabalhem muito, que aluguem algo barato, próximo ao trabalho, não comprem carro, viajem, façam cursos, ousem, criem, façam arte. Fiquem soltos, estejam propensos a mudanças. Quanto mais propenso a mudar, mais a gente cresce.

O seu próximo livro já está pronto?
Sim, o título é O segredo dos casais inteligentes. A referência ao livro de 2004 não é acaso nem oportunismo [risos]. É que estamos no ano em que provavelmente ele chegará a 1 milhão de exemplares e ainda tem o filme. O novo livro responde a muitos questionamentos que surgiram no primeiro, como, por exemplo, no caso de casais formados por pessoas que vieram de outros relacionamentos.

Qual foi a maior extravagância que você já fez?
Foram duas situações envolvendo viagens. A primeira foi uma viagem a Daytona, nos Estados Unidos, na qual levei meu pai para assistir a uma corrida de Nascar. Caríssima, decidimos de última hora, foi mesmo algo extravagante. Mas houve outra viagem, uma celebração em 2010, no primeiro aniversário da minha filha do meio. Era uma semana muito especial porque eu faço aniversário no mesmo dia em que eu e a Adriana fazemos aniversário de namoro e dois dias antes do nosso aniversário de casamento. Estávamos com um casal de compadres na Flórida, iríamos à Disney, mas eu queria marcar aquela data com minha esposa. Procurei um motorista que conheci nos Estados Unidos, ele me ajudou a preparar uma celebração inesquecível na Flórida. Aluguei duas limusines, uma branca para levar minha filha ao jantar de aniversário dela, cheia de bichinhos, com minha família e os compadres dentro. Dois dias depois, de surpresa, outra limusine, preta, cheia de flores, veio nos buscar para um jantar num restaurante superexclusivo e lá dei o anel, que comprei nos Estados Unidos. E tudo junto custou menos do que o anel custaria no Brasil. Quer dizer, foi extravagante, mas foi muito inteligente do ponto de vista financeiro.

E seu último gesto de generosidade?
Ajudo as pessoas próximas, não gosto de propagandear. Mas assumi o ano escolar dos quatro filhos de uma pessoa próxima à nossa família cujo negócio faliu, por exemplo. Paguei a reforma da casa de um familiar. Banquei uma parte da cirurgia da filhinha de uma amiga da prima da minha esposa. Dei uma palestra para arrecadar fundos para crianças com câncer em Curitiba. Prefiro ter a gratidão de alguém com quem eu divido um guaraná a usar a generosidade como forma de marketing.

Pedro Paulo Diniz

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Nino Andrés

Pedro entre as galinhas da fazenda

Pedro entre as galinhas da fazenda

Ele conheceu de perto “o máximo do que a sociedade chama de glamour”. Herdeiro do grupo Pão de Açúcar, piloto de Fórmula 1, namorado de modelos, amigo de príncipes, personagem fácil das colunas sociais. Há dez anos, entretanto, Pedro Paulo Diniz trocou tudo isso pela meditação, pela vida em família e pelo que promete ser a maior produção de alimentos orgânicos do Brasil e aceitou o convite da Trip para romper o silêncio.

Basta olhar em volta para ver o quanto andamos deslumbrados. A valorização excessiva de fama, velocidade e superexposição, o caráter estupidamente competitivo de tudo, a obsessão doentia pela acumulação de dinheiro na ilusão obtusa de não depender de nada nem ninguém são coisas tristemente associadas pela maioria da população à noção de sucesso. O diabo é que, quando esse quase consenso equivocado da era Big Brother vem à mesa de debates, dificilmente quem o questiona conhece o outro lado de fato.

Senão, vejamos: que filósofo ou pensador herdou parte de um dos maiores grupos empresariais do mundo, tem assento no conselho da maior empresa de varejo da América Latina e patrimônio na casa de alguns bilhões de reais? Se houver algum, teria ele vivido em palácios ao lado de príncipes e supermodelos? OK, então aponte um que tenha guiado um carro de Fórmula 1 durante cinco anos e, não contente, experimentado chocar um deles contra um muro a mais de 250 km/h. Pra finalizar, seu candidato tem estampa suficiente para ser contratado como modelo de uma tradicional marca de relógios suíços, numa campanha publicitária que dividiu com ninguém menos que Audrey Hepburn?

Evidententemente, Pedro Paulo Diniz sempre esteve mais pra Kart que pra Kant, mas digamos que pode falar com propriedade sobre o que é ser, nas palavras dele mesmo, “um playboy Fórmula 1”, uma espécie de arquétipo do mundo movido a celebridades. Bem mais que isso, conquistou o que o mundo do dinheirismo, do consumo, da competição e da fama entende como o topo da montanha.

E quis descer.

Há cerca de dez anos, PPD trocou altas octanagens, rotações por minuto e níveis de aceleração atômicos (de todos os tipos) por um longo e aparentemente definitivo pit stop. Parou de correr e resolveu chegar a algum lugar.

E recuperar o anonimato lhe parecia uma condição essencial.

Antes figura repetida em colunas sociais e revistas de famosos, Pedro literalmente casou e mudou. Com a colega de aulas de ioga Tatiane Floresti (depois de um namoro com algumas idas e vindas enquanto ambos tentavam processar o que estava acontecendo em suas vidas), constituiu família e sumiu dos holofotes dizendo não a todos os convites, propostas e xavecos de quilates variados. Tiveram dois filhos, hoje com 5 e 3 anos, mudaram-se para uma fazenda no interior do estado de São Paulo e juntos puseram-se a prestar atenção nas lições que a natureza ensina todos os dias, mas que nossas vidas tão “espertas, agitadas e produtivas” nos têm feito incapazes de enxergar. Primeiro construíram uma escola para que seus dois filhos e os filhos das famílias que vivem na propriedade pudessem ter educação de boa qualidade, por meio de um mix de técnicas da pedagogia de Rudolf Steiner com outras correntes tão interessantes quanto a própria antroposofia. O segundo passo foi pensar em aproveitar o enorme território para iniciar o plantio e a produção de frutas orgânicas. Logo nos primeiros estudos sobre a tal agricultura orgânica, uma primeira lição: a lógica da interdependência.

Traduzindo, para cultivar frutas sem usar venenos, é preciso pensar nos animais, em matéria orgânica capaz de adubar o solo, na lua e numa porção de outras coisas que formam um círculo perfeito que termina (ou começa, como o leitor preferir) exatamente na qualidade da escola de quem vai colher o morango. A ideia era fincar a primeira estaca de um projeto brasileiro de agricultura orgânica sustentável, perene e de larga escala. O conceito passava por alguns dados tão simples quanto contundentes. No Brasil, apenas cerca de 0,6% dos alimentos vendidos e consumidos são os chamados orgânicos, livres de pesticidas, agrotóxicos e “outros bichos”. Na Europa este número chega a 17%. Por aqui, orgânicos são hoje sinônimo de preços inalcançáveis à maioria da população, basicamente porque a produção é mínima e não há escala. Assim, entendendo que seria necessário buscar muito conhecimento para planejar o que poderá vir a ser a maior produtora de alimentos orgânicos do Brasil, Pedro mergulhou fundo na pesquisa sobre técnicas de rotação de pastos, homeopatia veterinária, fitoterapia, ciclo de vida dos carrapatos, biodiversidade, biodinâmica, agrofloresta e outros conceitos que ainda parecem estranhos e até exóticos à maioria de nós, mas que há anos estão na pauta de países mais avançados, que entendem não só a importância de rever o que ingerimos, mas a economia gigantesca que esse tipo de alimento carrega quando se calculam as despesas com o tratamento das centenas de tipos de câncer e outras doenças causadas pela alimentação envenenada que ingerimos todos os dias. E o número se multiplica indefinidamente se pusermos na conta a possível reversão do quadro de degradação ambiental que as culturas envenenadas e obtusas têm gerado ao longo dos séculos.

A experiência parece estar dando certo. A Fazenda da Toca, marca do projeto que já conta quatro anos de vida, é hoje a maior produtora de leite orgânico do Brasil e uma respeitável produtora de laticínios como queijos e iogurtes, ovos orgânicos e algumas frutas.

Filho de Abilio Diniz uma das mais bem-sucedidas e discutidas figuras do cenário empresarial brasileiro, Pedro Paulo diz que quer transformar o que tem em um bem maior para todo mundo.

As 50 famílias que trabalham no empreendimento estão se acostumando a ver não só as evoluções nítidas na quantidade e diversidade dos animais do ecossistema da fazenda, mas a transformação clara do patrão que, agora sim, parece ter encontrado a linha de chegada.

“Já fui encanado de ter nascido na família Diniz. Hoje, acredito que a gente vem ao mundo e recebe algo. E o que posso fazer é transformar o que tenho em um bem maior para todo mundo”

Quais são suas memórias mais antigas de infância?
Não tenho tantas recordações de infância. As primeiras são da mudança para a casa na avenida Cidade Jardim, eu tinha uns 3 anos. Eu não queria ficar lá nem a pau, esperneava. Era uma casa enorme, e eu estava acostumado com a casinha que a gente tinha. Eu fui um moleque mais fechado. Não curtia a escola. Foi algo imposto, e eu não me encaixava, tinha dificuldade de aprender. Em coisas que me interessavam, como matemática, uma coisa mais exata, eu até ia bem. Mas português, eu pensava “para quê? Já sei falar, sei escrever...”. Com certeza, uma escola mais construtivista teria me fisgado melhor. Porque eu gostava de inventar. Desmontar as coisas em casa, liquidificador, aspirador, fazia carrinho. Eu tinha bastante criatividade, mas realmente minha relação com a escola era difícil.

Cobravam muito você por isso?
Em relação à educação, meu pai sempre foi duro. Eu, que não ia bem, passei por várias escolas. Com uns 13 anos, fiquei de recuperação, tinha que passar de ano, fiquei as férias todas trancado no quarto estudando, aquilo pra mim foi um martírio. Ele era muito rígido. Nossa relação só melhorou quando eu fiz 15 anos, depois que ele se separou da minha mãe. Sempre digo que ele não estava bem naquele relacionamento, então também não conseguia estar bem com a gente.

Arquivo Pessoal

Pedro Paulo Diniz

Pedro Paulo Diniz

Seu pai é uma figura muito forte, associada à ideia de dedicação exclusiva ao trabalho, À força de produção. Ao mesmo tempo que é muito admirado, também é criticado por isso. Como é ser filho do Abilio, principalmente quando criança?
Acho que quando a gente é criança não percebe muito essa coisa, mas meu pai sempre foi uma figura dominadora. Depois, mais adolescente, vai caindo a ficha. Logicamente a gente vivia uma vida que não era normal. Meu pai já tinha bastante dinheiro, então a gente morava numa supercasa, tinha motorista, segurança. Mas meu pai sempre foi bem caxias na educação, de querer dar para a gente uma realidade mais parecida com a de todo mundo.

Um amigo me contou que não tem nenhuma memória dele brincando com o pai, beijando, abraçando. Como era a sua relação com o seu pai?
Era um outro tipo de afeto, porque talvez ele também não tenha tido isso. Era uma relação um pouco mais fria. Não tinha isso de pegar, abraçar, como eu tenho com meu filho hoje ou como meu pai tem com os filhos mais novos, do último casamento. Acho que era algo da época também, mais formal. Ele foi muito rígido, mas agradeço muito porque ele nos ensinou valores bem legais.

Muitos homens tiveram a iniciação sexual com prostitutas, você também passou por isso?
Passei. Era normal naquela época. Mas não foi interessante, eu não estava preparado, tinha uns 13 anos. Meu irmão e meus amigos me levaram. Não conversaram, só perguntaram: “E aí, você já fica de pinto duro?”, e me levaram. Eu tinha vergonha de tirar a calça na frente da moça. Mas rolou.

Você tem três irmãos do primeiro casamento do Abilio. a adriana sempre foi mais reservada e nunca trabalhou com a família. Já a Ana Maria é tida como o braço direito do seu pai na empresa. o João paulo também trabalhou no grupo, e sempre foi muito mais forte nos esportes, o que seu pai valoriza. E você, o caçula, vendo isso, se sentia o patinho feio?
Não é consciente isso, de se sentir patinho feio. Mas, por ser o caçula, acho que peguei uma fase muito ruim do relacionamento dos meus pais, tive um pouco menos de atenção deles. Não tinha tanta competição, porque a diferença de idade é muito grande. A Ana eu até falo que é minha segunda mãe, dez anos mais velha. Quando surgiu a coisa de correr de kart me deu aquela luz.

Como isso apareceu na sua vida? 
Eu sempre fui ligado em motor, desde moleque. Vinha aqui pra fazenda, ficava na motinho o tempo inteiro. Quando tinha 15 anos, um amigo me chamou para dar uma volta de kart em Interlagos. De primeira, vi que levava jeito pra coisa. E pensei: “Pô, que legal, um negócio que eu sei fazer!”. 
Me fez muito bem, aumentou minha autoestima. Meu pai falou: “Melhor você correr na pista do que na Marginal”. E me incentivou, me deu um kart, comecei a correr e mudou minha vida, me encontrei. Eu também era superdesregrado, aí comecei a querer fazer esporte, estar bem fisicamente pra correr. Eu era um moleque sem rumo, e isso me deu um.

Como foi sua carreira no kart? 
Ganhei algumas corridas, segui as categorias, não ganhei nenhum campeonato... Mas dava pra ver que tinha talento. Eu fazia pole pra cacete, mas era um puta porra-louca, batia na corrida. E era esforçado na parte mecânica, gostava de entender como funcionava.

A grana fez muita diferença no seu processo no automobilismo comparado com alguém sem esse dinheiro todo?
Fez, né? O automobilismo é muito movido a grana. Se você tem equipamento bom, faz diferença. Eu tive essa condição, mas corri atrás porque meu pai não dava nada de mão beijada. Logicamente ele me abriu várias portas, mas, quando passei pra Fórmula Ford, fui atrás, fiz apresentação em empresa, consegui patrocínio. Claro que com as portas que ele me abriu, com o Pão de Açúcar, facilitou a história toda.

O que seus irmãos achavam disso? 
A gente nunca conversou muito sobre isso, mas eu sentia que principalmente o João tinha certo incômodo, do tipo “esse moleque não faz nada, só fica brincando de correr de carro”. Acho que meu pai sempre pensava que era meio brincadeira, mas via que eu estava mais focado, então apoiava. Mas, quando falei que ia morar na Inglaterra para correr, aí ele não gostou. “E faculdade? Vai ficar brincando desse negócio pra sempre?” Ele não achou graça e foi dificultando as coisas.

Como?
Não me dava muita grana, tive que ir lá, garimpar uma equipe. Depois de seis meses eu estava vivendo numa bibocazinha, totalmente diferente do que eu tinha aqui, na mordomia da casa da mãe, com empregado. Mas foi muito legal porque tive que aprender a me virar. Eu tava com 19, 20 anos. Arranjei a equipe sozinho, aprendi inglês, que eu não sabia.

E como foi esse começo de carreira?
Meu sonho era correr na Fórmula 1. Mas na Inglaterra era difícil, porque eu saí daqui sem grandes resultados. Nos primeiros meses, meu pai não queria que eu fosse, mas depois viu que eu ia ficar e começou a ajudar mais. Mudei para um lugar mais bacana, comprei um carro. Mas foi ficando pesado porque eu vi que não tinha aquele talento natural que eu imaginava. Isso era foda, porque um moleque de 20 anos se acha super-herói. E nessas categorias, Fórmula 3, Fórmula 3000, foram resultados medianos.

Seu pai teve uma carreira no automobilismo, chegou a ganhar algumas corridas, como as 24 Horas de Interlagos… isso pode ter alguma relação, você queria mostrar que podia ser melhor do que ele?
Com certeza, tinha muito o negócio de se afirmar, mas nem tanto pela ligação dele com o automobilismo. Isso foi algo curto e eu não vivi. Era mais pra falar: “Eu sou legal, olha o que eu sei fazer”. E era pauleira. Por mais que meu pai tivesse grana e ajudado a conseguir patrocínio, ali é você e o carro.

“Meu papel era o do playboy na Fórmula 1. Morei em mônaco, fiquei amigo do príncipe, comprei uma Ferrari e me sentia o bacanão. Mas faltava alguma coisa. Era tanto ego que não dava para curtir”

Como você foi parar na Fórmula 1?
O dono da minha equipe de Fórmula 3000 tinha o sonho de ir para a F1. A gente foi juntando um time, o Pão de Açucar ajudou e eu consegui o patrocínio da Parmalat. Aí lançaram a Forte Corsi, e entrei na Fórmula 1 com eles. O primeiro ano foi meio maluco, não tinha estrutura, uma bagunça. No segundo ano fui para uma equipe mais estruturada, a Ligier. Aí começou a ficar mais legal a brincadeira. Eu era bom em pista muito rápida, mas acho que isso tinha mais a ver com inconsequência.

Você não tinha medo?
Eu queria tanto provar alguma coisa, que era meio inconsequente. Era o kamikaze, largava em 16º e na primeira volta estava em sexto. Numa dessas, em Silverstone, tava um puta vento, numa curva rápida meu carro rodou, voou na zebra e bateu de ré no muro. Uma puta porrada. Meu banco foi para dentro do tanque de combustível. A cabeça foi para a frente, quebrei a quinta vértebra, podia estar paralítico. Graças a Deus... o chefe aí em cima não deixou. Isso foi no primeiro ano de Fórmula 3. Fiquei quatro meses parado.

Você sofreu outros acidentes?
Na Fórmula 1 tive uns acidentes pesados. Um na Argentina, quando reabasteci. Não sei o que aconteceu, a boca de combustível ficou aberta e na primeira freada a gasolina pegou no freio, que fica incandescente, e o carro virou uma bola de fogo. Eu sempre tive na cabeça que eu estava protegido. Pensei: “Caramba, tinha tanta certeza de que não ia morrer, agora vou morrer aqui!?”. O fogo envolveu tudo, não via mais nada. Saí do carro sem tirar o volante, até hoje não sei como fiz isso. Graças a Deus não aconteceu nada. E tive outro, em Nürburgring: capotei na largada a uns 200 por hora, e o carro caiu de ponta-cabeça. Dei uma puta sorte, tinha fogo também. Novamente o chefe lá em cima me protegeu.

Arquivo Pessoal

durante a cerimônia de casamento com a atriz Tatiane Floresti

durante a cerimônia de casamento com a atriz Tatiane Floresti

Como era o lado que todos imaginam, da mulherada, do glamour na Fórmula 1? era como as pessoas fantasiam?
É legal pra cacete. Quando você chega nos lugares é tratado como um rei. Em toda cidade aonde o circo ia, tinha mordomia, todo mundo bajulando, foi bem divertido. Por outro lado era tenso, tem muito interesse. Muita gente com muita grana e fama, pessoas com um ego enorme, disputavam quem ia sentar à mesa do príncipe de Mônaco no jantar, essas coisas.

Qual era o seu personagem nesse teatro?
No início eu tinha 25 anos, dei uma deslumbrada. As pessoas vêm pedir autógrafo, você começa a se achar. Sempre tive namoradas bonitas. Todo mundo ficava falando da namorada do Pedro Paulo Diniz, isso aparecia nas revistas. Então meu papel era o de playboy da Fórmula 1. E, por isso, eu circulava num ambiente ainda mais elevado do que o que eu deveria estar. Morei em Mônaco oito anos, acabei ficando amigo do príncipe, circulava nesse mundinho de glamour mesmo. No começo você entra no jogo, acha legal, se sente o bacanão. Você se acha fodão por comprar uma Ferrari com desconto, circular em Mônaco com ela. Mas faltava alguma coisa. No primeiro dia é como criança com brinquedo novo, depois enjoa. E não preenche nada.

Sobre isso, qual foi a coisa mais incrível que você se lembra, dessas de playboy internacional?
Acontecia o tempo todo. No GP de Mônaco tinha as festas com o príncipe, no palácio. Em Saint-Tropez, o glamour do glamour, eu chegava na boate e tiravam as pessoas da mesa para o monsieur Diniz sentar. Tinha milionários do mundo todo, outros pilotos… Faço aniversário no mesmo dia que Naomi Campbell. Então a gente fazia três festas em Saint-Tropez, as festas de Naomi Campbell e Pedro Paulo Diniz. Era a maior palhaçada da Terra. Mas era interessante. Experiências que foram válidas para ver o máximo daquilo que a sociedade entende como glamour.

E o assédio da mulherada?
Eu era mais de namorar, mas curti bastante as fases de solteiro. Foram agitadas e divertidas. Teve uma vez que veio um time de russas, junto com um milionário de lá. Eu me achando o galã e no final apresentaram a conta! [Risos]

Qual a coisa mais maluca que você comprou na época?
A Ferrari, o objeto me fascinava. Mônaco é complicado, você entra na onda morando lá. Se você não tivesse uma Ferrari, era um zé-ninguém [risos].

Quanto você ganhava?
Ganhava US$ 2,5 milhões por ano. Uma grana alta pra qualquer um, imagine para um moleque de 25 anos. E morando lá, uma puta vida boa.

Como foi seu final de carreira na Fórmula 1?
Em 1999 eu estava correndo na Sauber, o melhor carro que tive. Mas eu estava com 29 anos, me via em situações que eu já não curtia tanto. Mesmo as festas e o glamour, eu já estava achando tudo meio sem graça, vazio. Foi perdendo o encanto. Daí em 2000 apareceu essa história de ficar sócio do Alain Prost, deixei de ser piloto pra ser dono de equipe. Foram dois anos difíceis... e era o primeiro negócio da minha vida, tive o incentivo do meu pai, a gente analisou junto, ele achou legal. Mas foi frustrante... O Prost é muito difícil, não escutava ninguém. Foi assim que saí da Fórmula 1.

Como você saiu dessa sensação de fracasso e voltou a trabalhar?
Voltei com o rabo entre as pernas, não sabia muito o que fazer. Aí a Fórmula Renault estava entrando no Brasil e pediram minha ajuda. Fechei um contrato legal de cinco anos pra implantar o negócio aqui. Chegamos a ter 50 funcionários, nos dois primeiros anos me deu prazer. Mas comecei a questionar o que eu queria mesmo. Comecei a entender e procurar outras coisas na vida. Foi quando comecei a fazer ioga.

Quem levou você para a ioga?
A Fernanda Lima, que é minha amiga. Nos tempos de modelo dela em Milão a gente deu umas saídas, namorou um pouquinho. Quando voltei, mantivemos contato. Um dia ela me falou da ioga, me deu o endereço, fui e começou a fazer sentido. Comecei a conviver com um pessoal bem diferente do que eu tava acostumado. Eu estava procurando pessoas que estivessem fora desse mundo superficial em que eu vivi muito tempo. Gente mais normal, com interesses mais reais. E encontrei nesse grupo.

E o que mudou exatamente?
Eu desempenhava vários papéis, o Pedro promotor de eventos, o que atuava no Pão de Açúcar. E me via perdido. A grande mudança foi entender quem eu era e do que realmente gostava, e que eu podia ser o mesmo em qualquer lugar. Isso é tão bom! E conheci a Tati nesse meio-tempo, e ela, entre outras qualidades, é uma pessoa muito espiritualizada. A gente teve o Pedrinho. Quando tive o primeiro filho foi uma grande mudança na minha vida. Eu vinha nessa procura, pedia a Deus para me mostrar aonde eu precisava ir. E, no ano em que a Tati ficou grávida do Pedrinho, vi aquele filme do Al Gore, Uma verdade inconveniente. Aquilo mexeu muito comigo. Caramba, estou colocando um filho no mundo e o mundo está detonado. Como esse moleque vai viver lá na frente?

Em 2008, esse grupo de ioga teve problemas com um episódio em que 12 pessoas foram internadas com desidratação profunda, diarreia e confusão mental atribuídas à ingestão de doses cavalares de líquidos durante um retiro. O caso chegou à mídia envolvendo também insinuações de assédio sexual... Como você vê esse seu período no grupo?
Pratico um tipo de ioga bem rígido, você transpira pra cacete. E o mestre, o Cristóvão de Oliveira, mantinha a linha durona, muita disciplina. A galera toda era muito caxias. Cheguei a fazer retiro de dez dias sem falar, fazendo procedimentos de limpeza do organismo. E essas polêmicas com o Cristóvão aconteceram depois. Quando o conheci, em 2003, ele era muito sério, fazia na própria vida o que pregava. Depois vieram as polêmicas... Não participei muito dessa época. Já estava fora. Mas o importante é que a ioga me centra, é meu remedinho tarja preta diário e sou grato pelos ensinamentos que recebi.

Você vivia uma certa duplicidade. Descobrindo toda essa simplicidade de um lado mas andando de avião particular. Não dava uma confusão?
Trabalhei bastante isso na minha cabeça. O chefe lá de cima deu isso a você. Eu ganhei de nascer nessa família, com todos os prós e contras. Já tive essas encanações, mas quando percebi que o Pedro podia e tinha que ser o Pedro em qualquer lugar, liguei o foda-se. Ando com segurança, sou acionista do Pão de Açúcar, são partes da minha vida. Fazer ioga de manhã e depois pegar o avião particular pro Caribe era a minha realidade, não posso negar.

Você sempre namorou modelos e atrizes famosas. Como se encantou pela Tati, uma atriz iniciante, de família simples, de um mundo diferente do seu?
Eu vivia naquele padrão, tendo como referência as modelos, mulheres exuberantes e ligadas em exposição. Era meu mundo na época. Demorou um pouco pra cair a ficha e para eu perceber que tinha algo muito mais forte e especial com a Tati, que ela também era bonita mas que com ela era muito mais legal o papo, a troca física, tudo muito mais intenso.

Como ela lidou com a entrada para esse clã?
Muito bem. A gente não estava nem namorando direito e chamei ela para uma viagem. Ela entrou num avião particular com toda minha família, e fomos para um barco enorme na Croácia. A Tati não sabia nem se tinha roupa para a situação, mas desde o primeiro dia optou por ser ela mesma e o resto ficou fácil, ela se virou superbem.

E pra você entrar na família dela?
Uma troca muito legal. É uma realidade muito diferente, tanto de bens materiais como de estilos de vida. No Natal tem a festa da tia Eliete, que é num sitiozinho num condomínio, com uma piscininha, o pessoal toma cerveja, come um churrasquinho, ouve um sambinha, coisa muito simples, que no começo eu não entendia muito, mas hoje dou grande valor

Onde você vive hoje?
Depois do primeiro filho tivemos a Catarina. Em 2005, 2006, com esse acordo que meu pai fez no Pão de Açúcar, a gente resolveu fazer um escritório da família separado da empresa e fui escolhido para administrá-lo. E dentre os bens estava essa fazenda. Comecei a cuidar dela e pensei em fazer algo sustentável aqui. Descobri que existe agricultura orgânica, que planta sem aditivo químico e ainda preserva o ambiente. Comecei a estruturar um projeto, e isso cresceu. Daí a gente pensou que, em vez de passar um dia na semana, pudesse morar aqui. Já são dois anos e meio.

“Eu estava procurando gente que tivesse fora do mundo superficial em que eu vivi por tanto tempo. Gente normal, com interesses reais”

E como foi isso na sua família?
Tive uma conversa não muito fácil com meu pai. Falei que estava pensando em sair de São Paulo, comprar metade da parte da família na fazenda. Ele não entendeu muito bem, achou que eu não ia conseguir morar aqui.

Nino Andrés

Pedro Paulo DIniz

Pedro Paulo Diniz

Como está sendo essa experiência?
É tudo muito novo e instigante. É interessante aprender como são os processos da natureza e como replicar isso para criar um alimento mais saudável. Fora os outros benefícios, poder criar meus filhos na fazenda. E o fator humano também é crítico, precisa trabalhar as pessoas, instaurar uma nova cultura dentro desse pequeno núcleo, nessa pequena comunidade. Criar um pensamento diferente, produzir sem destruir.

Como você definiria o seu projeto?
Desde o começo vi que tinha uma carência de produção orgânica estruturada no Brasil. A ideia é estruturar, ser um produtor em maior escala, diversificado. A gente produz leite, ovos, frutas orgânicas, e pra isso precisa ter outros insumos, milho, soja eventualmente para dar de ração. Transformar toda a propriedade num organismo que se autoalimente. Além disso, criamos um núcleo de processamento desses alimentos. Processa o leite, vende como queijo, iogurte.

É um laboratório para uma produção em larga escala para o Pão de Açúcar?
A gente já faz produtos para a marca própria do Pão de Açúcar, Taeq. E em breve vai lançar a marca Fazenda da Toca, de orgânicos. O legal de ser em larga escala é que democratiza o alimento orgânico. Na Alemanha, o produto orgânico custa 15% a mais que o convencional. Pouco mais caro. Aqui no Brasil é o dobro.

E como você se imagina com 60 anos? Me imagino aqui. A vida fora de grandes centros faz muito sentido pra nós, a gente não sente falta. Talvez de um cinema [risos]. Mas pesando os prós e contras, um cinema só pesa muito pouco.

Você está mais ou menos há uns dez anos sem dar entrevista. Por que aceitou agora?
Eu me protegi por um tempo, quis desaparecer, para ficar tranquilo, viver a vida sem me sentir muito invadido. Minha técnica para ter menos isso foi tentar sumir da mídia, não me preenchia em nada, não me deixava feliz me ver na revista. Foi muito fácil. Mas primeiro acho o trabalho da Trip muito legal. E você falou deste tema, Anonimato, que poderia até motivar os outros a pensar nisso. Achei que não feria meu princípio de não aparecer. Hoje eu vou ao shopping e ninguém me reconhece! Funcionou! E isso não vai fazer mudar.

Tom Vanderbilt

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Marcelo Gomes

Tom Vanderbilt

Tom Vanderbilt

O jornalista americano Tom Vanderbilt é uma das principais vozes sobre o trânsito e o papel do carro no mundo de hoje – e na sociedade de amanhã. autor do best-seller Traffic: por que dirigimos assim?, Vanderbilt conversou com Roberto da Matta (autor de Fé em deus e pé na tábua) a respeito de novas tecnologias, velhos hábitos, símbolos de poder e confessou: “Às vezes, tenho vergonha de usar meu carro”

Certo dia, em um engarrafamento em Nova Jersey, nos Estados Unidos, o jornalista Tom Vanderbilt olhou pela janela e fez a pergunta mais clichê para quem está preso no trânsito: “Por que a pista ao lado anda mais rápido que a minha?”. A diferença entre Vanderbilt e o resto dos motoristas é que ele resolveu buscar a resposta. Minuciosamente. O caso é que, em vez de encontrar a tal resposta, Tom se viu engarrafado em muitas outras questões que, por trás do volante, eram invisíveis. Por que temos tão poucas formas de nos comunicar no trânsito? Por que todo motorista pensa que dirige bem? Como diferentes culturas moldam trânsitos diferentes? Por que somos especialmente egoístas dentro de um carro?

Vanderbilt, que nasceu em Illinois em 1968, levou sua pesquisa a sério e, pelos dois anos seguintes, afundou-se em estatísticas, leis e estudos sobre como diferentes cidades e países lidavam com o problema do trânsito. E descobriu que, se quisermos entender por que o automóvel se torna cada vez mais um cativeiro, precisamos olhar para a psicologia humana. Sua pesquisa e seus insights renderam um livro, Traffic: Por que dirigimos assim? E o que isso diz sobre nós: Mitos, verdades e curiosidades sobre o trânsito, lançado no Brasil pela editora Elsevier, uma investigação sobre as mais óbvias e mais sutis questões em torno de uma das mais recentes e mais onipresentes das mazelas humanas: o trânsito.

O livro transborda fontes e estatísticas. Com um raro rigor jornalístico, Vanderbilt fez centenas de entrevistas. De diretores de departamento de trânsito de grandes metrópoles a psiquiatras, do interior dos EUA à Índia, de laboratórios em universidades às esquinas de Nova York. Acidentes, o tráfego de outras espécies animais, problemas de sinalização, percepção e ilusões de ótica, diferenças de gêneros ao volante, perspectivas futuras... Seu livro é um almanaque de improváveis constatações sobre essa rede de estradas, máquinas e pessoas. Rapidamente, tornou-se uma das mais articuladas vozes que atraem a atenção de governos e cidadãos para uma urgente mudança nos padrões de mobilidade. Traffic vendeu mais de 150 mil cópias nos Estados Unidos. “Esse sonho de cada um dirigir para onde quiser a qualquer hora já está morto. Então a questão se torna como você administra as estruturas existentes”, diz.

Ele faz questão de dizer que não é um ativista anticarro, mas não esconde seu embaraço quando chega dirigindo sozinho seu carro em Manhattan, onde mora. Está cada vez mais inclinado a vender seu Volvo e, quando necessário, alugar um. Aponta a bicicleta e os carros compartilhados como grandes saídas de curto prazo para as metrópoles e se anima ao pensar um futuro em que automóveis vão se conduzir sozinhos, deixando trânsito e motoristas mais livres – como escreveu na edição de capa da revista Wired em janeiro último. Ele também escreve sobre ciência, cultura e tecnologia para New York Times Magazine, Rolling Stone, Slate, Popular Science, entre outros veículos. Seu trabalho tornou-se rapidamente uma referência, e hoje, aos 44 anos, Vanderbilt é um solicitado palestrante e consultor sobre o tema no mundo todo. Curiosamente, mesmo após anos de pesquisa, ele nunca teve a (discutível) sorte de encarar o trânsito em alguma das grandes cidades brasileiras.

Por isso, para entrevistar Tom Vanderbilt, não havia ninguém melhor do que o antropólogo Roberto da Matta, veterano estudioso da cultura e da psicologia brasileiras, que publicou 18 livros. O mais recente, Fé em Deus e pé na tábua, é um tratado sobre como o trânsito ilustra as relações de autoridade e poder que definem o Brasil há séculos. Da Matta discutiu o assunto nessas mesmas Páginas Negras em setembro de 2010. Vanderbilt sabia do livro – e, antes de qualquer pergunta, lamentou que só houvesse edições em português.

Da Matta formou-se em Harvard no início dos anos 1960 e é familiarizado com a mentalidade e o trânsito norte-americanos. Em duas horas de conversa, em uma ponte telefônica Nova York - Niterói, Da Matta e Vanderbilt, dois homens de gerações, nacionalidades e ocupações diferentes, buscaram vias paralelas, bifurcações e pontes para seus estudos. Como o carro se transforma em símbolo de liberdade ou de prisão. Como determina políticas, relações sociais e econômicas. E como, muito mais do que uma máquina que nos carrega, é um possante amplificador de nossa alma e cultura. Afinal, enquanto automóveis não dirigirem sozinhos, todo motorista é, antes de tudo, um ser humano.

Para conhecer mais sobre o trabalho de Roberto da Matta e Tom Vanderbilt, veja um quem é quem no blog da Trip

Quando eu escrevi meu livro Fé em Deus e pé na tábua, minha intenção era mostrar, por meio da maneira como as pessoas dirigem, de que forma o brasileiro resiste a situações em que a igualdade é inevitável, como no trânsito. Como você, um jornalista americano, com uma visão muito mais universal do que a minha, enxerga o futuro do trânsito? Quais as grandes questões entre a forma como os americanos dirigem e os problemas estruturais nos Estados Unidos?
Se acreditarmos nas projeções sobre urbanismo divulgadas pela ONU, as populações urbanas já são maioria, então, quando se fala de problemas de trânsito, geralmente se fala do trânsito urbano. Quando as cidades ficam cada vez mais populosas, chega-se a um ponto, e de fato já chegamos, em que esse sonho da mobilidade individual particular se choca com problemas reais. O primeiro é o obstáculo logístico. Uma das minhas estatísticas preferidas foi feita por um engenheiro de trânsito aqui de Nova York, que disse: “Se todos que trabalham no centro financeiro de Nova York quisessem dirigir até o trabalho, se tirássemos o metrô, teríamos que construir 178 pontes no Brooklin e a Quinta Avenida precisaria de centenas de faixas”. A gente meio que esquece quanto espaço físico o carro requer. Esse sonho de cada um dirigir para onde quiser a qualquer hora já está morto. Então a questão se torna como você administra as estruturas existentes, já que, por melhor que você administre, haverá sempre um limite. Então, aparece outra questão: será que dedicar essa estrutura ao carro vale a pena? Você começa a questionar para que servem as ruas. Em Nova York, a discussão no momento não é sobre como conseguir fazer andar o maior número de carros pelas ruas no menor tempo, mas sobre como equilibrar os tipos de mobilidade.

“Esse sonho da mobilidade individual particular, de cada um dirigir para onde quiser, a qualquer hora, já está morto. a questão agora é aprender a administrar as estruturas existentes”

A primeira vez que fui aos Estados Unidos, em 1963, foi quando comecei a me interessar pela maneira de as pessoas dirigirem. Fiz um amigo nigeriano e, certo dia, voltando da aula, íamos atravessar uma das ruas mais movimentadas da cidade. Ele me disse: “Olha só o que eu vou fazer”. Colocou o pé na rua e os carros pararam! Para ele, aquilo era tão surpreendente quanto para mim, porque a experiência dele na África era parecida com a minha no Brasil, de que, se você fizesse isso, morreria atropelado [risos]. Para nós dois, as ruas pertenciam aos motoristas! Outro choque foi a primeira vez que estive em Nova York. Um amigo de Manhattan disse que não queria comprar um carro justamente pelo problema que você mencionou: onde diabos ele pararia um automóvel? Ele usava táxi. Realmente, o sonho da mobilidade individual não é mais possível. Talvez seja necessário limitar esse tipo de transporte nas grandes cidades. O que você acha disso?
É uma questão relevante. Eu tenho um carro... Talvez eu devesse dizer que o carro é que me tem... É uma forma melhor de ver a situação, dadas as exigências que me impõe no dia a dia, como achar uma vaga para ele. No momento, é conveniente para mim tê-lo, mas, se uma ou duas coisas mudassem, eu o venderia. Existem esses sistemas de car sharing. Eu sou do Brooklin, mas Manhattan é o único lugar nos EUA onde os proprietários de veículos são minoria. Mas, se eu precisasse, passaria a usar car sharing. Eu não sou um fundamentalista anticarro [risos]. Bem, alguns dias eu sou... mas o carro tem seus atrativos. Existe uma frase, “Mobilidade como serviço”, que acho que diz respeito a esse futuro do qual você pergunta. Assim como antes as pessoas tinham suas coleções de discos, depois de CDs, mas, com o tempo, se fez desnecessário ter todos esses objetos. Então, quando você quer ouvir música, você toca em streaming direto da nuvem, como dizemos, com algum aparelho. Podemos pensar em mobilidade direto da nuvem também. O táxi sempre foi uma maneira de mobilidade compartilhada, mas acho que soluções desse tipo irão multiplicar-se. Eu fui à feira de automóveis de Frankfurt este ano e foi interessante conversar com os grandões de marcas como Audi. Claro que eles ainda vendem muitos carros, mas estão se questionando seriamente e entrando também nesse novo ramo do carro compartilhado – e não como uma propriedade individual.

Marcelo Gomes

O autor posa para a TRIP no intervalo da New York City Bike Expo

O autor posa para a TRIP no intervalo da New York City Bike Expo

No Brasil, o carro é um dos principais símbolos das pessoas bem-sucedidas. Para redefinir esse papel seria necessário redefinir o modo como criamos a identidade social do sucesso. O fato é que nós nos ligamos emocionalmente aos objetos, eles são nossos companheiros. Eu não preciso de todos os livros da minha coleção, mas sou ligado a eles. Alguns antropólogos falam de objetos que têm vida. Isso não é exclusividade de grupos tribais e sociedades primitivas, porque agimos exatamente da mesma maneira. Outro ponto é que o Brasil nunca planejou suas cidades. E, por ser uma sociedade anteriormente baseada na escravidão, quem é rico e famoso não está sujeito a regras, o que é impossível ao dirigir.
Seguindo sua ideia, analisando estatísticas de renda e igualdade social, foi interessante ver que o melhor comportamento no trânsito está nos países escandinavos, onde os indicadores sociais são muito bons. Da mesma forma, o pior comportamento acontece nos países onde os indicadores sociais são piores, o que levanta essa questão do status do carro. Claro que isso ainda é muito forte, mas está mudando. O número de jovens tirando habilitação tem caído ano a ano. Em grande parte isso é motivado pelo alto custo de ter e manter um carro. As pesquisas mostram que hoje para os jovens é mais importante um celular do que um carro. Claro que Nova York tem suas particularidades, mas, às vezes, quase sinto vergonha de ter carro. Eu não uso tanto assim, mas, se, por exemplo, vou a uma festa de carro, nem quero contar para as pessoas que fui dirigindo.

“Assim como as pessoas tinham discos, depois CDs e hoje não é mais necessário ter todos esses objetos, podemos pensar em mobilidade direto da ‘nuvem’ também, com carros compartilhados”

É como uma mulher que hoje em dia tem vergonha de dizer que tem um casaco de mink.
Bem, claro que isso tem a ver com meu círculo de relacionamentos, mas a percepção geral sobre o carro está mudando. Há muita iniciativa nesse sentido. Hoje, 18 de maio, por exemplo, é o Bike-to-work day [dia de pedalar para o trabalho] em Nova York.

O problema em países como Brasil ou na África é a falta de opção. Temos que inventar novas alternativas para convencer as pessoas a não usarem o carro. E a relação do brasileiro com as regras, inclusive as de trânsito, é muito ruim, porque no Brasil obedecer regras é sinal de inferioridade. Quando eu falava para os estudantes de Notre Dame sobre o Brasil, eu dizia que até os criminosos mais perigosos dos Estados Unidos, quando entram no carro, põem cinto de segurança. Instintivamente. É uma visão de mundo que você começa a ter no colegial ou na faculdade, que aqui não temos. Nós estamos começando a falar desses temas, porque nos últimos dez anos estamos criando mais igualdade, graças a Deus.
Tem um clichê, uma frase supostamente atribuída a Margaret Tatcher, que diz que, se um homem tem de pegar um ônibus aos 30 anos, então ele é um fracasso. Mas a questão é não só ter transporte público disponível – porque em muitas cidades americanas ele está disponível, mas não é feito de forma atrativa ou direcionada a ninguém além dos que não têm opção. O transporte público na Cidade do México foi um problema por muitos anos, até que decidiram substituí-lo pelo sistema desenvolvido em Curitiba. Agora não só funciona de maneira muito mais ordenada como adquiriu um prestígio social. Tornou-se mais eficiente do que o carro e mais desejável do que o metrô. Então é algo que pode ser feito. Transporte público não precisa ser uma experiência mortificante e depressiva, pode ser feito de maneira racional e ser socialmente desejável.

Como podemos mudar nossa percepção do que é realmente necessário? Aqui em Niterói estão sendo feitos esforços para melhorar o transporte público, o que certamente reverterá na diminuição do número de carros. Mas como fazer para diminuir o desejo de ter um carro? E as questões de segurança pública ligadas a isso?
Claro que o transporte apenas reflete questões muito mais profundas e complicadas. Por exemplo, um dos cruzamentos de estatística que faço no livro é de mortes no trânsito com nível de corrupção em um país, segundo os dados da organização Transparência Internacional. E existe uma forte ligação. Basicamente, quanto mais corrupto o país é, maior é o índice de mortes no trânsito. Evidentemente, a corrupção não é a causa direta, é apenas mais um dado associado. Na Índia, por exemplo, existe um grande mercado negro de habilitações. É mais eficiente do que o oficial. É mais fácil comprar uma carteira falsa do que passar por toda a burocracia do sistema. Na África do Sul, eles dificultaram o sistema para conseguir uma habilitação, achando que seria mais seguro, mas isso apenas aumentou o mercado negro. Na Cidade do México os policiais de trânsito são folcloricamente corruptos, então, baseados na ideia de que as mulheres são menos corruptas, substituíram todo o efetivo por mulheres.

Espero que não se corrompam – embora eu saiba que o poder muda as pessoas. Mas gostaria de insistir na questão do desejo. Não é possível mantermos o mesmo nível de consumo dos últimos dois séculos. Talvez seja melhor tentar abrir essa caixa de Pandora agora e discutir diferentes construções de identidade, além dessas questões como a da corrupção. E não somos como os Estados Unidos, uma coleção de pequenos países. Eu vivia em Madison, Wisconsin, no final da década de 1970 e aquilo parecia a Escandinávia. Me impressionava muito o jeito que policiais de trânsito lidavam com o motorista. Eles eram amáveis e claros e conduziam a conversa de maneira que se tornava impossível chegar a uma situação comprometedora. Isso ainda precisamos aprender aqui.
Isso levanta a ideia de normas sociais, que são muito importantes quando falamos de comportamento no trânsito. O limite de velocidade em quase todas as ruas de Nova York é de 30 milhas [48,2 quilômetros] por hora. Mas na rua onde moro, se fôssemos agora com um radar medir a velocidade dos carros que passam, eu te garanto que menos da metade estaria respeitando o limite. Às vezes as leis são um pálido reflexo do comportamento. E qual é então a norma social? Quando você vê todo mundo fazendo uma coisa, isso se torna a norma. E acaba sendo mais eficiente ser corrupto ou dirigir sem respeitar as regras. Você falou que o poder muda as pessoas. De fato, muitos comportamentos no trânsito são expressões de poder. Me fascina ver o trânsito como esse laboratório de psicologia aplicada. Quando você faz um trajeto de carro, pense em quantas interações você tem com outras pessoas – talvez não nas condições ideais, porque de fato não é possível se comunicar, mas você tem que tomsr muitas decisões, dar passagem ou não ao outro, por exemplo. Isso depende de muitos fatores. Quanto de pressa você tem naquele momento? Qual carro você dirige? O outro motorista é uma mulher atraente? Ou o outro motorista está dirigindo um carro maior do que o seu? Nosso comportamento é influenciado por muitos fatores, e isso já foi largamente estudado. As pessoas não costumam reparar, mas se você prestar atenção nessas coisas ao dirigir vai ver como o trânsito é rico em termos de psicologia humana.Também é interessante o que você disse sobre os Estados Unidos serem pequenos países, cada lugar tem suas particularidades. Estive recentemente em Vermont, que é uma área mais rural, com menor densidade populacional, e quando eu ia atravessar a rua os motoristas paravam o carro antes até do necessário, dando passagem. Isso não acontece em Nova York. Na verdade, em Nova York é o oposto.

Marcelo Gomes

o jornalista e escritor americano Tom Vanderbilt com sua bicicleta artesanal

O jornalista e escritor americano Tom Vanderbilt com sua bicicleta artesanal

Me fascina que nos Estados Unidos, se um sinal está quebrado, os motoristas respeitam a regra de que passa primeiro aquele que chegou primeiro. Os brasileiros vão tentar escapar como um animal tenta fugir do inimigo. Precisamos concordar num mínimo de regras comuns a todos. Por outro lado, se você dirige uma Mercedes, você vai dar passagem para o senhor de idade ou para a mulher negra? Ou vai passar por cima? Essa atitude prevalece mesmo se sabemos quais são as regras e, de certo ponto de vista, elas não significam nada. Ao mesmo tempo, se não tivermos uma discussão sobre como nos relacionamos com elas, será um mundo impossível de viver.
Já foi sugerido que tivéssemos mais possibilidade de comunicação ao dirigir, como sinais ou mensagens para os outros, mas acho que isso só pioraria a situação em momentos de conflito. Recentemente, estive em Montain View, Califórnia, no quartel-general do Google. Me demonstraram o novo carro autônomo na estrada, e era incrível. Ele funciona com vários radares e sensores. Ele não vê as pessoas como diferentes personagens – um que dirige mal, outro rico etc. – mas só objetos, com distâncias e relações matemáticas de maneira racional. E foi assustador? Não, eu estava no banco de trás e quem parecia perigoso pra mim eram as outras pessoas, falando no celular, com pressa, chateadas etc. Então, quando essa tecnologia estiver totalmente disponível, será que vamos eliminar o fator humano e transformar o trânsito numa série de algoritmos e relações matemáticas? O carro seria apenas uma cápsula que te leva aos lugares.

Um aspecto interessante sobre o metrô é que ele não para onde você acha que ele deveria parar. Você precisa andar, há um elemento altruísta envolvido. Você precisa adaptar seu trajeto ao projeto que alguém representando a coletividade estabeleceu, determinando que tal estação seria num lugar e não no outro. Quanto mais você sabe sobre psicologia social e sobre nossas capacidades físicas, mais assustador o carro fica porque ele multiplica nosso poder. Um filho da puta numa Mercedes de 300 cavalos ao lado de um cara numa carrocinha sempre terá a sensação de poder. O poder de apertar um pedal e matar alguém, o poder de destruir.
As pessoas que sofrem por causa dessas políticas são as mesmas que não querem aprovar novas legislações que mudariam, por exemplo, os impostos numa direção mais favorável. E o motivo é porque imaginam que elas um dia também serão ricos. Você fala de cavalos de força, e os carros se tornaram cada vez mais potentes nas últimas décadas. Isso acaba com os poucos ganhos econômicos que tivemos. Por que você precisa de tanta potência para dirigir a 20 milhas por hora em Nova York? As pessoas querem esse potencial, não querem perder o direito de dirigir porque sentem que isso estaria cerceando sua liberdade individual. Isso é um desafio! Porque não é exatamente o ato físico de dirigir que elas gostam, mas o potencial que ele representa, ter a escolha. Mas que tipo de liberdade representa só poder sair de casa usando um carro? Está mais para uma prisão onde você só tem uma possibilidade de mobilidade. Já disse que não pretendo ser anticarro, mas há lugares onde o carro é a única opção. Isso não é liberdade.

Acho que quando o automóvel foi introduzido nas nossas vidas, a máquina era suprema, englobava a nós e a nossas emoções. Quando alguém diz “Eu gosto de dirigir” está assumindo que gosta de sentir seu corpo e mente por meio dessa máquina. Mas... e quando isso é prejudicial pra mim e para os outros? E mesmo com essa tecnologia continuamos a ser humanos. É provável que os que te chamam de anticarros também acusam outros de serem antiarmas os que querem “tirar a liberdade de um indivíduo portar uma arma”.
Já existem estudos mostrando como a participação individual contribui no total de trânsito de uma cidade. Cada um que entra nesse sistema penaliza outra pessoa. O fato é que estamos mais ou menos coletivamente roubando nossa liberdade. E muitas vezes essa liberdade do automóvel vem às custas de outras. Em Manhattan, por exemplo, quando limitaram a passagem de carros na Times Square, houve muito protesto, mas a porcentagem de pedestres que usavam aquela via já era oito vezes maior do que a de motoristas. O maior espaço físico estava reservado à minoria dos usuários, isso é injusto e irracional. E mesmo assim houve muita gente contra. Mas o resultado é que se tornou um espaço público ainda mais popular e os negócios da região aumentaram tanto que aquele se tornou o segundo aluguel mais caro em Nova York. Essa equação carro-liberdade não é tão simples quanto parece.

Será que não seria melhor simplesmente andar? Morando próximo do trabalho, por exemplo. Nada mais de carro, nem bicicleta, meu avô andava para o trabalho, mas reclamava! Ele queria ter um carro. Como diz Machado de Assis, “é a eterna ingratidão humana”.
A palavra “pedestre” tem o significado de estar a pé, mas também carrega o significado de banal, comum, entediante, e isso remonta aos tempos da cavalaria. Se você não estivesse montando um cavalo, seria considerado inferior. Então essa questão dos modos de transporte é antiga. Então nós depreciamos andar a pé mesmo antes do carro. Mas agora é quase considerado um luxo você poder andar até o trabalho.

“Quando a tecnologia do carro autônomo estiver disponível, talvez eliminemos o fator humano do trânsito e tudo se transforme em algoritmos e relações matemáticas, e o automóvel será apenas uma cápsula que te leva aos lugares”

Você mencionou seu encontro com pessoas da indústria automobilística na Alemanha. Como eles veem esse declínio do interesse por carros por parte dos jovens? Você disse que eles estão pensando no car sharing. E como você acha que o carro enquanto máquina e produto mudará no futuro próximo?
Eles vendem muito na China, mas em lugares como Reino Unido já atingimos o pico de saturação, em que todos que poderiam comprar um carro já compraram, e nos últimos anos começou um declínio. Existem muitos projetos de “carro do futuro”, e todos eles têm características em comum. A principal é ser menores. Os Estados Unidos foram culpados por esses carros enormes. A gente tem a impressão de que quer esse espaço todo, mas ele está subutilizado. Além disso, há o problema de consumo de energia. Em cidades grandes, o carro menor é melhor porque há mais espaço para estacionar. Existe um projeto do MIT que propõe reprojetar os materiais externos do carro. Se você vai dirigir sempre devagar no trânsito da cidade, pra que uma cápsula de metal pesado? Pode ser uma camada de neoprene. Se você atropelar alguém, a chance de a pessoa se machucar diminui. E, nas cidades, geralmente a maior estatísca de morte no trânsito é de pedestres. E existe também o descompasso do que as pessoas podem fazer num iPhone e do que podem fazer num carro. O carro é esse objeto “burro”, com um motor a combustão do século 19, sem nenhuma consciência do ambiente, sem capacidade de conectar-se a outros veículos. Existe todo tipo de computadorização no carro, mas geralmente ligado a procedimentos mecânicos. Então eles pensam em como inserir toda essa rede social. E também haverá mais personalização. Quando Henry Ford começou a fazer o famoso Modelo T, eram todos pretos. Essa mentalidade ainda existe, por ser a fabricação de carros um processo caro. Mas as pessoas hoje estão acostumadas a escolher muitos opcionais. Não sei se chegaremos a ver esse tal “carro do futuro”, a indústria é muito conservadora.

Voltando à ideia de comunicação entre motoristas, a regra deveria ser “não seja ofensivo” porque podem te matar! Mas poderíamos mandar mensagens, e talvez esse aumento na comunicação mudasse algumas situações. Recentemente vi engarrafamentos no Rio e em Niterói que antigamente só aconteciam se havia um acidente ou algo do tipo. Agora é por simples falta de espaço para os carros, e cada carro com apenas uma pessoa. Levando em consideração essa ligação entre trânsito e hierarquia social, como fazer o brasileiro mudar para o ônibus, e os ônibus andarem melhor?
Nós costumamos encarar o trânsito como um problema insolúvel, mas na verdade ele é um problema localizado em certos horários e regiões. E o trânsito não funciona de forma linear. Se você quer diminuir os congestionamentos em 50%, não precisa necessariamente tirar 50% dos carros, talvez 15% baste. Isso é um problema solucionável amanhã, se você conseguir que um em cada cinco daqueles motoristas sozinhos se junte a outro veículo. Uma grande promessa para o trânsito é o iPhone, porque pela primeira vez temos computadores portáteis, em tempo real, com localizador geográfico. Podemos ser parte de um sistema, tanto emissor como receptor. E muitos aplicativos estão sendo desenvolvidos nessa direção. Um que mostra a empresa de car sharing mais próxima, que te conecta com alguém que possa te dar uma carona, ou indique quanto tempo você vai demorar no congestionamento. O problema é que o trânsito é um sistema autocorretivo. Quanto mais você o melhora, mais você atrai as pessoas. Então, no fim, você precisa procurar alternativas mesmo.

“O problema é que o trânsito é um sistema autocorretivo. quanto mais você o melhora, mais atrai pessoas a aderirem a ele. É preciso buscar alternativas”

No livro, você compara os humanos a insetos e diz que não teríamos trânsito se nos comportássemos como formigas ou abelhas. O que elas têm que deveríamos copiar ou nos inspirar?
Tem um tipo de formiga no Panamá, apenas para dar um exemplo, que muda de ambiente todo dia, muda de habitat completamente e tem que achar novas fontes de alimentação. Muda os ninhos, constrói essas grandes trilhas. Tudo isso sem mapas ou guardas de trânsito. E a eficiência dessas “estradas” é enorme. Claro que elas evoluíram por milhares de anos até serem capazes de fazer isso. Infelizmente o homem só dirige há uns cem anos [risos]. Mas elas têm esse tipo de inteligência coletiva que nos falta nas ruas. Engenheiros de trânsito gostam de falar de duas coisas: uma é otimização de um sistema e a outra é otimização individual, o que cada motorista acha melhor para si. Na Califórnia existe uma coisa chamada “rampmetering”, que consiste em fazer esperar um pouco quem vai entrar numa estrada que esteja com muito movimento. E isso melhora o fluxo. A pessoa pode se perguntar: “Mas por que devo esperar se o fluxo está bom?”. Mas a ironia é que o trânsito está andando justamente porque aquela pessoa parou. Ninguém quer abrir mão do seu tempo para ficar esperando naquele semáforo, mas, porque estão fazendo isso, o sistema todo flui melhor. Infelizmente, sem colocar esses aparatos tecnológicos, nós, humanos, não conseguiremos nos organizar para isso, porque nossos desejos individuais virão sempre antes da coletividade. As formigas têm essa total falta de egoísmo e trabalham para algo maior. É um sistema bem totalitário [risos], mas, em termos de projetar redes, há muitas lições pra aprender. Mas não somos obrigados a fazer isso, estamos acostumados a agir em grupos pequenos e a pensar em nós mesmos. Um exemplo clássico é chamado de “síndrome da faixa especial”. Você está parado no trânsito e existe, ao lado, uma faixa especial – para ônibus, por exemplo –, e você tem a impressão de que ela está sempre livre e é um desperdício, mesmo se passam ônibus cheios! Mas o fato é que fica difícil entender como esse sistema funciona a partir do ponto de vista individual.


Davi Kopenawa Yanomami

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Pouco conhecido em seu próprio país, Davi Kopenawa Yanomami é a mais respeitada liderança indígena brasileira. Já foi premiado pela ONU, garantiu um território maior que Portugal para seu povo e tem biografia best-seller em francês. Em sua maior entrevista já publicada, fruto de dois dias de conversa, Davi fala da vida, da natureza e da falta de esperança no futuro: “Não tô triste não, eu tô revoltado”. 

Difícil não sentir certa culpa conversando com Davi Kopenawa Yanomami. Durante os dois dias em que a reportagem da Trip acompanhou a rotina da principal liderança indígena brasileira, ele não aliviou em nada a barra pra nós, homens brancos, ou napë: aponta para a aliança do repórter para exemplificar como estamos acostumados com ouro, prata e outras riquezas naturais que vêm, por exemplo, do garimpo que há séculos destrói terras indígenas e mata seu povo. Não vê esperança no futuro, seja de índios ou do que chama de povo da cidade: “Ou vamos morrer queimados, ou vamos morrer afogados”. Critica todos os governantes do Brasil e do exterior, de ontem e de hoje, e acha que na Rio+20 não tiveram interesse em ouvi-lo. Não se cansa de repetir que os índios nunca foram respeitados e que brancos não entendem a importância de preservar a natureza. “Pra que vocês vão pra escola? Pra aprender a ser destruidor? Nossa consciência é outra. Terra é nossa vida, sustenta a barriga, é nossa alegria. É boa de sentir, olhar... é bom ouvir as araras cantando, as árvores mexendo, a chuva.”

Davi Kopenawa tem (estimados) 58 anos, vive na região da Serra do Demini, onde nasceu, perto da fronteira entre Amazonas e Roraima com Venezuela. Fica no hemisfério norte do globo, e lá se chega depois de duas horas de voo com um monomotor a partir de Boa Vista ou então após uma jornada de dez dias de barco da capital roraimense. Kopenawa viu de perto pai, avós, tios e praticamente toda sua família e centenas de outros “parentes” (como chama os demais Yanomami) morrerem de doenças vindas do contato com não indígenas. Parte chegou com missionários evangélicos que viveram em sua tribo por anos, e que quase o fizeram trocar as pajelanças por Jesus. Davi sobreviveu a essas epidemias e, adolescente, conseguiu libertar-se das crenças brancas e também resistir às tentações da cidade. Hoje é intérprete da Funai, pajé, chefe do posto indígena de sua região e presidente da Hutukara Associação Yanomami – “uma embaixada indígena junto ao homem branco”, explica.

Mas Davi Kopenawa é bem mais do que isso. É a mais respeitada e bem articulada liderança indígena brasileira, cujo trunfo é conseguir viver no tradicionalismo e foco proporcionado pela vida na aldeia e, ao mesmo tempo, ter a compreensão e o português necessários para entrar no jogo político da “nossa” sociedade. Dessa forma, com um pé em cada canoa, foi o principal responsável pela demarcação da terra Yanomami, que ocupa um território maior que Portugal e foi oficializada por Fernando Collor na época da Eco 92 –“ele foi obrigado por governos do mundo todo a fazer isso”. Já discursou na ONU e em outros fóruns internacionais e recebeu o prêmio ambiental Global 500 das Nações Unidas (único brasileiro além de Chico Mendes a receber a honraria). É bem mais conhecido e ouvido fora do que dentro do Brasil. Para se ter uma ideia, é verbete nas Wikipédias em inglês, francês, alemão e holandês, mas é ignorado na versão em português. Sua biografia La chute do ciel, escrita a partir de depoimentos ao antropólogo francês Bruce Albert, que o conhece há 30 anos, foi best-seller na França, onde foi lançada em 2010. Em tradução, está prevista para sair apenas em 2013 por aqui, pela Companhia das Letras. Esse senhor de pele morena e sorriso fácil, contudo, não dá a mínima para esse hype internacional. Desembarca de Londres ou dos Estados Unidos e vai direto para o meio do mato passar os dias sem roupa ao lado de seus “parentes”, distante de toda parafernália que costumamos chamar de civilização. Especialmente longe da língua portuguesa, que considera “um veneno” usado para manipular seu povo.

No primeiro dia com Davi, passamos mais de dez horas em meio a uma estradinha de terra ao sul de Boa Vista, cortando um trecho da terra Yanomami. Davi contornava uma desavença séria entre duas aldeias, que tinha começado por um mal-entendido e já tinha causado até morte. O líder conversou com um lado, com outro, foi ao mercado na vila mais próxima e levou comida para mais outros. Jornada intensa e extremamente cansativa, mas que Davi encara como parte de seu trabalho. O dia seguinte foi mais tranquilo, conversamos a maior parte do tempo na sede da Hutukara, à beira do enorme e belo rio Branco, que corta Boa Vista.

No fim do encontro, ficou a forte impressão de que ninguém se relaciona tão bem com a natureza como os povos que nasceram em meio a ela desde que surgiram no planeta. “Proteger isso tudo não é só prioridade do índio, é prioridade pra todo mundo”, fala Davi em seu papo reto Yanomami ao mesmo tempo incômodo, contundente e difícil de discordar. “A gente fala, mas branco não quer escutar, não. Temos que cuidar do nosso país, e de todo o resto. Planeta existe só um, não tem outro. Se acabar com este aqui, se destruir tudo, vai dar pra mudar pra outro?”

 

“A onça procura na pedra um bom buraco para viver. Macaco é a mesma coisa. O mutum fica nas árvores, onde a natureza quiser. Mas o homem branco precisa ter geladeira, freezer, cama, telefone. São costumes bem diferentes”


Como é seu trabalho de defesa do povo indígena?
O principal é a Hutukara Associação Yanomami [da qual Davi é fundador e presidente], que tem oito anos. Eu pensei e sonhei pra criar a Hutukara. Ela não tem ligação com a Funai e defende terra, saúde, cultura, o direito do povo Yanomami. E não só de Roraima.

Então ajuda as aldeias Yanomami da Venezuela também?
Sim, todos são meus parentes. Conheço e falo em nome deles, mas não trabalhamos lá, damos apoio de longe. E a situação é bem pior que aqui. Venezuela não protege o povo Yanomami. Tem terra pra viver, mas não tá demarcada, governo de lá não quer, então tem bem mais garimpo que aqui.

Arquivo pessoal

Davi discursa no Congresso Nacional

Davi discursa no Congresso Nacional

E qual a diferença entre a forma de o povo indígena ver a natureza e a terra e a forma que os outros veem?
Nós somos bem diferentes. O povo da terra é diferente. Napë, o não índio, só pensa em tirar mercadoria da terra, deixar crescer cidade... Enquanto isso o povo da terra continua sofrendo. Olha aqui em volta [aponta para território Yanomami ao sul de Boa Vista, o qual estávamos atravessando], tudo derrubado. Fazendeiro desmata para criar boi, vender pra outros comer e ele ganhar dinheiro. Aí pega dinheiro e continua desmatando, criando boi, abrindo mais fazendas... Napë só pensa em dinheiro, em botar mais madeira ou o que for pra vender, negociar com outros países. Nós pensamos diferente. A beleza da terra é muito importante pra nós. Do jeito que a natureza criou tem que ser preservado, tem que ser muito cuidado. A natureza traz alegria, a floresta pra nós índios é muito importante. A floresta é uma casa, e é muito mais bonita que a cidade. A cidade é como papel, é como esse carro aí na frente: branco, parece um papel jogado no chão. A floresta não, a floresta é diferente. Verde, bonita, viva. Fico pensando... por que homem branco não aprende? Pra que vão pra escola? Pra aprender a ser destruidor? Nossa consciência é outra. Terra é nossa vida, sustenta nossa barriga, nossa alegria, dá comida é coisa boa de sentir, olhar... é bom ouvir as araras cantando, ver as árvores mexendo, a chuva.

E é mesmo o garimpo o principal problema das terras indígenas em Roraima?
Sim. Aqui não tem muito madeireiro, é mais garimpo. Mas tem fazendeiro também, nesta estrada mesmo tem [Diametral norte, estrada de terra que cruza essa parcela do território Yanomami]. Tem garimpo de ouro e diamante. Na comunidade Ericó e no Surucucu é só ouro. Mas é pior no Homoxi, Xidei e na Maloca 
Paapiu: lá é o coração do garimpo. E no alto do rio Catrimani também. [Todas localidades em terra indígena demarcada.]

E essa situação sempre foi assim, nenhum governo fez nada pra ajudar?
Foi bom no governo Collor, ele tirou 40 mil garimpeiros da terra Yanomami, dinamitou mais de cem pistas [de avião clandestinas] e demarcou tudo. Mas ele fez isso porque foi pressionado por outros governos do mundo todo, era época da Eco 92. Mesmo assim garimpo só parou cinco meses. Depois foi voltando. Isso acontece porque o homem garimpeiro não tem terra e na cidade não tem serviço pra ele, então fica viciado em garimpar terra indígena. O governo tirou eles, mas não ofereceu lugar pra garimpeiro viver, trabalhar plantar, criar peixe, boi... então ele volta.

E os outros presidentes?
Lula tomou posse e não fez nada para o Yanomami, mas fez para outros povos, criando a Raposa Serra do Sol [reserva com mais de 1,7 milhão de hectares no norte de Roraima, onde ficam aldeias Ingaricó, Macuxi, Patamona, Taurepangue, Yarebana e Uapixana]. E eu falei com ele duas vezes, olhando nos olhos. Governo atual também não faz muito, então continuo lutando. O problema é que cada governo deixa pra outro resolver e aí ninguém faz nada. É como panela suja. Se você não lava, o outro também não lava, e só vai piorando.

Seu primeiro contato com brancos foi com pastores, com eles você aprendeu português. Como foi isso, e como é hoje a presença de igrejas nas comunidades?
Isso enfraqueceu, minimizou. A igreja que eu conheci e vi foram os crentes, pastores da Inglaterra, Estados Unidos e Canadá que chegaram na minha comunidade e ficaram lá morando com a gente, pregando evangelho para os Yanomami, mas a gente não conseguia entender. Eu era pequeno, tinha 10 anos. Pastor chegou com mulher e filho, aprendeu nossa língua e começou a dar aula de religião e ler Bíblia em Yanomami. Primeiro eu achava interessante. Falavam que deus mandou eles pra nossa terra, que mandou pra ajudar a não brigar, não fazer guerra e não fazer pecado.

E o que era pecado?
Não sei direito o que é pecado... significa que não pode, parece... Eles diziam que não podia brigar, não podia mentir e não podia namorar.

Mentir e brigar tudo bem, mas sem namorar é difícil, hein?... [Risos]
Pois é, todo ser humano namora. Mas eles falavam que tinha que ser assim, porque aí Jesus ia voltar pra nossa terra e todo mundo ia pro céu.

Mas você acredita em outra coisa, não?
Foi Oman [divindade indígena] que criou tudo. E quando surgiu a Terra, surgiu homem da floresta. Todos nós somos filhos de Oman, Ele tá aqui mas ninguém vê. Olha só, governo federal pensa que o que tem embaixo da terra é dele, mas eu não acredito. Sou Yanomami, filho de Yanomami, como vou achar que governo é dono de tudo que tá debaixo da terra? Eles que inventaram isso. Mas nós conhecemos o dono da terra.

E como você deixou os pastores de lado e voltou para Oman?
O pastor queria acabar com nossa pajelança, queria colocar evangelho no lugar do pajé. No começo eu acreditava, mas depois cresci, tinha 15, 20 anos, e descobri que o pastor fez o que falou pra todo mundo não fazer: pastor fez pecado. Namorou índia e não gostei. Falou que era pecado, mas pecou. Namorou minha prima. Então falei: “pastor, você é muito mentiroso, você tá errado, não acredito mais em você”. A partir daí comecei a pensar melhor e retornar ao meu criador Oman. Eu tava quase esquecendo, quase não acreditava mais... Hoje não quero mais evangélico com meu povo, não aceito que venha catequizar. Mas tem comunidade que tem pastor, tem padre.

Depois disso, mais tarde, você acabou virando pajé...
Não conheci meu pai, ele morreu de doença quando eu era pequeno, minha mãe me disse. Desde pequeno sofri junto do meu povo. Morreram muitos parentes de sarampo, malária, tuberculose, doenças de branco que matam até hoje. Morreu irmão, avô, tia... aí fiquei revoltado com homem da cidade. Mas eu sou protegido do grande pajé, então sobrevivi e passei a ser lutador. [E depois daquele episódio com os pastores] Comecei a falar com meu grande pajé, que chama Lourival e é meu sogro. Ele tá vivo, mora na aldeia. Eu precisava da força da natureza. Aí fiquei um mês só tomando yãkoãna [planta alucinógena ministrada pelos pajés] até conseguir sonhar. Sonhei com xabori, o espírito da floresta, e foi muito bom. Essa é a minha raiz, e ele falou pra eu ficar com ele.

Então você faz trabalhos de cura, rituais?
... Sim, faço trabalho de cura com yãkoãna. Chamo o xabori e ele fica junto comigo, aí curo meus filhos, minha mulher, meus irmãos. Só uso yãkoãna pra dar uma luz, pra conseguir ver. Assim que nós pajé usamos, é a tradição.

E você já fez outros rituais xamânicos com outras plantas, como ayahuasca?
Já experimentei ayahuasca, foi interessante, aprendi muito. Mas é muito forte, você toma cinco copos e fica muito tempo [sob o efeito do alucinógeno]. Com yãkoãna é mais rápido, mesmo que você tome dez sopradas [um composto da erva é soprado no nariz por outra pessoa, com um canudo comprido]. Mas com muitas sopradas você cai no chão, começa a se vomitar e se cagar tudo... [Risos]

Amanhã você embarca para a Rio+20, o que você espera do evento?
Tô esperando um milagre [risos]. O governo é o chefão, e se governo não der ordens pra ajudar povo indígena, não adianta nada. A invasão das nossas terras têm mais de 500 anos e continua. [Ao final da Rio+20 falamos novamente com Davi, dessa vez por telefone. Ele tinha participado de alguns encontros, como um, a portas fechadas, entre o secretário-geral da ONU Ban-Ki-Moon e 12 lideranças indígenas brasileiras. Não saiu muito feliz: “Para salvar o planeta os brancos precisam mudar seu pensamento e sua maneira de agir. Vim pra a Rio+20 porque os povos da floresta podem ajudar a fazer essa mudança. Mas pouca gente teve interesse em me ouvir”]


“Eu já quis ser branco. pensei: ‘tô na cidade, sei andar na rua, de carro, comer de garfo e faca, vejo televisão, vou procurar mulher branca pra mim’. Hoje não tenho dúvida: sou Yanomami. Posso usar roupa, usar sapato, mas minha alma não é falsa”


As terras indígenas somam cerca de 13% do território nacional e praticamente metade da Amazônia. Há quem acredite que com o crescimento da população mundial esse espaço todo tá começando a chamar mais a atenção do mercado, dos brancos... Você sente isso?
Já pensei nisso faz tempo. O branco... não gosto de chamar de branco sempre, chamo Napë. Então, Napë tá crescendo muito, cidade cresceu, e também veio muita gente de fora. Na Europa não tem mais terra, então eles chegam aqui, e só aumenta população do povo não índio. Estamos preocupados, é problema sério. Muita gente acostumou com isso aqui [encosta na aliança do repórter], quer ouro, prata e pedras preciosas. E também terra boa pra fazer tijolo, tirar madeira... O que a natureza colocou embaixo da terra virou como mulher nova. Todo mundo quer olhar, quer usar, todo mundo quer comer. E também falam que é do governo, mas governo não plantou, não, a natureza que pôs ali. Aqui em cima é pro índio fazer roçado, plantar macaxeira, banana, cana... alimentação indígena. Mas branco quer tirar mercadoria da terra, já aprendi faz tempo esse pensamento. Napë não quer preservar a natureza, cuidar da terra. Só quer destruir, tirar riqueza da floresta, negociar madeira pra país onde não tem. E ainda tem problema de biopirataria e garimpeiro. O nome já diz: garimpagem, fazer buraco... Mataram meu povo por conta de ouro e diamante. Querem fazer brinco de pedra pras mulheres deles ficarem bonitas e enfeitar casa, enfeitar loja, enfeitar tudo... o pensamento, o mundo todo do branco é assim.

[O carro passa pela porteira de uma fazenda em território Yanomami] O que essa proximidade das fazendas e dos brancos representa para os índios?
Tem muito fazendeiro, arrozeiro, plantador de soja. Lá no Xingu, por exemplo, a terra Tikuna tá toda cercada de fazenda de soja. E soja é muito ruim pra terra, acaba com cabeceira de rio. E isso é importante não só pro índio, cabeceira de rio é importante pra todo mundo. E agora os filhos do povo da terra não crescem mais como antigamente, não querem mais viver nas comunidades... O Xingu tá ficando assim, eles saem da aldeia e vão pra cidade. Aí ficam uma semana, acostumam logo e não querem voltar.

Arquivo pessoal

durante visita a Paris

durante visita a Paris

Por que não querem voltar, o que atrai tanto na cidade?
Pra nós o costume da cidade é muito forte, manipula nosso pensamento. A língua portuguesa é um veneno. É um veneno que entra na cabeça e faz esquecer a comunidade, mãe, pai... a cidade destrói o pensamento da comunidade. Aí não pensa mais como caçar, na aldeia, não pensa em nada. Índio novo só quer saber de celular, TV, CD, jogo, festa, carro, internet. Tudo isso manipula índio, pensamento dele fica na máquina. E caiu na máquina já era, não tem mais como retornar. Eu sei porque comigo quase foi assim.

E como você conseguiu evitar as tentações da cidade?
Eu queria ser branco. Sou Yanomami, mas pensei: quero virar branco. Tô na cidade, sei andar na rua, de bicicleta, de carro. Tô olhando televisão, comendo comida “de plástico”, usando colher, garfo, tudo. Eu tinha uns 14 anos, era novo, foi quando fiquei um ano ou dois em Manaus. Morava na casa de um amigo e achava bonito aquilo, não queria mais voltar pra aldeia. Pensava até: “Vou procurar mulher branca pra mim”. Mas meu amigo falava: “olha, Davi, aqui na cidade é diferente, você não pode pensar que vai casar. Mulher branca é difícil, quer casa própria, carro, celular, televisão, roupa nova, dinheiro no banco”.

Mas chegou a namorar alguma mulher branca?
Não, nenhuma.

E como você voltou para sua aldeia? 
A Funai me levou de volta pra minha casa. Eu que procurei eles, tava com saudade demais dos meus irmãos todos e queria muito voltar. Meu amigo que morava comigo me orientou a voltar. Aí depois eu ficava lá um pouco e um pouco na cidade, porque virei intérprete da Funai, deram emprego pra trabalhar com meu povo. Hoje não tenho dúvida: sou Yanomami. Posso usar roupa, usar sapato, mas minha alma é de Yanomami de verdade. Não é falsa.

Davi, estamos aqui falando de destruição, problemas... será que não tem um acordo pra salvarmos a Terra?
Como não tem outra Terra, nosso povo também é só um, nós e vocês. Então precisa sentar pra trocar ideia. Discutir junto como usar nosso planeta e nosso país, que é tão rico, tão bonito e tem água limpa. Mas homem de São Paulo, Inglaterra ou dos Estados Unidos não quer saber de manter terra viva, a floresta em pé. Quer derrubar tudo e fazer mercadoria. Mas tem que pensar no futuro, no que vai acontecer com as futuras gerações, ou daqui a cem anos nosso planeta vai virar um campo de futebol, sem árvore, pássaro ou água limpa, sem beleza nem índio. E quando acabar índio e floresta, aí vai ser o fim do mundo.

 

“O homem da cidade também vai morrer. Vai começar a sofrer, a brigar, a matar parente. Vai querer comprar floresta, vir com trator para cá e a destruição vai engolir todo mundo. Não é só o índio que vai morrer”


E como você imagina que vai ser a vida do povo indígena daqui a algumas décadas?
Acho que vai acontecer o pior. O povo da terra vai sofrer. Daqui a cem anos nem vai chegar, povo indígena está cercado. Meus filhos estão aqui, mas meus netos os brancos vão tentar comprar. Não índio sabe enganar, mentir. Vai querer ser amigo, dizer que índio tem que mudar, que assim vai melhorar. Mentira. O branco que tem dinheiro passa bem. O que não tem dinheiro passa mal. Sem liderança e sem terra índio vai sofrer mais do que hoje, vai começar aprender português, a gostar da cidade. Índio cai fácil, não tem resistência pra defender cultura dele. Hoje nossos filhos já tão na escola, usam roupa, corta cabelo como o de vocês, usa perfume, celular... Então, fico preocupado com o futuro.

Você não vê nenhuma esperança?
Vejo alguma esperança, mas se nascer líder tradicional. Pra garantir nossa sobrevivência precisa liderança da aldeia. Liderança indígena que mora na cidade não vai cuidar do povo dele, não. Minha esperança é que que venha mais igual eu, igual Raoni, Aílton Krenak... lideranças da comunidade pra continuar defender, brigar e divulgar.

Você chegou a conhecer essas outras lideranças indígenas, como o cacique Raoni?
Considero Raoni meu tio. Sou amigo dele. Ele mora em Altamira, é Kaiapó. Conheci quando comecei a lutar e fui convidado para um encontro de lideranças indígenas em Brasília, aí conheci outros líderes como ele, o Aílton Krenak, Álvaro Tukano, Paulinho Paiakan.

E índio na política, como o cacique xavante Mário Juruna, faz falta?
O Juruna foi deputado federal, mas não fez muita coisa. Foi branco que elegeu ele. Se tivessem sido os índios, os parentes, ele ia durar mais. Acho que ele foi comprado com dinheiro... É bom ter mais índio na política, mas tem que ser índio mesmo, da aldeia. Alguns parentes Macuxi e Wapixana tentaram se eleger, mas não conseguiram. Eu mesmo pensei em me candidatar, mas não ia ter dinheiro pra andar de carro e fazer campanha. Eu ia sair pelo PT.

Arquivo pessoal

com a mulher e dois dos cinco filhos, em foto dos anos 1990

Com a mulher e dois dos cinco filhos, em foto dos anos 1990

Pensa em se candidatar em alguma eleição no futuro?
Tô pensando, mas não tô querendo muito não. Eu até quero ser amigo dos políticos, mas eles não querem ser meus amigos... então vou continuar enchendo o saco dos políticos. [Risos]

Sua história não é comum, nem seu dia a dia. Você nasceu na fronteira com a Venezuela, vive lá até hoje, mas passa períodos na cidade, viaja pela Europa... Como faz para manter suas raízes? 
Minha casa é no Demini [serra no território Yanomami, entre Roraima e Amazonas], moro lá. Fico em Boa Vista uns dois meses por ano. Isso se não tiver problema de garimpo, de saúde, invasão. Se tiver, fico mais pra resolver, mas quando chega a hora sempre volto pra aldeia. Aqui a Hutukara é como embaixada Yanomami, representa nosso povo junto aos brancos. Antes homem branco olhava pra baixo pra falar com índio, agora é olho no olho, pra isso nasceu a Hutukara Associação Yanomami. Pra lutar melhor, pra falar com jornalista, falar com televisão, fazer documento pra mandar pra autoridade.

Como você vem da sua aldeia pra cá? 
De monomotor. Dá umas duas horas. E dá para ir de barco também. Você sai daqui, desce até Caracaraí pelo rio Branco. Vai até Barcelos, pega o rio Negro subindo e vai indo até minha casa. Leva uns dez dias.

Você falou da preocupação com o futuro do seu povo. E o futuro do homem que vive na cidade grande, como imagina que vai ser?
Ele vai morrer. A cidade é uma briga. Briga entre branco. Tão roubando, não tem lugar pra trabalhar, o que comer... Vai começar a sofrer, a brigar, matar parente. E aí vai querer comprar pedaço da floresta, crescer pra cá. O costume do branco é esse faz já centenas de anos. Vai pensar: terra indígena é muito grande, vamos lá pegar. Aí vai vir trator, máquina pesada. Máquina vai vir como cobra grande que engole todo mundo. Não é só índio que vai morrer, não, todo brasileiro vai perder, destruição vai engolir todo mundo, passar aplainando a floresta. Não vai ter mais árvore, pássaro, água limpa, nada... a briga de vocês vai ser por água.

Muita gente fala: “mas pra que os índios precisam de tanta terra?”
... Sempre falam isso. Primeiro, nós precisamos crescer também. Se o governo cuidar da nossa saúde, nossa população cresce. E também porque somos nômades, é o costume. Quando eu era pequeno, habitamos quatro lugares. Fica um ano ou dois, aí terra e caça ficam fracos e índio muda. Branco não muda, só deixa cidade aumentar. E fala: “índio precisa de terra grande pra fazer o quê? Ele não produz”. Mas nossa terra não precisa produzir. Vai vender o quê? Pra onde? Já tá tudo produzido faz tempo: a caça, os peixes, os rios, as árvores, tá tudo lá pro índio usar, até remédio tá lá.

O povo indígena vive na floresta desde sempre. Nessa convivência tão próxima com os animais, há algo 
que você aprendeu com eles?
Nós temos aldeia e caçamos, e eles também caçam e têm lugar pra viver. Para fazer oca usamos conhecimento tradicional, pegamos folha, cipó e fazemos. E a casa da onça, como é? Ela procura na pedra um bom buraco pra viver. Macaco é a mesma coisa. E mutum? Fica nas árvores, porque é ali que a natureza quer que ele fique. O peixe, a mesma coisa, fica no rio. Jabuti, cotia, todo bicho é assim, todo tem casa na natureza como nós. Você tem também, mas aí é diferente. Você tem cama, geladeira, freezer, telefone, banheiro pra cagar dentro de casa, chuveiro pra tomar banho dentro da casa, são costumes bem diferentes. Nós tomamos banho no rio.

 

“Não tem outro planeta. O povo da terra também é um só, nós e vocês. Então precisa sentar para trocar ideia. É preciso pensar no futuro, sobre como usar nosso planeta e nosso país que é tão rico e bonito e tem água limpa”


E você tem visto alguma mudança climática?
Falam que tá poluído, que mudança climática tá chegando, que tá chovendo ou não tem chuva, tá mais quente... Isso tudo é o erro do branco se mostrando. Aumenta a população, a quantidade de carro, avião, fábrica, óleo. Aqui em Boa Vista mesmo há alguns anos teve tempo seco como nunca. Secou muita floresta e aí acabaram desmatando. Tenho dois pensamentos: ou vamos morrer queimados, ou vamos morrer afogados. Mulher fala na televisão onde tá chovendo ou não e fala que é natural, mas povo não acredita. Uma vez encheu o rio e vieram perguntar o que Davi achava. Eu não acho nada, você que acha, isso é erro de vocês, sou Yanomami e tô defendendo país, vocês que tão envenenando o ar.

Não sou indígena e tenho um filho de 1 ano e meio. O que você recomenda que eu ensine pra ele?
Vocês têm que ensinar o filho pequeno qual é o caminho certo. Tem muitos caminhos, mas ele precisa aprender a proteger o país dele. Não sou eu nem você, é ele que vai proteger o Brasil. Então põe em escola com professor bom, pra ele pensar e aprender que o que é bom pra nós é bom pra vocês também.

Estávamos falando de bebida... esse é um dos problemas trazidos pela proximidade dos homens brancos? A bebida é um problema geral, não é só do índio. É um dos piores problemas que temos na cidade, nas comunidades, em todo lugar... E não vai acabar nunca. O povo da terra adotou o costume, primeiro era caxiri [bebida alcoólica indígena à base de mandioca], agora é cerveja, cachaça.

Arquivo pessoal

páginas do livro La Chute du Ciel, a biografia de Kopenawa publicada na França

páginas do livro La Chute du Ciel, a biografia de Kopenawa publicada na França

E outras drogas como maconha, cocaína ou crack, já chegaram às aldeias?
Talvez em outros povos. Por aqui não, mas vai acontecer. Com índio andando junto com homem branco vai acabar acontecendo.

Índios têm relação diferente com o tempo. Li que não há certeza sobre sua própria idade, por exemplo... Não estou preocupado com minha idade. Nós não contamos, só sei mais ou menos. Falam que é 58 anos, mas calculado [aproximado].

Então nem comemora aniversário...
Não tem isso de aniversário, festa, bolo. Nem me preocupo com isso, tô é preocupado com meu filho, com meu neto.

Qual a principal lição que nós, Napës, deveríamos aprender com a natureza?
Tem metade da população de não índios que já tá escutando, aprendendo, começando a falar em preservação da natureza. Mas ainda é pouco. O índio tem que falar mais e vocês têm que escutar mais. Temos que lutar juntos. O mais importante é ter aliança, não ficar com preconceito, não ficar inimigos. E lembrar que árvore não é carne, não tem que fazer nada, árvore é só deixar lá que já tá conservado.

[De repente, uma raposa corre na frente do carro, desviando a atenção de Davi, que só admirou o animal. Bem diferente de quando um tatu havia cruzado a pista minutos antes, provocando gritos de “Atropela!”, de Davi e do motorista, os dois de olho na carne do animal.]

Tatu eu sei que é gostoso, mas raposa é bom de comer, Davi?
[Rindo] Raposa não é muito bom não, mas por aqui caçamos anta, porco-do-mato, mutum, arara, queixada, papagaio, jabuti, paca, jacaré...

... Cobra também?
Se não acha mais nada, come cobra.

E onça?
Claro! Onça é melhor que cachorro-quente!

+ no site: Entrevista com Maurício Yekuana, que tem tudo para ser "o novo Davi" 

* As grafias e forma de usar as palavras indígenas foram checadas pelo ISA e seguem as convenções da Associação Brasileira de Antropologia.
* Agradecimentos: Moreno S. Martins, Marcos de Oliveira e todo o pessoal do ISA (socioambiental.org) e a todos da Hutukara Associação Yanomami (hutukara.org), em especial Maurício Yekuana.

Nelson Motta

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Fernando Young

Nelson Motta

Nelson Motta

Em quatro décadas vividas nos lugares certos e nas horas certas, Nelson Motta construiu uma obra invejável na música, na literatura, no jornalismo e na televisão. Aos 67 anos, ele recebe a Trip em seu apartamento na “província de Ipanema” para relembrar as amizades, os namoros, as alianças e os dissabores de quem afirma nunca ter perdido um amigo para ganhar uma manchete

Dia desses, Nelson Motta virou-se para aquela que brinca ser “a mulher da minha vida” e disse: “Olha, Mari, o fim que nós tivemos! Você, babá de gato; eu, massagista de gato”. Mari é Maria de Jesus, empregada que o acompanha há 25 anos e pelo menos três casamentos. O felino a quem obedece por amor é Max, um pelo curto brasileiro dono de penetrantes olhos amarelos – “com uma listra verde”, faz questão de detalhar. É com ele que o homem de letras e música divide o apartamento na rua Prudente de Morais, atrás do Country Club carioca, com vista para o mar. Os dois dormem juntos na mesma cama, rolam pelo chão, correm pela sala... “Gatos têm uns cem tipos de miados diferentes. Eu já atendo a uns 20 comandos e estou sempre aprendendo mais. Acho que o Max deve me enxergar como uma pessoa doméstica, carinhosa, sossegada e razoavelmente paciente. É o que eu busco ser.”

Aos 67 anos, o ex-cabeludo que vendeu juventude ao longo de tantas décadas, eterno Nelsinho, mora só e pouco convive com os inúmeros amigos que colecionou. Pode parecer irônico que alguém cuja trajetória – pessoal e profissional – sempre foi pautada por um espírito conciliador e gregário chegue a essa idade assim. Mas está tudo bem, assegura, com o velho sorrisão que lembra o sedutor bichano criado por Lewis Carroll para Alice no País das Maravilhas. “Hoje eu tenho tantos amigos que não tenho nenhum. Assim, de conversar todo dia, não tenho. Porque tenho três filhas, três netos, tenho namorada firme, pai e mãe vivos – os dois com 92 anos!” O relacionamento com a publicitária pernambucana Paula Pessoa é a distância, alimentado pelo que compara a uma sucessão de viagens de lua de mel. “É só alegria.”

A família, especialmente o papel de avô, preenche de afeto os fins de semana. Porém, o dia a dia, iniciado às sete da manhã, após um miado de despertar exigindo água, comida ou algum capricho, é direto em frente ao computador, escrevendo, com poucas interrupções, até a hora do Jornal Nacional. Depois da pausa para jantar e tomar banho, vem a novela Avenida Brasil, outra das escravidões voluntárias de Nelson Motta. “Quando saio, deixo gravando no HD. Quando estou viajando, corro para assistir no tablet: tenho assinatura da Globo.com só pra isso. São aulas de dramaturgia que ganho do João Emanuel Carneiro.”

Nos últimos dez anos, o jornalista carioca nascido em São Paulo lançou três romances pop – O canto da sereia (2002), Bandidos e mocinhas (2004) e Ao som do mar e à luz do céu profundo (2006) – e um livro de contos, Força estranha (2010), o mais elogiado e mais vendido (cerca de 20 mil cópias, segundo a editora Objetiva) de seus esforços como ficcionista. Em 2007, Vale tudo – O som e a fúria de Tim Maia já saiu como blockbuster (vendas hoje na casa dos 140 mil exemplares), superando fartamente o best-seller autobiográfico Noites tropicais (de 2000, 35 mil exemplares vendidos).

Se a vida vem em ondas, como o mar, conforme aprendeu com um dos amigos e mestres que cruzaram seu caminho, Vinicius de Moraes (o verso de “Como uma onda” foi extraído do poema “Dia da criação”), Nelson soube surfar a onda do brother Tim. Já tinha esperado por ela quase uma década, aguardando a definição do herdeiro com quem deveria negociar. E foi com espírito inquieto que se aventurou a escrever para teatro pela primeira vez. O resultado superou todas as expectativas: o musical Tim Maia – Vale tudo estreou em agosto de 2011 e já foi visto por 120 mil pessoas. No fim do mês seguinte estava saindo A primavera do dragão, retrato da juventude de outro grande amigo (e também gigante da cultura brasileira) de Nelson, Glauber Rocha.

A produtividade impressiona, levando-se em conta que ele também grava uma coluna para o Jornal da Globo, escreve artigos publicados nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, e faz curadorias musicais. Caseirão, o dono (ou seria escravo?) do Max não tem carro há muitos anos e parece concentrar esforços nas teclas do computador. A filha Nina diz que ele não mora no Rio de Janeiro, mora em Ipanema. “É verdade, eu faço tudo entre a praça General Osório e o Jardim de Alá. Dentista, médico, loja, supermercado, livraria, cinema... Gosto dessa vida de província. Só ando de táxi quando tenho que visitar meus pais na Gávea ou, muito de vez em quando, ir na TV Globo, no Jardim Botânico. Projac, só duas vezes por ano [risos].”

Com o velho parceiro Euclydes Marinho, foi coautor (ao lado de Guilherme Fiuza e Denise Bandeira) da minissérie O brado retumbante, exibida em janeiro pela TV Globo e agora lançada em DVD. E a essa altura da vida ainda arranjou outro trabalho inédito: está atuando como roteirista de cinema num filme biográfico (dirigido por Hugo Prata) sobre Elis Regina, com quem viveu um curto, porém intenso, romance, quando ela ainda estava casada com Ronaldo Bôscoli. Seu amigo, também. “Eu falo pra Paula, minha namorada: o estado que eu amo é esse da paz em movimento. A paz não é um sentimento de parado no tempo, estagnado. Não, tem uma dinâmica interna, você vai pela vida e tem amor, tem amizade, tem aventura, viagem, surpresa, sexo, alegria, dinheiro... Tem tudo nessa paz.” Atento, ali do lado, o gato Max parece concordar dizendo com os olhos: “Falou, amizade...”.

 

“Eu fui muito ajudado a vida toda. E procuro ajudar desde o mendigo, a quem você dá um trocado sabendo que ele vai beber cachaça, até os músicos, jornalistas e produtores”


Você disse que jamais perdeu um amigo para publicar uma notícia. Como vê a escola que prega que o bom jornalista cultural não pode ser amigo dos artistas?
Eu me lembro quando era um reporterzinho de cultura, com 21 anos, começando no Jornal do Brasil, e fui chamado para fazer uma coluna jovem no Última hora, em 1966. Eu logo fiquei amicíssimo do Ronaldo Bôscoli, que me aconselhava: “Você tem que ser temido”. Mas jamais entrei nessa. Pelo contrário: as melhores coisas que consegui no jornalismo – entrevistas, informações apuradas em reportagem – foram todas me colocando como amigo, as pessoas confiando em mim e passando exclusivas. O Vale tudo, sobre o Tim Maia, por exemplo, só foi ajudado pelo fato de eu ter sido amigo dele. Quando saiu o livro, veio uma jornalistinha dessas: “Você não acha que uma biografia de um amigo pode ficar meio chapa-branca?”. Eu falei: “Pô, minha filha, o Tim Maia era tarja preta. Impossível contar a vida dele e ser chapa-branca”. O que pode haver de pior sobre o Tim que não está no livro? É claro que sei de muitos segredos dos artistas que não vou sair contando por aí. Eu tenho uma trajetória de mais de 40 anos. O Caetano já falou que eu sou o único crítico musical que fez carreira sem falar mal das pessoas. Isso é uma atitude, uma coisa política. Quando ganhei coluna no Globo, dada pelo Evandro Carlos de Andrade, em 1973, eu pensei: “Pô, vou usar esse espaço num jornal conservador pra ser uma janela de liberdade. Não vou perder tempo falando mal de shows que não vão se repetir”. Jards Macalé, Luiz Melodia e Jorge Mautner, os chamados malditos, tinham ali o quintal deles. Isso é um reflexo também da minha vida. Eu nunca lutei nem por poder nem por dinheiro. Sinceramente... Quem me conhece sabe, nunca foi a minha onda. Sempre lutei por independência. Esse foi meu caminho, a minha liberdade como valor mais importante. Detesto liderar, ter que assumir responsabilidades em nome dos outros... Sou individualista demais pra essas coisas.

Mas, nessa busca por liberdade, é inevitável desagradar alguém e eventualmente virar persona non grata, não?
No meu caso, não aconteceu. Eu nunca fui crítico profissional, o cara que é obrigado a emitir opinião e avaliação sobre o trabalho de alguém. Como faziam Tárik de Souza, Ezequiel Neves, Ana Maria Bahiana e outros caras da minha geração. Nunca tive esse rabo de foguete, que é foda, obriga a assumir posição, dizer se é bom ou ruim. Na coluna eu só falava do que eu gostava. Esse foi meu impulso, ignorar o que eu não gostava.

Acervo pessoal

Com Elis Regina

Com Elis Regina

Mas muito depois, no começo dos anos 1990, em entrevistas, você bateu firme na música sertaneja que fazia sucesso. Até hoje há artistas e fãs do gênero ressentidos com você.
O tempo passou pra mim, não sei se pra eles. Hoje eu tenho outra atitude. O sertanejo pra mim está associado com a trilha dos anos Collor. Aos meus ouvidos, foi o pior momento político, ético, econômico, social da história recente do país. E a hegemonia do sertanejo foi o reflexo musical – e ruim – disso tudo. A história anda. Não é mais uma situação hegemônica e opressora como nos anos 1990. Fiz uma coluna televisiva recentemente sobre o assunto.

Como avalia o sertanejo universitário, que alguns creem ser o novo pop brasileiro?
Eu não conheço. Ouvi a Paulinha Fernandes, achei ótima, numa outra onda, mais pop na verdade. As duplas, com aqueles vocais em terças, musicalmente são um dos bodes da minha geração, a geração da bossa nova.

Você está escrevendo o roteiro de um filme sobre a Elis. Como é transformar em personagem alguém com quem você viveu um romance?
Eu adorava Elis como artista, como pessoa e como mulher. Os filhos sabem do respeito que tenho por ela. Me dou bem com Pedro e Maria Rita, tenho o João Marcello como meu afilhado moral. Claro, Elis não era santa. Quem conviveu sabe. Mas agora eu li tudo sobre ela e, quanto mais leio, menos acho que a conheço. É uma personalidade muito complexa mesmo. A pesquisa abala todas as certezas, pelo menos muitas delas... E tudo nesse trabalho depende do diretor [Hugo Prata], que é quem tem a decisão final.

Como é a sua amizade com mulheres com quem você foi casado?
Com a Marília Pêra me dou muito bem. Com a Adriana Penna [a mais recente ex] também, ela é minha amiga. Com a Costanza Pascolato eu não falo, nem quero entrar em detalhes. Amizade pós-relacionamento é difícil. Com a Marília realmente é outra coisa, muitos anos se passaram – nossa filha mais nova, Nina, tem 32, pra você ver. Mas com quem eu me dou melhor hoje é com a Mônica Silveira, minha primeira mulher, que é mãe da minha filha Joana e avó dos meus netos. Nós nos encontramos como avós. Ela é uma avó genial. Somos bem próximos, viajamos juntos, ela é amiga da minha mulher atual, tá tudo bem ali.

Que novidades na música têm empolgado você?
Olha, essa turma do Pará, que eu já acompanho há um tempo... O Hermano Vianna foi quem me chamou a atenção, há uns três anos. Depois fui a Belém e conheci tudo aquilo – Gang do Eletro, Felipe Cordeiro, Lia Sophia, o Pio Lobato, um guitarrista padrão Lúcio Maia, monstro! –, voltei várias vezes. Vou levar a Gaby pra cantar em Londres na Olimpíada. Acho uma cantora fenomenal – ela esteve aqui em casa ontem mesmo, me trouxe uns bombons de cupuaçu. O Pará tem músicos incríveis, levadas diferentes, ritmos variados... Eu já tô de saco cheio de ouvir essas coisas baianas e cariocas. E eles têm um frescor, uma vitalidade – ocasionalmente com uma eletrônica violenta no que esse produtor e DJ, o Waldo Squash, mete a mão.

 

“Posso ficar horas discutindo um assunto com o Cacá Diegues, com o Caetano ou com o Zuenir Ventura. Aprendo muito assim. Mas não vou entrar em bate-boca com um desconhecido”


Namorando uma pernambucana há mais de um ano, a Bahia deixou de ser o seu segundo lar?
Não, a Bahia continua sendo casa pra mim. Porque a Paula [Pessoa] é diretora de cinema, trabalha com publicidade e com campanha política, então viaja muito. Vem mais ao Rio do que eu vou a Recife. Mas muitas vezes a gente combina de encontrar no meio do caminho: adivinha onde? Salvador... Uma maravilha isso. Eu digo que a gente vive numa sucessão de luas de mel: passa uma semana lá, depois encontra três dias em São Paulo, vamos a Lisboa, ou a Paris, é só alegria.

Você disse que preferiu não escrever sobre os últimos anos do Glauber, o tempo em que você foi vizinho dele. Era uma convivência complicada? Era difícil ser amigo dele?
Não, isso foi mais pela saúde, pelos problemas que ele sofreu. A amizade era muito fácil, porque eu me colocava numa condição de discípulo do Glauber. Claro, eu tinha liberdade pra discutir com ele qualquer assunto. Mas não sou idiota, não sou burro, eu queria aprender com o Glauber. Com todas as barbaridades que o Glauber falava! Que também eram muitas. Mas pra que eu iria contestar, entrar em choque? Ele era incrível. Eu dizia: “Tô pensando em escrever um roteiro sobre esse assunto aqui”. E ele [incorpora voz e sotaque baiano do cineasta]: “Roteiro???!! Ró-teirista é a coisa mais mé-díocre que existe. Se o diretor fizer pior do que você espera, vai lhe deixar puto. Se melhorar o que você fez também vai lhe deixar puto. Tem que dirigir, porra! O filme é do di-ré-tor!”. E eu: “Mas, Glauber...”. E ele emendava horas de aula: “O quê? Sente aí, presta atenção: como montar a cena. Monte a cena como se fosse um quadro de Degas. Coloque os atores assim, assado...”. E tinha também o lado de eu trazer as notícias pra ele. O Glauber era fofoqueiro, queria saber o que eu trazia dos meios em que circulava: teatro, cinema, TV, ambiente literário... Eu fiz o livro [A primavera do dragão, editora Objetiva, 2011] para homenagear o meu amigo. E também para descobrir coisas sobre ele, porque o conheci pessoalmente já no fim. E fico feliz que os filhos dele amaram, a mãe, os netos... É um livro de amigo.

Acervo pessoal

em pose para a Fatos & Fotos com Dori Caymmi e Marcos Valle

em pose para a Fatos & Fotos com Dori Caymmi e Marcos Valle

Mas, por conta de alguns erros apontados logo à época do lançamento, você chegou a ser chamado de “mentirógrafo”. Como lida com isso?
Depende de onde vem o insulto, de quem fala... Escrevi uma carta-resposta a tudo isso reconhecendo esses pequenos erros factuais e pontuais, dos quais o mais grave foi ter trocado o nome de um personagem de terceiro ou quarto escalão, o Bananeira [o poeta e historiador Fernando Rocha Peres é tratado pelo apelido do jornalista Fernando Rocha, colega do grupo de jovens intelectuais que ficou conhecido como geração Mapa, nome da revista literária que editaram]. Se esse personagem não fosse sequer mencionado no livro, não se perderia nada. Entendo que o cara ache chato, né? Por isso pedimos as retificações. Isso já tem tempo, a versão que você encontra deve estar corrigida [segundo a editora Objetiva, tais mudanças só constarão da próxima reimpressão]. O cara querer desqualificar um trabalho de 450 páginas por causa disso é inveja, ressentimento. Coisa de personagens obscuros, né? Eu não quis polemizar com isso, reconheço meus erros. Que foram pequenos e irrelevantes. Contestaram até um episódio que o João Ubaldo Ribeiro me contou – o João Ubaldo, pô! Ele já tinha até escrito sobre isso, a “conspiração das maçãs” [um plano de atentado contra o então governador baiano Juracy Magalhães]. Pô, pelo amor de Deus, né? É muita má vontade.

Acha que pesou contra você um ciúme territorial?
Claro, tem gente que se considera dona do Glauber: “Como é que esse carioca vem aqui falar dele?”. Agora, a opinião do João Ubaldo Ribeiro, do Cacá Diegues, do Barretão, de todos esses amigos do Glauber é que conta para mim. Os amigos baianos conviveram com ele por três ou quatro anos. Quando o Glauber fez o Barravento, já veio morar no Rio: a província ficou na província e o Glauber foi pro mundo. Fiquei bem chateado, fiquei puto com isso. Mas não prejudicou em nada o livro [que vendeu, segundo a Objetiva, 12 mil exemplares].

Você joga seu nome no Google ou, quando lança um livro, pesquisa na internet para saber como vai sua recepção?
Não. Não tenho interesse, nem pro bem nem pro mal. Sei que deve ter muita baixaria, coisas ditas em termos horríveis, esse lodo humano... Eu não vou mentir, quando fico sabendo de certas coisas que escrevem, me aborreço mesmo. Então evito fuçar a esgotosfera. De vez em quando, sem querer, chega algo pra mim. Mas evito sempre. E por isso não tenho blog, nada aberto a comentários.

Quem lê o seu hate mail?
Nunca li e não quero saber, não tenho a menor noção.

Nem quando você trabalhava em jornal?
No Globo e no Estado de S. Paulo, menos. Na Folha de S.Paulo, quando eu escrevia lá, chegavam cartas de uns petistas furibundos. Mas eu dava minha resposta e papo encerrado. Detesto esse bate-boca. Eu gosto de discutir com aprendizado. Muitas das histórias que vivi e estou aqui contando foram a partir dessa atitude minha, que considero mais esperta: de ouvir, de absorver, em vez de transformar em guerra de ego, exibicionismo e busca por afirmação. Posso ficar horas discutindo um assunto com o Cacá Diegues, com o Caetano ou com o Zuenir [Ventura]. Aprendo muito assim. Mas não vou entrar em bate-boca com um desconhecido, que provavelmente me inveja ou não me conhece direito, tem ideias erradas sobre mim, visões politizadas... Acho engraçado, às vezes, as pessoas meio putas dizerem: “Nelson Motta só pode escrever sobre música mesmo”. É um reconhecimento, né? Como se dissessem: “De música, esse filho da puta entende”. Mas eu escrevo sobre política, economia e outros assuntos há mais de 20 anos. E não escrevo para agradar ou desagradar ninguém. Não mesmo.

É curioso que, como colunista, você habitualmente bate na classe política, o que vai contra essa imagem do Nelson Motta conciliador e chapa-branca...
[Interrompe] Eu não sou santo, não sou bom moço, não ofereço a outra face, não sou nada disso. Eu fico puuuto com as coisas. Depois de 20 anos amordaçado, é uma grande oportunidade escrever sobre política e dar opinião. Do meu jeito, mais leve, com humor, malvadeeezas... Tem um suingue ali, não é com raiva ou tom exaltado. Eu não odeio pessoalmente o Sarney, o Zé Dirceu... Mas não posso viver sem eles, porque concentram os defeitos da classe, o pior de todos os mundos. Eu combato o que eles são.

Você certamente já esteve na mesma sala que o Lula algumas vezes. Como foram os contatos pessoais com ele?
Nem sei se o Lula sabe direito quem eu sou. Lembro de uma vez em que foi simpático mesmo, eu estava com um monte de gente da TV Globo levando sugestões sobre cultura. Eu dou todo valor à habilidade, à inteligência, à determinação, ao jeito como ele construiu e conseguiu as coisas. Mas esse lado de animador de palanque, com aquela voz rouca esculhambando todo mundo e falando todos aqueles velhos clichês da esquerda, isso eu detesto. O lado fanfarrão transforma toda a política brasileira numa eleição sindical. O Lula apequenou muito as instituições.

 

“A maconha aproxima as pessoas. Nas minhas amizades, foi positiva: era impossível conviver com o Tim Maia sem maconha. Mas drogado junkie é insuportável. Eu sei porque já fui um”


Quem já processou Nelson Motta? Que inimizades fez?
Que eu saiba, inimizade não tem nenhuma. Processado eu fui duas vezes. Uma, anos depois que saiu o Noites tropicais, por um músico de terceiro escalão da Jovem Guarda citado por corrupção de menores no livro. Ganhei, ele perdeu. Depois, pela mãe do filho do Tim Maia, também anos depois. Um advogado de porta de cadeia foi lá e a convenceu a entrar com processo. Era na intenção do “vou tomar algum aqui”, e ela perdeu. Os dois foram mais na picaretagem, não tinha inimizade.

Você já processou alguém por algum motivo?
Nãão... E eu fui muito sacaneado na imprensa. O Carlos Imperial me sacaneava muito, mas, normal... Ele era sacana, um gordo cafajeste, não me incomodava muito com isso. Quem tá na chuva é pra se molhar. O João Nogueira [sambista carioca, 1941-2000] me sacaneava também, ficava puto e intimava: [imita a voz] “Pôôô, tu não pode gostar de samba e de rock, tem que escolher!”. E eu: “Pô, João, não me enche o saco! Vamos torrar unzinho”. Ele tem uma música, “Baile no Elite”, que me sacaneia [termina com “Seu Nelson Motta deu a nota/ que hoje o som é rock and roll/ A Tabajara é muito cara/ E o velho tempo já passou”], parceria com o Nei Lopes, que é um cara que eu também amo. Depois, na Copa de 1986, no México, eu e João passamos um perrengue juntos, quase fomos presos por um baseado. Ele ficou meu amigo, só não aceitava que eu gostasse de rock.

Falando em amizade, como vê algo que jamais foi assumido, mas se reflete em termos de produtividade nas parcerias: o esfriamento entre Roberto e Erasmo?
Quem sou eu pra especular o que eles ainda fazem juntos? Eu sei que me beneficio disso. Graças a essa situação tive a oportunidade de fazer quatro músicas com o Erasmo nos últimos discos dele. Pra mim, como compositor, é a glória. Agora eu posso dizer “o meu amigo Erasmo Carlos”, meu parceirinho... E sentindo ainda o quente da bunda do rei [risos]!

Acervo pessoal

com o ex-vizinho João Gilberto, cuja gestão de carreira Nelson considera impraticável

com o ex-vizinho João Gilberto, cuja gestão de carreira Nelson considera impraticável

Qual é a sua relação com redes sociais? Você não está no Facebook nem como voyeur virtual?
Nenhuma. Não posso estar no Facebook. Seria um inferno pra mim, o pior castigo. O que as pessoas me alugam, me mandam de disco, de link, de coisa pra eu ouvir... Imagina se eu estou ali aberto a novas experiências... Tá louco!

No filme As aventuras de Agamenon, o repórter, você aparece creditado como “ator de documentários” e zomba de si mesmo...
Esse troço é uma expressão feliz e engraçada do André Miranda, jornalista do Globo, me sacaneando por ocasião do documentário sobre o Paulo Francis [Caro Francis, 2010]. Naquele caso eu era indispensável mesmo, porque fui muito próximo do Francis em toda a fase do Manhattan Connection. Mas eu apareci em muitos outros porque é difícil negar, as pessoas insistem; às vezes, são amigos... E foi ótimo ser sacaneado com isso, porque a partir daí pude recusar vários convites. “Tá vendo, ó! Já tô no ridículo.” Escapei de vários: sobre o verão da lata no Rio de Janeiro, sobre o Circo Voador... E todo mundo entende, né? Ser ator de documentários é assim: você perde um tempo danado e não ganha um tostão. É a profissão mais idiota do mundo [risos]!

O que você aprendeu com seus pais, Xixa e Nelson, que estão com 92 anos, ainda dando lições e exemplos?
Minha mãe está espertíssima, não mudou nada. Quer dizer, ficou um pouco mais autoritária, mais mandona... Faz supermercado, comanda uma casa enorme, lê dois livros por semana e cuida do meu pai, que está mais velhinho, fica só em casa, ali... A minha mãe me influenciou pelo lado artístico, da música – toca piano – e também da literatura, é minha leitora, sempre muito crítica. Meu pai é meu guia moral, me deu todas as bases éticas em que acredito. Toda vez em que tive problemas mais sérios na vida eu corri pro meu pai. Ele sabe discutir, argumentar, sempre foi um homem muito generoso. E muito tolerante também. Ele sempre me disse: “Qualquer pessoa que cruzar o seu caminho, você tem que ajudar”. Eu procurei seguir, indo desde o mendigo, a quem você dá um trocado sabendo que ele vai beber cachaça, até os músicos, jornalistas, produtores que trabalharam comigo. E eu fui muito ajudado a vida toda. Cruzei o caminho de muita gente que me ajudou muito: Vinicius de Moares, Glauber Rocha, Paulo Francis, Nelson Rodrigues, Zuenir Ventura... Mestre Zuenir foi quem mais me ajudou – as aulas de português dele na faculdade de desenho industrial eram tão boas que larguei a faculdade para ser jornalista.

Você mencionou várias pessoas agora, e só uma delas, o Zuenir, está viva. Hoje, aos 67 anos, quem são os seus melhores amigos?
Hoje eu tenho tantos amigos que não tenho nenhum. Assim, de conversar todo dia, não tenho. Porque tenho três filhas, três netos, tenho namorada firme, pai e mãe vivos – com 92 anos! De vez em quando saio com um amigo, encontro um ou outro andando no calçadão, ou tenho um trabalho que me aproxima mais de alguém... De vez em quando vou a uma festa ou a um show, vejo as pessoas todas de uma vez. Mas não tenho mais, como tive em várias outras épocas da minha vida, esse círculo que se vê sempre.

 

“Só sei que me beneficio do afastamento entre Roberto e Erasmo. Fiz quatro músicas com o Erasmo. Como compositor, para mim é a glória. E ainda sentindo o quente da bunda do Rei!”


Como você viu o recente round (post mortem) entre Caetano Veloso e Paulo Francis (1930-1997), com o cantor comentando ataques do jornalista de 1983, agora republicados em livro (Diário da corte, editora Três Estrelas)?
É muito desagradável quando dois amigos seus brigam, porque frequentemente os dois têm razão. Eu lembro das farpas, “bichona Fu Manchu” pra cá, e o Francis também falava coisas engraçadas do Caetano. O que é óbvio é que uma pessoa com a cultura e a inteligência do Francis não poderia fazer uma avaliação ruim da obra do Caetano, né? A única vez em que conversei com o Caetano sobre isso ele reclamou: “O Francis falando coisas racistas horrorosas e você rindo, hein?”. Mas eu argumentei que não havia como tentar contestar isso a sério, o Francis às vezes dizia coisas tão absurdas que ficava impossível estabelecer uma discussão com um mínimo de razão. Tipo: [imita a voz de Francis] “Todos os cineastas brasileiros têm apartamento na Vieira Souto comprado com dinheiro da Embrafilme”. O Cacá Diegues morava no apartamento do sogro, o Raphael de Almeida Magalhães, na Delfim Moreira, e eu tentei explicar pra ele. E a reação era tipo Nelson Rodrigues: [imita a voz do escritor, também] “Se isso é um fato, então pior para os fatos”. Então o jeito de eu demonstrar a desaprovação pelos absurdos do Francis era rir, como se aquilo fosse uma grande piada. Eu adorava o Francis e amo o Caetano. Me identifico com muitas coisas de um e de outro, aprendi muito com os dois.

João Gilberto, que você sempre aponta como seu mestre, também foi um bom amigo. Como é a relação entre vocês hoje?
Não convivo com ele há uns cinco anos, nem de falar ao telefone ou encontrar ao vivo. E não aconteceu nada de especial. Com ele, não é preciso que aconteça, né? Quando a gente era vizinho no Leblon, eu fazia umas visitas, ele me mostrava os gatos, lá pelo final dos anos 1980. Tenho até hoje uma fita com ele cantando “Parabéns a você” pra mim, na secretária eletrônica. Passei pra CD, é uma preciosidade. Agora, eu sei como ele é, vai ficar puto se eu mostrar isso. Acho que só mostrei pras minhas filhas.

O que você acha que ainda dá pra esperar do João em termos de produção artística?
A julgar pelo cancelamento da turnê no fim de 2011, a gestão da carreira não tem estado à altura dele... Fazer gestão da carreira de João Gilberto é impraticável, é como disciplinar Tim Maia. Ele é o que é, faz as escolhas dele e arca com as consequências. O João é tão misterioso, tão impenetrável que fica difícil, a distância, especular se ele quer mesmo fazer show ou se não quer e está de saco cheio. Saber o que é que realmente existe dessas imagens que a mulher dele, a Cláudia [Faissol] gravou, se foi perdido o HD com horas e horas... Como tudo que cerca o João Gilberto é muito misterioso e há poucas informações concretas, tudo vira folclore. Fazem muitas especulações e muitas vezes não tem nada, só o óbvio. Tipo: vai fazer um show porque precisa ganhar dinheiro. Ou não vai fazer porque não está a fim. Simples assim.

Você diria hoje que o Viagra é seu amigo?
Há anos. Mas prefiro Cialis. Isso é um sonho, pô, uma maravilha! Minha geração teve dois privilégios. Em 1968, quando eu tinha 24 anos, apareceu a pílula anticoncepcional, foi uma coisa de louco no Rio de Janeiro, um estouro da boiada. Todas as garotas, aqueles brotos lindos, saíram dando feito loucas. Foi uma maravilha ter vivido esse momento. E depois outra maravilha, quando eu estava chegando, sei lá, com 50 e tantos anos, ooooh, o grande Trovão Azul! Que maravilha! Acho ótimo, uma felicidade poder ter isso. Já pensou que coisa triste: cara com 60 e poucos anos, a cabeça a mil, às vezes até fisicamente atlético, mas condenado à brochura? Uma simples pilulinha resolve, acho uma bênção de Deus.

Já perdeu amigos por causa de droga?
Já me afastei de gente, sim. Porque drogado, junkie, é insuportável. Eu sei porque já fui um deles, fiquei sete anos na cocaína, falando pelos cotovelos, feito um idiota, cuspindo nas pessoas, bebendo, enchendo a cara, falando sem parar, contando a vida pra pessoas que não mereciam nem um cumprimento. Esse é o pior lado da cocaína: o dano do convívio social. Você convive com o pior tipo de gente só porque eles estão usando a mesma droga que você – ou porque eles têm a droga ou porque você tem a droga e precisa de alguém pra usar com você, precisa de alguém pra alugar uma pessoa, falar merda durante horas. Quando amigos meus começavam a cheirar, meter o pé na jaca, eu fugia. Bêbado também é muito chato. Eu aturo um mínimo e já vou escapando...

Que amizades o seu uso de drogas lhe custou?
Na verdade, a maconha, por ser gregária, aproxima as pessoas. Nas minhas amizades, foi positiva: era impossível conviver com o Tim Maia sem maconha, impossível! Com o Glauber, nos últimos anos, também.

A maconha ainda é compatível com os cuidados de saúde que a sua idade exige?
Olha, eu fumo cigarro, já parei algumas vezes. Eu faço o que eu posso, caminho na praia todo dia de manhã, faço ioga... Tento comer de modo razoável, são formas de compensar isso. Claro que não é uma coisa boa, eu sei. Mas não bebo também, só um aperitivo, um bloody mary muito de vez em quando. Tomo um vinho às vezes, em festas – mas como eu vou a pouquíssimas... Então isso compensa, sou bem moderado.

Thammy Gretchen

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Thammy Gretchen tinha tudo – corpo, fama, rebolado – para seguir o caminho da mãe, a “rainha do bumbum”. O problema é que a moça não se sentia uma... moça. Nadando contra as previsões, abandonou os palcos, os ensaios sensuais, assumiu seu lado “mais homenzinho” e prepara-se para estrear na próxima novela das 9, Salve Jorge. E, de símbolo sexual, tornou-se símbolo de libertação sexual

Ironicamente, a primeira vez que Thammy Miranda virou notícia foi no exato dia em que, visivelmente, se tornou uma menina. A imprensa apareceu para cobrir, em 1983, quando ela, ainda bebê, furou a orelha. Posou de brinquinho novo ao lado da mãe, a cantora Gretchen, que, na época, desfrutava o apogeu de sua glútea majestade. Para Thammy, começava ali uma longa e quase nunca fácil relação com o show biz e o olho público. E que, quase sempre, tinha a ver com o fato de ela ser uma menina. Mal sabiam eles...

Famosa mesmo ela ficou aos 16 anos, quando surgiu nos programas de auditório e palcos do Brasil como bailarina nos shows da mãe. Magra, mas cheia de curvas. Cabelão no meio das costas. E caprichando no rebolado que seu nome artístico, Thammy Gretchen, evoca. Em dois tempos a moça prometia ser uma sucessora à altura da mãe nos anos 1980. Só um problema: Thammy não gostava nada do papel de princesa do bumbum. É que, desde pequena, gostava mais de olhar para as meninas do que se portar como uma. “Estava tudo meio programado para que eu fosse uma sequência da minha mãe”, ela recorda, “mas eu não gostava de dançar. Eu não gostava de ser do jeito que eu era.” Quando ela diz “jeito”, quer dizer justamente as curvas, o cabelão, o rebolado.
E foi nessa época que, longe das câmeras, ela começou a se tornar alguém muito diferente da Gretchen orginal.

No meio de uma turnê, por conta de mensagens de celular, sua mãe descobriu o segredo de Thammy. Estava tendo um caso com uma mulher. Era a primeira com quem tinha ficado na vida. Mas isso pouco importava. Gretchen ficou furiosa. E com súplicas, broncas, orações e porradas tentou trazer sua filha para o lado hétero da força. O resultado? Nenhum. Thammy nunca mais beijou um rapaz. O que, aliás, foi o máximo que fez com homens até hoje. Meio sem jeito, admite que, tecnicamente falando, ainda é virgem.

Mas nem o desgosto da mãe nem seu desconforto dentro do próprio corpo impediram que Thammy se tornasse, nos anos seguintes, uma musa dos homens héteros. Posou nua três vezes, bateu recordes de venda da revista Sexy, gravou um disco solo e fez shows por conta própria como a herdeira do trono. Mas feliz mesmo não estava. “Eu me olhava no espelho e não gostava. Desistia de tudo o que começava... Era como se eu tivesse nascido errada”, conta.

O tempo passou, e a “filha da Gretchen” foi sumindo do radar. Estava feliz, namorando, longe dos holofotes, quando, desavisada, ressurgiu como uma fênix da imprensa marrom. Era 2006, e por conta de fotos suas no Orkut ficou refém de paparazzi na porta de seu prédio. Todos queriam mais imagens da Thammy de cabelo curto, tingido de loiro, tatuada, com roupas de menino e desfilando com a namorada. Depois de um mês de silêncio, resolveu contar tudo na TV. Saiu do armário.

“Foi a primeira vez que falei na mídia sem me sentir interpretando, mentindo”, confessa hoje. “E naquela hora tive que carregar um peso enorme.” Já não era a fúria da mãe ou as questões internas de sua identidade, mas a cobrança que sentia por conta das milhares de meninas como ela, que, de repente, encontraram um exemplo para seguir. Centenas de e-mails de pessoas pedindo ajuda, conselho, amparo, agora que, por conta dela, Thammy, haviam saído do armário.

 

“Boa parte das garotas que me procuram estão cansadas desses caras agressivos, que chegam nelas de uma maneira agressiva”

 

Foram horas e horas de programas de auditório debatendo sua vida, sua sexualidade. De Bolsonaros a Marílias Gabrielas, Thammy quase calejou de tanto contar sua história. Fez terapia, tomou remédio para segurar a onda. Fez mais um ensaio sensual. Dessa vez agarrando sua então namorada, a modelo Julia Paes. Fez filmes pornográficos, mas não se envolveu nas cenas de sexo. Apenas fingia dirigir cenas lésbicas estreladas pela mesma Julia.

Hoje continua promovendo festas lésbicas em São Paulo, na semanal The L Club. “A melhor festa só para meninas”, ela garante. Quase arriscou uma candidatura à câmara dos vereadores pelo PR de São Paulo nestas eleições. Mas seus planos foram interrompidos por um telefonema da TV Globo. Inesperadamente, Gloria Perez convidou Thammy para a próxima novela das 9, Salve Jorge. Topou na hora. Vai interpretar uma policial. O que deu mais orgulho a seu já orgulhoso pai. Ele, como a personagem, é policial civil e já está dando dicas à filha de como se portar, segurar uma arma, etc...

“Estou amando, é como se finalmente eu tivesse encontrado algo que eu realmente gosto de fazer”, ela comemora, enquanto espera a estreia e já planeja o futuro. “Quero ser mãe aos 30! Não quero esperar os 31.” Mãe, mas um pouco pai... já que a barriga vai ser a da namorada. Mas, Thammy, você se sente um homem? “Eu acho que, se considerar como eu sou internamente, eu deveria ter nascido homem, sim”, admite sem dramas. “Não consigo pensar como mulher. Nem TPM eu tenho.” Mas você queria ser homem? “Sou muito feliz do jeito que sou...”, dá uma pausa, fala de novo de ter filhos, que está na crise dos 30, respira e desembucha: “Se bem que eu podia ser um negão. Pelo menos eu ia ter um pintão!”. E desembesta a rir dizendo que, no fundo, não lhe falta nada. Masculina e aparentemente em paz, Thammy está cada vez mais realizada em seu conturbado projeto de ser quem ela sente que é.

Como aconteceu esse convite para fazer novela?
Foi tudo meio surreal. Eu estava no carro quando o empresário da minha mãe me avisou que um produtor de elenco queria fazer um teste comigo, que alguém estava interessado em ver minha performance. Mas não deu nenhum detalhe. Na hora eu achei que podia ser trote, mas a coisa era quente. Umas semanas depois, me deram um texto para decorar e acabei fazendo o teste. E fiz achando que não ia dar em nada.

E o que aconteceu?
Passaram umas duas semanas e eu recebi uma ligação, que me acordou de manhã. Quase pulei da cama quando ela falou que era a própria Gloria Perez. Ela disse que eu tinha ido muito bem, que eu tinha superado as expectativas no teste e perguntou se eu não queria fazer a próxima novela dela. Eu quase morri. Topei na hora.

E ser atriz era algo em que você já havia pensado antes?
Com dias de nascida eu fui notícia porque havia furado a orelha. Então, antes de eu me lembrar de qualquer coisa, eu estou acostumada com câmera na minha cara. Isso pra mim sempre foi rotina. Mas ser atriz era algo em que eu nunca tinha pensado. Não estava mesmo nos meus planos. Até porque, pode soar estranho, confesso que essa coisa de trabalhar no meio artístico sempre foi algo confuso pra mim.

Como assim, confuso?
Eu nasci nesse meio, e tudo me empurrava para trabalhar nessa área. Mas, ao mesmo tempo, algo em mim sempre lutou contra isso. Porque, durante minha infância toda, ser artista significava estar longe das pessoas que eu amava. Por conta de ela ser cantora, minha mãe passava muito tempo fora de casa.

 

“Eu gravava CD, depois pensava ‘não gosto de cantar’. Fazia show e não gostava. Fiz arquitetura, mas não me formei. Eu desistia de tudo”


Mas, mesmo assim, você sempre buscou os holofotes de alguma forma, não?
Sim. Mas sempre tive essa relação estranha. Eu era muito criança na primeira vez que me arrisquei no palco. Minha mãe estava indo no Programa do Bolinha. Eu queria porque queria dançar no palco a música que ela tinha feito para mim. Tanto enchi, que ela fez uma roupa para mim. Ensaiamos um número e fomos pro Bolinha. Na hora que ele falou “e com vocês... Gretchen!”, eu disse que não queria mais cantar. Mas já não tinha jeito... Ela me puxou pro palco.

Mas depois você entrou para o grupo dela.
Mas, para mim, era apenas uma forma de estar perto dela. Até então eu não sabia o que era aniversário, Natal, réveillon com minha mãe. E, na verdade, foi meio sem querer o acontecimento. Eu tinha 15 anos quando uma das bailarinas dela teve um problema de saúde e não pôde fazer o show à noite. Eu pedi para dançar. Ela ficou preocupada em saber se eu não a deixaria na mão na hora H, como havia feito no Bolinha. Ela não botava fé, mas eu acabei subindo mesmo. Foi quando eu pedi para entrar no grupo. E comecei a andar com ela pra cima e pra baixo. Então, desde cedo, tudo me levava para o meio artístico.

Arquivo Pessoal

Thammy, ainda nova, em frente a um poster da mãe

Thammy, ainda nova, em frente a um poster da mãe

E você não gostava?
Eu odiava aquilo. Não gostava de dançar. Mas, quando comecei a trabalhar com minha mãe, logo passei a buscar independência financeira. Aí foi que pintaram convites para posar nua etc. Todo mundo ficava louco com meu cabelão, corpão... estava tudo meio programado para que eu fosse uma sequência da minha mãe. Mas eu não gostava de ser do jeito que eu era.

Como assim?
Eu não gostava do meu corpo, não gostava da minha cara, não gostava do meu cabelo... todo mundo pirava, mas eu não estava nada satisfeita.

Você se achava feia?
Não é que eu me achasse feia, mas era como se não fosse eu. Eu não ia com a minha cara. Olhava uma coisa e me sentia outra. Tanto que eu não conseguia comprar roupa para mim. Minha mãe comprou roupa para mim enquanto eu fui menina. Eu não sabia combinar um brinco com uma pulseira, um sapato com uma saia, sabe?

Isso você identifica desde a sua infância?
Minha mãe hoje diz que ela sempre soube, mas nunca quis acreditar. Quando eu tinha 4 anos, queria fazer xixi em pé. De qualquer jeito. Ela explicava que eu era menininha, que era pra fazer sentada. E, quando ela entrava no banheiro, eu estava fazendo xixi em pé de novo. E eu nem me lembro disso... mas, desde pequena, eu queria. Acho que nasci errada.

Errada? Você acha que deveria ter nascido homem?
Se formos considerar como eu me sinto internamente, acho que eu deveria ter nascido homem. Porque é como se eu não conseguisse pensar como mulher.

Como assim?
Desde a forma como eu me vejo e me identifico na aparência até o fato de eu me achar mais prática, mais simples, menos complicada, sei lá.

E você acha que ser mais simples é masculino?
Eu acho... mulher é muito mais complexa. Eu não tenho nem TPM! Mas é assim que eu sinto. É como gente que nasce preta, ruiva, loira... uns nascem sentindo como se fossem de outro sexo.

E você busca uma explicação para isso?
Tem uma que me soa razoável. E veio de uma conversa que tive uma vez com o Celso Russomano...

Ah, vá?!
Sim! Ele é superamigo da minha família. E tem uma amiga americana que faz vários estudos sobre isso. E ela diz, resumindo muito, que existem o cérebro masculino e o cérebro feminino. E que são diferentes. E o que pode acontecer, vez ou outra, é um cérebro masculino nascer em um corpo feminino. E vice-versa.

E quando você começou a perceber isso?
Eu fui criada escutando que o menino namora com a menina. E quando você olha pro lado e acha a menininha mais interessante? Eu andava com os garotos e gostava de escutá-los falando quais eram as mais gatinhas da escola. Eu devia ter um problema.

Mas quando você entendeu que era lésbica mesmo?
Assumir pro público, pra minha família, foi muito mais fácil. Assumir pra mim mesma foi a parte mais difícil. Tanto que eu enrolei quase dois anos antes de ficar com a primeira mulher por quem realmente me apaixonei. Trocando mensagem de amor, praticamente namorando, e nada.

Que paciência a dela, hein?
Muita! Mas várias vezes ela perdia a paciência e pulava fora. Aí eu ia atrás dela de novo... Mas hoje eu acho que eu teria essa paciência também com uma menina que está se descobrindo. Não é fácil.

Isso já aconteceu, de você se envolver com uma garota que está se descobrindo?
Sabe por que não? Eu não sei paquerar. Não sei chegar em uma menina na balada. Sempre sou escolhida, normalmente não sou eu quem escolhe. Então, se eu fico com alguém, é porque a menina já me queria. Eu não sei muito o que é seduzir uma mulher.

O que, classicamente falando, é um papel mais masculino nas relações.
É... Mas eu sou muito tímida mesmo. Respeito demais. Até porque as mulheres não gostam muito dos homens que vêm chegando. Porque acho que elas estão meio saturadas de caras chegando nelas de uma maneira agressiva. Só se a pessoa me der muita abertura para eu fazer uma brincadeira e dar um passo. Boa parte das garotas que me procuraram estava cansada justamente desse papel passivo e desses caras agressivos na hora de chegar junto. Também por isso minhas namoradas são mais para hétero na aparência. O estilo é bem feminino.

 

“Se considerar como eu me sinto internamente acho que eu deveria ter nascido homem. É como se eu não conseguisse pensar como mulher”


E como foi assumir em casa?
Não fui eu que assumi, foi minha mãe que descobriu. Eu estava trocando mensagens com minha namorada na época, essa primeira mulher com quem fiquei. Eu tinha entre 16 e 17 anos. Um dia minha mãe pediu o telefone e passou a tarde com ele. Foi quando chegou uma mensagem dela pra mim... dizendo que me amava etc. Ela chegou em mim, perguntou o que era aquilo, se eu estava ficando com mulher. Eu disse que sim... E o pior é que a tal mulher era uma contratante dos shows nossos, minha mãe a conhecia!

E aí?
Ela me proibiu de falar com a mulher, tirou meu telefone. A gente brigou feio, ela me bateu. E, quando voltamos para casa, ela me obrigou a ir para a igreja para o pastor me exorcizar.

E como foi o exorcismo?!
Se tinha um espírito em mim, ainda não saiu. O pastor me chacoalhava para um lado, para o outro... E chegou uma hora em que ele perguntou, como se estivesse falando com um demônio que tinha me possuído: “Fala! Qual é seu nome?!”. E eu olhei pra cara dele e falei: “Thammy”.

E você estava disposta a “se curar”, tinha vontade de não ser homossexual?
Não. Naquela hora eu tinha certeza do que eu queria, não tinha mais dúvidas sobre quem eu era.

E você imaginava que a sua mãe iria reagir daquela forma?
Eu não tinha como saber... Por mais que a minha mãe seja uma pessoa moderna, nunca existiu essa conversa em casa. Ela sempre trabalhou com muitos bailarinos gays, se dava bem com eles. Mas é assim: são “eles”. Na nossa casa isso não existia. Uma vez perguntaram para minha mãe em um show o que ela faria se tivesse um filho gay. Ela respondeu que aceitaria e amaria do mesmo jeito. Quando ela soube de mim e deu um chilique, eu cobrei. “Você disse que se tivesse um filho gay você aceitaria.” Ela respondeu: “Eu disse um filho, não uma filha”.

Aí tem uma projeção muito grande dela também, não?
Exatamente. Eu acho que ela esperava muito que eu fosse a continuação dela. Tanto que ela busca até hoje alguém para dar essa sequência.

Você sempre fala muito da reação da sua mãe, mas como foi com o seu pai?
Foi a coisa mais tranquila do mundo. Minha mãe ligou pra ele em prantos. “A Thammy gosta de mulher!” Ele pediu pra passar o telefone pra mim e me perguntou se era verdade o que minha mãe tinha dito. Eu disse que sim. Ele perguntou se eu estava feliz. Eu disse que sim. Aí ele me disse que estava do meu lado e que me entendia porque “mulher é bom pra cacete mesmo”. Nunca tive o menor problema com ele em relação a isso.

Nessa época você ainda tinha um visual feminino?
Sim. Demorou alguns anos para eu cortar o cabelo, virar mais homenzinho mesmo. Eu continuei fazendo shows, era meu ganha-pão. Foi uma época em que rolou muito convite para fazer ensaios nua. Cheguei a posar três vezes com visual de menina. O primeiro foi uma das revistas Sexy que mais venderam na história.

 

“Na hora de tirar a roupa para fazer as fotos, era tranquilo. O duro mesmo era dar autógrafos bem... ali, sabe? Eu queria morrer de vergonha”


E você se sentia bem?
Na hora era bem tranquilo, tirar a roupa era o de menos. A equipe sempre era muito profissional. O duro mesmo era dar autógrafos nas fotos. Os caras chegavam e pediam para eu assinar bem... ali, sabe? Eu queria morrer de vergonha.

E quando você assumiu em público e mudou a aparência?
De novo, não fui eu que assumi. Me descobriram no Orkut. Eu achando que estava secretíssima, pois tinha pintado meu cabelo de loiro. Mas viram fotos com meu look novo, com namorada... De repente, minha mãe me liga. “Viu o rebu que está dando na internet?” Eu não tinha visto nada. Estava em todo lugar falando que eu era lésbica, que tinha cortado o cabelo etc. No primeiro momento eu decidi que ia ficar na minha, não ia falar nada, e deixar o povo esquecer.

E por que decidiu vir a público? Foi o pessoal que não me deixou em paz! Eu passei um mês sem poder sair de casa. Tinha fotógrafo na porta 24 horas por dia para me pegar. Fiquei presa mesmo. Eles não desistiam. Aí eu assumi, até porque não tinha problema em admitir. Eu só não sentia essa necessidade de ir na TV falar sobre isso. Na minha cabeça, não ia mudar nada para ninguém. Mas o fato é que mudou...

O que aconteceu?
Em parte foi um alívio. Antes de eu assumir, quando eu ia na TV, era como se eu estivesse atuando. Depois, comecei a ser eu mesma, e isso virou uma causa de verdade. Mas quando eu vim a público muita gente começou a me usar como exemplo, como símbolo. E isso tem um peso muito grande. E eu tinha que aparentar publicamente a força e a segurança que as pessoas esperavam.

Como assim?
Quando eu ia para a televisão falar sobre minha sexualidade, chegava em casa e tinhas trocentos e-mails. Gente falando que tinha saído do armário depois de me ver e que os pais colocaram pra fora de casa. E me perguntando o que fazer. Outra dizendo que tinha saído do armário em casa, que tinha tomado uma surra da irmã. Aí vinham umas meninas de 12 anos me escrevendo que achavam que eram homossexuais... Mas elas têm 12 anos! O que eu vou dizer? A minha vontade era escrever que nem eu sabia o que fazer da minha vida, quanto mais da vida delas.

Paulo Vainer

Thammy Gretchen

Thammy Gretchen

E você precisou de ajuda, terapia, algo assim?
Sim, tive que fazer terapia, tomar remédio. Muito por conta dessa pressão de lidar com a cobrança e a expectativa dos outros. E, na mesma época, eu perdi um irmão. E tudo isso junto, bem na época em que eu estava me assumindo, não deu para suportar. Eu tive síndrome do pânico. Tive que cuidar um pouco de mim.

E hoje ainda faz terapia?
Não faço. Hoje em dia estou superbem, me sinto ótima como sou. Acho que a gente vai ficando mais velha e vai entendendo algumas coisas que colocam os pés no chão. Mas, até hoje, tem essa pressão de que eu não posso cair, para não decepcionar quem me olha como alguém forte.

E você namorou homens?
O que inclui namorar pra você?

Eu que te pergunto. Beijar na boca?
Já.

Nunca transou com um homem?
Não. Nunca. E já falei na TV que já fiz.

Por que disse isso?
Não sei. Acho que fiquei com vergonha de dizer que não... Tem uma história... muito íntima, nem devia contar...

Agora já começou...
[Risos] Tá... Eu tinha 25 anos e fui no ginecologista. Chegou na hora, o médico falou que não dava para fazer o tal exame. E minha mãe, que estava junto, perguntou se eu tinha algum problema. O médico virou pra ela e disse: “Problema, não. Mas ela ainda é virgem”. Ela não se conformava! “Pelo menos experimenta pra ver se você gosta!” Acho que foi naquele dia que caiu a ficha dela e que ela entendeu que eu não gostava mesmo de homem.

Fora o sexo, qual a diferença entre namorar um cara e uma mulher?
É totalmente diferente. A mulher é o oposto. Se beija na boca, pronto, tá namorando. Já leva a escova de dente pra casa e começa uma discussão infinita. É muita possessividade, muito ciúme logo de cara. Duas de TPM querendo discutir a relação. É um inferno. Isso eu não tenho, sabia? Mas eu não gosto dessas coisas, discutir a relação. Sou bem mais direta e isso as incomoda muito.

E você tem vontade de ter filhos, ter uma família?
Tô vivendo um conflito muito grande. Eu tô chegando aos 30... eu preciso ter um filho!

Mas você quer engravidar, adotar, o quê?
Acho que quero fazer inseminação artificial, mas não na minha barriga. Na da minha namorada. E a gente cria juntas. Eu preciso fazer isso com 30 anos. Não pode ser com 31! Eu quero ser mãe ainda nova, curtir a criança bastante.

E vai casar?
Depende do que você chama de casar. Se for fazer festa, cerimônia, nunca mais. União estável, essas coias, também não pretendo. Já tentei uma vez. Era para ser uma vez só, a única coisa que eu não queria era me separar. Aí, três meses depois, separamos. Foi tão ruim que desde então eu prefiro não casar mais.

Você sabe que muita gente pública não sai do armário por medo de um prejuízo profissional. Você acha que elas têm uma certa obrigação de assumir, para acostumar as pessoas, ou realmente têm muito a perder?
É com muita dor no coração que eu digo que essas pessoas provavelmente iriam se dar mal profissionalmente. Iriam passar a responsabilidade de bancar a sexualidade delas para outra pessoa, um chefe, ou o público. E, muitas vezes, essas pessoas não bancam. Eu mesma perdi muita coisa. Não tinha como arrumar um emprego normal porque eu era a Thammy, e a mídia estava de olho. Eu não podia arrumar um emprego no meio artístico porque minha imagem nova não condizia muito com o que os anunciantes, os veículos esperavam de mim.

Mas e naqueles casos, de artistas principalmente, que todo mundo sabe que a pessoa é homossexual?
Mas esse todo mundo é o nosso meio. Minha avó ainda não acredita nem que o Ricky Martin é gay. Acha que é marketing dele. Tem gente que acha que é marketing meu! O mundo realmente é conservador. Vamos pensar o que aconteceria na cabeça daquele cara que fantasia transar com aquela atriz, ou com a garota que coloca o poster do galã na parede do quarto. Isso é o que move muito da fama, do mercado. E, se a pessoa assume ser gay, muitas dessas expectativas são frustradas. Provavelmente a pessoa deixaria de ser o próximo protagonista da novela.

Mas a aceitação está aumentado rápido, não está?
Muito rápido. Mas tem formas muito diferentes de aceitação. Minha avó aceitou numa boa. Meu avô também aceitou, mas de um modo muito machista. Quando eu cortei o cabelo, virei mais menino, meu avô disse que eu ter virado homem é o de menos. Mas, se o neto desse o cu, ele não iria aceitar de jeito nenhum. Machismo mesmo... Então, cada um aceita de uma forma. Tem uma galera que mora do nosso lado e que ainda está naquela cultura do cabra-macho. Para essa turma, ser gay não é normal.

Você sofre com a homofobia frequentemente?
Não muito, mas ainda sofro. Recentemente fui discriminada na padaria do lado de casa, em que vou desde pequena. Estava com minha namorada, dei um selinho e fui convidada a me retirar. Eu até ia processar, mas desisti. Acho que a lei de Deus é muito maior do que a nossa. Eles vão pagar de outro jeito. E olha que a padaria nunca pediu desculpas, nada. E eu ainda compro pão lá.

Nem boicotou?
Não. Porque eu quero ver se um dia eles vão me discriminar de novo. Aí eu quebro a padaria!

E você tem se envolvido nessas lutas políticas recentes contra a homofobia?
Pois é. Antes de rolar essa coisa da novela, eu estava meio que entrando na política. O Agnaldo Timóteo tinha me chamado para fazer uma parceria com ele. E eu estava me animando, porque, como vereador, não temos nenhum representante homossexual. Agora, com a novela, não vai dar tempo, mas essa é uma coisa que me interessa muito. Não só política diretamente, mas pensar em uma palestra, viajar para falar com as pessoas sobre esses assuntos.

Acha que há um aumento da homofobia agora que há um avanço das causas e dos direitos LGBT?
Sempre existiu essa violência, talvez fosse até maior antes. Eu acho que agora a diferença é que a visibilidade é maior porque a pauta “homossexual” está no ar. Como a coisa está avançando, cada vez mais gente achando normal que as pessoas sejam homossexuais, cada vez mais a imprensa mostra. Eu acho que há alguns anos, quando um homossexual apanhava na Paulista, os editores dos jornais nem publicavam. Mas, mesmo para mim, que sou bem resolvida, tem um monte de coisas, de pequenos preconceitos.

Tipo?
Uma coisa muito difícil é entrar no banheiro feminino. Muita gente toma susto achando que entrou um menino. Ou, quem me reconhece, fica meio sem graça, achando que vou ficar secando elas porque sou lésbica. É que no banheiro feminino as mulheres se sentem muito à vontade. Elas ficam fofocando, mostram a calcinha nova, o peito, se maquiam... Então eu já entro desviando o olhar de qualquer uma, pra deixar claro que só vou usar o banheiro.

E, agora que está na Globo, você precisa se policiar mais sobre o que falar e fazer? Está aqui dando esta entrevista com uma assessora do lado...
Olha, não tenho uma exigência deles sobre o que eu posso ou não dizer. Mas eu me policio um pouco mais por minha conta. E nem é uma questão de censura, mas, a partir do momento que você trabalha para uma empresa, nem precisava ser a Globo, você começa a representar essa empresa. Isso é algo que parte de mim mesma. Eu acho que tenho que tomar alguns cuidados a mais.

E você se arrepende de algo que tenha dito e feito nessa trajetória?
Sabe que não? Eu acho que a palavra não é arrependimento, né?

Você se arrependeu de ter feito filme pornô?
Olha, eu atuava, mas não cheguei a fazer cena de sexo mesmo. Eu interpretava a diretora que conduzia a cena, foi muito tranquilo, mas depois é que é duro. Se tem algo de que eu poderia dizer que me arrependo, é disso.

 

“Meninas de 12 anos me escreviam se dizendo homossexuais O que eu ia dizer? Eu nem sabia o que fazer da minha vida, quanto mais da vida delas”


O que pesou depois?
Se fosse pelo filme em si, seria indiferente. Mas o que pesa é essa pecha no currículo, “filme pornô”. E, se você for ver, eu fiz cenas muito menos quentes do que algumas que há em filmes nacionais. Tanto que meu filme foi muito criticado pelos fãs do gênero. Acharam que iam ver muita coisa e não viram nada. Mas fica essa espécie de mancha, sei lá.

Mas não é um moralismo em cima disso, de julgar tanto um filme pornô?
É moralismo. Mas tem uma coisa pesada mesmo de fazer sexo pra todo mundo ver. A gente topa umas coisas na hora por impulso. O momento de assinar o contrato é uma conversa profissional. E você já leva uma grana ali na hora, resolve um monte de problemas. Até então aquilo é só um papel. O problema é na hora de filmar e o depois. Porque não dá pra fugir da raia. Mas agora essa fase acabou.

E vai virar atriz mesmo? Acha que esse é seu futuro?
Eu estou amando. E, se a Gloria Perez acreditou em mim, quem sou eu para não acreditar? Estou amando os ensaios, as leituras de texto, tudo. É como se finalmente eu tivesse encontrado algo de que eu realmente goste. Antes eu desistia de tudo, sempre. Eu gravava CD, depois pensava: “Não gosto de cantar”. Fazia show, e descobria que não gostava. Cheguei a fazer arquitetura, mas não me formei. Sempre que chegava na hora de algo engrenar, eu pulava fora. Agora eu acordo feliz de imaginar que tem ensaio. E veio em boa hora.

Como assim?
Ah, sei lá, me sinto entrando na crise dos 30! Tô precisando escrever um livro. Ter um filho. Ou, sei lá, virar negão!

Ah é, queria ser um negão?
Bom... pelo menos eu ia ter um pintão!

E você sente vontade de ter um pinto?
Juro que não me faz falta nenhuma. Eu não poderia é ficar sem minha boca. Ai, que horror... não posso ficar falando essas coisas. Acabei de falar que tinha que me policiar mais...

E você já radicalizou, tomou hormônio, partiu para o lado mais trans?
Não... nunca senti necessidade. Nunca fiz cirurgia, tomei hormônio, nada. Eu tenho conhecidas que tiraram seio, tomam hormônio para crescer barba. Eu não tenho nada contra, se sentisse necessidade, eu faria. Mas, se eu fosse fazer uma cirurgia hoje, faria uma lipo. Mas deixa eu falar uma coisa...

O quê?
Esse negócio de discutir a sexualidade dos outros é algo tão besta, não é?

É meio besta mesmo. Por que a gente é tão encanado com a sexualidade alheia?
Porque o povo gosta de se meter na vida dos outros, é simples.

Eliezer Batista

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“O que me impulsiona e me dá uma força muito grande é o outro. É saber que sempre posso fazer alguma coisa para alguém.” Quando, aos 88 anos de vida, o homem considerado o grande nome do empreendedorismo nacional, ministro duas vezes e conselheiro de todos os presidentes da história recente do Brasil, responsável por desenvolver a Vale do Rio Doce e transformá-la em uma das maiores empresas do mundo aponta que seu foco nunca esteve em si mesmo, mas no outro, a ideia de que possa haver algo que mereça a denominação de capitalismo consciente pode ser acalentada. Ex-nadador, ex-cantor de ópera, pai do controvertido Eike Batista, 178 visitas ao Japão, pioneiro nos conceitos de desenvolvimento com sustentabilidade, poliglota e botânico autodidata, Eliezer Batista é um caso a ser estudado. Um cidadão que viveu cinco vidas em uma e que acumulou o mais vistoso patrimônio que se pode desejar: respeito, bom humor e leveza

 

Alguns dias atrás, uma nota publicada na coluna de um jornalista bem informado dava conta de que Dilma Roussef havia convocado um cidadão para uma audiência a portas fechadas em Brasília. Conhecida pela sua objetividade às vezes exagerada em reuniões, a presidenta ficou por uma hora e meia ouvindo atentamente as opiniões e ideias de um senhor de 88 anos. Hoje mais lembrado por ser o pai de Eike – o mais rico e talvez o mais controvertido empreendedor brasileiro –, esse homem é na verdade pai de outros seis filhos e também da companhia Vale do Rio Doce, da relação diplomática e econômica do Brasil com o Japão e de Carajás, apontado como o primeiro empreendimento autossustentável do mundo. Graças a sua visão estratégica e capacidade de realização frequentou a lista de ministeriáveis de todos os presidentes brasileiros das últimas cinco décadas, tendo, de forma mais ou menos oficial, funcionado como conselheiro de quase todos eles, incluindo agora a primeira mandatária do sexo feminino. Conceitos como sustentabilidade, gestão humanizada e moderna de pessoas e outros que começam só agora a frequentar capas de livros e páginas de revistas de negócios foram há muito antecipados por esse senhor e por suas equipes, que desde cedo apostaram na noção de interdependência como ideia estruturante para qualquer projeto empreendido pelo ser humano.

Aos 88 e contando, Eliezer Batista é todos esses e muitos outros. À luz do conceito que ajudou a antecipar, está interligado a cada Eliezer surgido ao longo de sua trajetória, a cada decisão pequena ou grande que tomou, com efeitos positivos e negativos em si mesmo e no “entorno humano”, como gosta de dizer. Com uma memória prodigiosa sobre as pegadas de carbono e de outras naturezas que deixou pelo mundo desde que cruzou as portas da Vale pela primeira vez, em 1949, Eliezer tem uma noção tão clara sobre si próprio que relativiza sem falsidade ou hipocrisia a importância de tudo aquilo que fez e criou. “De um modo geral, nossa maneira de raciocinar é ver o todo pela parte, e isso é errado”, ele esboça um sorriso, antecipando uma das muitas analogias a que recorre para dar fluência ao raciocínio: “Veja a visão do dentista, olhando sempre para baixo e para dentro, investigando a sujeira. E a da águia, enxergando tudo do alto, interligadamente. Nada contra dentistas, mas imagine você visto pelo dentista e visto pela águia”. Gargalhada. “É muito diferente.”

Pavão de favela
A casa de Eliezer Batista, numa encosta do Jardim Botânico, na zona sul do Rio de Janeiro, diz muito sobre ele. Ampla, bem localizada, de simplicidade definida pelo próprio como “escandinava”, está longe dos arroubos associados ao filho Eike, como um carro de R$ 1 milhão estacionado na sala. “É uma casa prática”, diz o amigo e ortopedista Leonardo Metsavaht, “voltada para as coisas de que gosta: estudar, ouvir música...” Seu maior luxo está na vista privilegiada do jardim para as montanhas ao fundo. A acumulação nunca esteve entre as prioridades que o moveram. O trabalho sempre foi encarado sob a perspectiva do bem comum, do serviço ao interesse coletivo, da geração de significado. Eliezer recorre a outra de suas analogias para expor o que considera a maior ameaça à sociedade contemporânea, que considera “em decomposição”. “Quando chega ao máximo de seu egoísmo, o homem se torna um pavão de favela: ele muito bem e tudo em torno na miséria”, diz. “De que adianta? Mas, se ele se despir do egoísmo, a partir de certo ponto em que garanta um nível de conforto razoável, terá mais prazer em beneficiar o outro do que a si próprio. Entende? É a sensação de justificar sua presença aqui neste mundo que não conhecemos e nunca vamos conhecer, mas que nos esforçamos para compreender. O que eu estou fazendo é aquilo que consigo compreender.”

Eliezer Batista saiu cedo de sua Nova Era natal para estudar em colégio interno em São João Del-Rei (MG), seguindo para Curitiba na década de 1940, onde se formou engenheiro civil na Universidade Federal do Paraná. Na capital paranaense, onde viviam alguns de seus parentes, chamava a atenção pelas roupas e acessórios considerados extravagantes pelos colegas, como uma gravata-borboleta vermelha, que lhe rendeu o jocoso título de barão. Recém-formado, foi trabalhar na companhia Vale do Rio Doce, onde ocupou vários cargos, sendo nomeado presidente pela primeira vez em 1961. Sob seu comando, a companhia deixou de ser uma pequena produtora de minério de ferro para se transformar em um gigante mundial da mineração. Na década de 1980, Eliezer cravaria outro feito à frente da Vale: o Projeto Carajás, que explorou a mais rica área de mineração do planeta, localizada em uma gleba amazônica no Pará, em Goiás e no Maranhão. “Foi quando, pela primeira vez no país, se buscou trabalhar de maneira integrada com os três pilares do desenvolvimento sustentável, o econômico, o social e o ambiental”, diz a professora e pesquisadora Inguelore Scheunemann, sua segunda mulher e parceira nos projetos atuais – e “para os próximos dez anos”, ele faz questão de frisar.

 

“Hoje eu costumo dizer que uso três antidepressivos: o riso, uma boa noite de sono e a música”

 

Ao longo das mais de quatro horas de conversa, não chamaram a atenção “apenas” a inteligência, a memória fenomenal e a erudição de alguém que fala sete idiomas e transita com desenvoltura por quaisquer temas de épocas distintas como se fosse uma versão viva (e aprofundada) do Google. A verdadeira sabedoria de Eliezer está mesmo na simplicidade. “Não pense você que nasci com essa vocação”, ele diz, observando que não se sente velho, apesar de já ter passado por “três momentos muito perto da morte”. “Não, isso foi sendo construído. Acendi uma luz e comecei a enxergar melhor do que quando estava no escuro. Fui aprendendo no decorrer da minha própria experiência humana.” É o que se verá a seguir.

Para começar, o certo é dizer Eliézer ou Eliezér?
At your option [risos]. Esse nome foi ideia do meu pai, que vivia lendo a Bíblia e batizou a família toda com nomes hebreus. Em 1973, no auge da crise do petróleo, passei o maior aperto na Arábia Saudita por causa do meu nome. Na época, eu dirigia o escritório da Vale na Europa e viajei para lá com técnicos do grupo Korf, uma siderúrgica alemã que era nossa parceira no Oriente Médio. Lembro que havia uma grande animosidade contra os judeus. No hotel, em Riad, já haviam checado toda a nossa documentação e eu estava esperando pelo meu quarto quando um policial me chamou: “Mas o senhor tem nome judeu, né?”. Respondi: “Olha, na minha terra se escreve Eliezer, mas se pronuncia Ahmed” [risos]. E ele me liberou.

Ana Branco/Ag. O Globo

Eliezer com o filho Eike

Eliezer com o filho Eike

A gente está conversando há poucos minutos e já deu para perceber que o senhor tem um enorme senso de humor. De onde ele vem?
É uma coisa curiosa, veio com o tempo. Na juventude, eu levava as coisas muito a sério, vivia ocupado com a engenharia, com a matemática, com a física. Era um bitolado, como se diz. Logo que me formei, um americano que trabalhava comigo na companhia Morrison Knudsen, durante a obra da estrada de ferro Vitória-Minas, disse que eu estava perdendo tempo em ser assim, que era preciso olhar para os lados, ter uma visão mais ampla das coisas. E no decorrer da vida outros episódios ajudaram a abrir minha cabeça. Na década de 1970, o aeroporto de Beirute fechou e passei três dias lá. Foi um caos: faltou água e comida, as crianças chorando, aquela coisa toda. Ao ver meu nervosismo, um francês, veterano da Segunda Guerra, puxou conversa e me contou sobre o que havia vivido na trincheira. Na hora comecei a achar que aquele problema no aeroporto era muito vagabundo. No final, ele disse que eu precisava aprender a rir e me aconselhou a ler Henry Bergson, um filósofo francês que estudou o riso. Aquela dica foi preciosa. Hoje costumo dizer que uso três antidepressivos: o riso, uma boa noite de sono e a música. Eu canto no banheiro todos os dias para a infelicidade da minha mulher [risos].

E funciona?
Claro! Adoro música, acho que é a única arte capaz de nos fazer levitar. No passado, alguém descobriu que eu tinha voz com potencial para me transformar em um profissional! Para mim, cantar no chuveiro pela manhã por 15 minutos é um santo remédio contra o tédio e a depressão. É gozado, a gente não dá importância para essas coisas simples. Mas elas são providenciais, principalmente nos momentos difíceis. E olha que eu já descasquei muito abacaxi na vida, viu? Mas isso tem um lado bom, porque a gente aprende assim, in the hard way.

Quando a gente estuda sua biografia tem a impressão de que ganhar dinheiro nunca foi uma prioridade.
Acho que dinheiro é necessário para trazer um certo conforto, mas ser rico nunca foi meu ideal. Sempre fui movido pelo desafio de fazer. Talvez alguns me confundam com um dos meus filhos, Eike, mas ele também não tem isso como prioridade, não, só que se exprime de outra maneira. Quando ele fala em riqueza, é de criar riqueza, e não de ficar rico. Tanto que Eike poderia estar vivendo em Paris como muitos aí fazem, né? Vão pra Miami ou pra qualquer lugar na França. Como dizem por aí, dinheiro não traz felicidade, mas ajuda o sofrimento em Paris [risos]. Mas tudo o que o Eike tem está investido em empreendimentos nacionais que, por sua vez, geram empregos no Brasil. É uma das pessoas mais generosas que conheço, não tem nada de avarento.

O senhor fica incomodado com essa maneira de Eike se expressar?
Não, porque o conheço muito bem. O que me incomoda é o fato de Eike ser mal interpretado.

Li numa entrevista do Eike que, quando ele foi morar fora, o senhor mandava uma mesada pra ele que acabava antes do final do mês. Então ele tinha que se virar. Como é que um cara que administrava mal a própria mesada consegue virar um administrador competente?
Porque a mesada não era suficiente pra sobreviver [risos]. Tá vendo como é que a gente pega? [Mais risos]. Mas foi bom pra ele, porque aprendeu a se virar sozinho. Ele fez um esforço tremendo, ele andava na Amazônia, voava naqueles aviões teco-teco, uma coisa de doido aquilo. Ele tem uma coragem incrível, pouca gente faz isso. E isso é genético, né? A mãe dele era uma pessoa assim também, determinada.

Outro dia entrevistei um empresário e fiz uma pergunta que o pegou de surpresa. Indaguei se o pai dele era carinhoso, se o abraçava, se o beijava na infância. Ele parou, ficou me olhando e me deu uma resposta muito sincera, de que não tinha nenhuma lembrança do pai brincando com ele. Como foi sua infância? Seus pais eram carinhosos?
Meu pai tinha sangue irlandês, era sisudo e pouco afeito a manifestações de carinho. Mas a gente andava a cavalo juntos, conversava bastante. A questão é que não convivemos muito porque saí de casa cedo para estudar em colégio interno e depois fui fazer faculdade em Curitiba.

 

“Uma população de analfabetos escolhe mal seus deputados, os mesmos que vão fazer leis sobre assuntos que muitos não têm a menor ideia do que se trata”


E como foi a sua relação com seus filhos na infância deles?
Não passei muito tempo com meus filhos quando eram crianças. Eu vivia viajando a trabalho e eles reclamam disso até hoje. A mãe deles, Jutta (1931-2000), era alemã, vinha de uma família de militares, tinha uma formação rígida, mas, por outro lado, era muito carinhosa. Ela cuidava de tudo, foi, sem dúvida, a pessoa mais importante da minha vida. Eu a conheci aos 30 anos, quando já estava na Vale e fui estudar logística em Hamburgo, na década de 1950. Na época, minha sogra virou para mim e disse: “Olha, vocês precisam ter 12 filhos”. “Tô perdido”, pensei [risos]. Tivemos sete: Monika, Lars, Eike, Helmut, Dietrich, Werner e Harald.

Se pudesse, o senhor faria diferente hoje?
Eu poderia ter aproveitado mais o contato com meus filhos naquela idade que é a mais gostosa, até os 10 anos. Mas penso que não tinha opção, porque se eu não tivesse trabalhado como trabalhei talvez eu não pudesse ter educado os filhos da mesma forma. Eu achava muito mais importante pensar neles do que em mim mesmo.

A gente falou do Eike, mas e seus outros filhos? Que caminho seguiram?
Dois deles trabalham com Eike. Outro é consultor e mora nos Estados Unidos. Minha filha, Monika, arquiteta, também vive lá, em San Francisco. Tenho ainda um filho médico e outro ligado às artes que estão no Rio. Todos eles me enchem de orgulho, falam quatro, cinco idiomas. Monika, por exemplo, lê e escreve em japonês.

Nas últimas décadas o senhor foi conselheiro de quase todos os presidentes brasileiros, fosse como ministro, secretário ou mesmo de maneira informal. Que conclusão tirou dessa experiência?
Que sem educação a gente não vai chegar a lugar algum. Uma população de analfabetos, por exemplo, escolhe mal seus deputados, os mesmos que vão fazer leis sobre assuntos que muitos não têm a menor ideia do que se trata. Acho que outro problema sério do Brasil é a corrupção, a falta de ética na lida com o dinheiro público. Na Roma Antiga havia um magistrado chamado Lucius Antonius Rufus Appius que costumava vender, a quem pagasse mais, as sentenças que expedia. Como o nome era grande, ele abreviou para LAR. Appius. Esse senhor confundia as contas públicas com as contas privadas, como muitos que a gente conhece hoje no Brasil. A palavra larápio vem daí.

Por que o senhor foi perseguido durante o regime militar?
Para você ter uma ideia, uma das razões foi que eu falava russo... Durante a faculdade fui tentar aprender piano, mas meu professor, um alemão, gostava mais da minha voz e me transferiu para o coro ortodoxo. Como quase todas as peças do canto gregoriano eram cantadas em russo, não tive alternativa: fui aprender russo. Na época de estudante em Curitiba e, mais tarde, quando morei em Bruxelas, fiz muitos amigos russos e acabei participando da Academia Russa de Ciências. Durante o governo do Jango, a Vale construiu um porto em Bakar, na Iugoslávia, com dinheiro do governo iugoslavo, para atingir o centro da Europa com cargas graneleiras. E, como forma de agradecimento, Jango convidou o marechal Tito para fazer uma visita ao Brasil e eu o acompanhei aqui falando russo o tempo todo. Aquilo foi um golpe contra mim mesmo [risos]. Quando a revolução estourou fui tachado de comunista pelos militares. Basicamente, além de falar russo, eu tinha sido ministro de João Goulart e tinha fama de tratar bem os trabalhadores da Vale. Mas sempre fui um técnico, não tinha nada a ver com política, nem sabia o que era comunismo direito.

E o que aconteceu com o senhor?
Na época, perdi o cargo de presidente da Vale. Mas poderia ter sido pior do que isso. Eles queriam me cassar e me prender. Fui salvo pelo [empresário] Azevedo Antunes. Ele era o maior minerador do país e também amigo dos militares, e me convidou para criar em Minas Gerais uma companhia mineradora, a MBR, que bem mais tarde foi comprada pela Vale. Depois dessa experiência fui morar na Alemanha, um país que adoro e no qual vivi bastante tempo.

 

“Não cultivo mágoas nem fico preso aos obstáculos do passado. A pior coisa que pode acontecer para qualquer um é perder a vontade de viver”


Como é essa sua ligação com o país?
Ah... morei muito tempo lá, minha primeira mulher era de Hamburgo. E alemão quando é determinado você sai da frente, porque ele faz mesmo. É um povo formidável, eu tiro o chapéu. Tenho uma vocação pra alemão muito grande, vou te dizer. [Risos]

Como é ter 88 anos de idade?
Tem coisas boas e ruins [risos]. Estou sempre olhando para a frente, assim não cultivo mágoas nem fico preso aos obstáculos do passado. A pior coisa que pode acontecer para qualquer um é perder a vontade de viver. Na hora da doença, ter espírito determinado ajuda mais do que remédio.

O senhor come de tudo ou tem alguma restrição alimentar?
Eu já comi de tudo, mas hoje sou seletivo. Depois de um câncer aprendi que hoje a maior parte das doenças tem origem na comida que a gente consome.

Houve espaço para os esportes na sua vida?
Na faculdade, quando morava em Curitiba, fazia natação e competia na Argentina. Os campeonatos eram patrocinados pelo [presidente Juan Domingo] Perón. Nos anos 1940 também pratiquei saltos ornamentais de plataforma e polo aquático, apesar dos meus braços curtos. Nunca fui vaidoso, mas conquistei um corpo apolíneo na época.

Arquivo Pessoal

na ferrovia Vitória-Minas, em 1956

na ferrovia Vitória-Minas, em 1956

Quer dizer que o senhor era um galã?
Eu não diria galã, mas dava muita sorte com as mulheres [risos]. Mesmo assim nunca fui namorador. Casei com 30 anos...

O senhor tem algum hobby?
A botânica. Transformei minha propriedade em Pedra Azul, no Espírito Santo, em uma espécie de laboratório onde faço a adaptação de espécies florestais de climas temperado e semitropical. Lá temos a única coleção completa de araucárias do mundo, com 27 variedades.

E o senhor gosta de arte?
Minhas paixões são a natureza e a música, mas não deixo de admirar um quadro bonito. Por falar em arte, você conhece minha história com Salvador Dalí?

Não conheço...
Eu me sentei ao lado dele, por acaso, em um voo Nova York-Madri. Quando atravessamos uma área de turbulência Dalí ficou nervoso e começou a gritar: “Que caia, que caia!”. A aeromoça trouxe um uísque para acalmá-lo e eu, na mesma situação, também pedi uma dose. No quinto uísque ele já estava me chamando de Dom Batista e eu o tratava por Dom Salvador. Pelo meio da conversa confessei que não entendia seus quadros. “Tampouco eu”, disse Dalí [risos]. Ficamos amigos e cheguei a visitá-lo na casa que possuía na Costa Brava, na Espanha, e depois nos Pirineus. Era um maluco adorável.

O senhor tem uma memória invejável. Qual é o segredo?
Os italianos costumam dizer que os velhos são crianças que crescem ao contrário. Ou seja, à medida que envelhecemos lembramos de coisas cada vez mais distantes. Mas a memória é como músculo, você tem que exercitar. No meu caso, leio todos os dias: revistas científicas, jornais brasileiros e estrangeiros... Sempre fui muito reflexivo e costumo pensar bastante pela manhã, entre o acordar e o levantar, que no meu caso acontece entre cinco e seis da manhã. Nesse período de sono leve pensamos de forma mais rápida, o que é um ótimo exercício cerebral.

É difícil encontrar alguém como o senhor, que tenha viajado 178 vezes para o Japão. Por que tantas vezes?
Na década de 1960, o Brasil tinha minério em abundância, mas ninguém queria comprá-lo. O Japão precisava do minério para reerguer sua indústria siderúrgica, que tinha sido destruída na Segunda Guerra. Como presidente da Vale vi ali uma oportunidade de negócio para o Brasil. Na época, Estados Unidos e Europa não queriam vender minério para os japoneses. Foi por isso que viajei dezenas de vezes para o Japão entre os anos 1960 e 1980. Eu só me arrependo de não ter ajudado o Brasil a estreitar também os laços científicos e culturais com o Japão, a exemplo do que fez a Coreia do Sul. Nenhum país fica rico exportando apenas matéria-prima. Hoje, quem não apostar no quadrinômio pesquisa, ciência, tecnologia e inovação está fora da civilização moderna.

O senhor parece ter vivido cinco vidas em uma. Qual é seu legado?
Quando saiu o documentário sobre minha vida muita gente me pediu uma cópia para exibir para os filhos ou netos. Meu objetivo ali foi mostrar para a juventude brasileira que ainda há muito a ser feito por este país, basta ter força de vontade. É preciso sonhar com projetos que gerem empregos, melhorem a vida das pessoas. No final das contas, é isso que dá a sensação de que foi útil sua passagem por este grande pensionato que é a Terra [risos]. Os franceses costumam dizer l’appétit vient em mangeant, ou seja, o apetite vem enquanto comemos. Não nasci com a vocação de ser empreendedor, foi uma coisa que aprendi ao longo da vida, com o contato humano.

 

“Não diria que eu era um galã, mas dava muita sorte com as mulheres [risos]. Mesmo assim, nunca fui namorador”


Hoje em dia, os grandes empresários são unânimes em dizer que um dos fatores mais importantes para o gerenciamento competente é cuidar do ser humano. Ou seja, saber encontrar, escolher, estimular as pessoas. Aparentemente o senhor já sabia disso há muito tempo e adotou práticas a partir da década de 1940 que hoje são divulgadas como novidades em livros de management. Esse seu olhar holístico é intuitivo?
Não foi nada intuitivo, mas fruto de experiência própria. Durante a ampliação da estrada de ferro Vitória-Minas, a miséria no vale do rio Doce era assustadora. Ali não bastava apenas contratar mão de obra, era preciso dar alimentação, moradia, educação. Não fizemos isso por filantropia, mas porque os trabalhadores rendiam mais assim. E na minha trajetória profissional nunca deixei de aproveitar uma ideia melhor do que a minha. Acho que o valor está no trabalho em equipe, é fazer com que todos se sintam orgulhosos de participar de determinado projeto.

Recentemente, vi a palestra de um prêmio Nobel de economia que a certa altura disse que a economia está cada vez mais próxima de alguns conceitos filosóficos. Em linhas gerais, é como se a economia estivesse tentando medir o que é felicidade. O senhor acredita na ideia de felicidade?
Os italianos defendem tudo isso de uma maneira muito bonita, dizem que a felicidade é uma forma de pensar. Quer dizer, nós temos a capacidade de nos tornarmos felizes ou infelizes. Se felicidade pra mim, por exemplo, for acumular bens, estou perdido: vou me tornar avarento e
egoísta. A prioridade para mim é conhecer bem a si próprio e as pessoas com quem você convive ou que estão ao seu redor. Aliás, isso é uma coisa muito importante que você aprende quando pensa em física quântica.

A física quântica busca essa ponte entre a ciência e a espiritualidade. Sendo um homem da ciência, um engenheiro, qual é sua ligação com a espiritualidade?
Ah, é muito grande. Mas penso a espiritualidade no âmbito de energia, e não da religião. A religião surgiu como um conjunto de regras que buscava a disciplina para, assim, permitir a convivência entre os homens. Isso se justificava no passado, nos primórdios da humanidade, mas essa necessidade é questionável nos dias de hoje, quando já absorvemos essas regras da convivência. Todos nós somos originários do que defende a teoria do campo quântico, ou seja, absorvemos energia para formar matéria. A vida surge daí e desaparece da mesma forma. Li recentemente um livro fantástico, O grande projeto, escrito pelo [físico britânico] Stephen Hawking [em parceria com Leonard Mlodinow], que traz teorias sobre a criação do universo e questiona a intervenção divina. De acordo com o livro, o mundo não precisa de Deus para funcionar. Eu vou muito no pensamento de Hawking. Minha crença é na energia.

A gente lida muito mal com a ideia de morte. Às vezes, vejo mães que não deixam as crianças verem um animal morto e evitam falar desse assunto com os filhos. Como o senhor, aos 88 anos de idade, lida com o assunto finitude?
Um poeta alemão já disse que o problema não está na morte, mas no morrer. Ou seja, o que assusta é o sofrimento físico e mental. Eu já passei por três momentos muito próximos da morte. Primeiro você pensa nas pessoas da família, segundo naqueles que dependem de você, e terceiro, e muito importante, é se eu fiz mal para alguém. Então o que me impulsiona, e me dá uma força muito grande, é o outro. É saber que sempre posso fazer alguma coisa útil para alguém. Hoje você vê a sociedade em decomposição no mundo inteiro por conta do egoísmo. Esse é o pior defeito do homem. Agora, se você se despir do egoísmo, a partir de um certo ponto que você tenha recursos pra manter um nível de conforto razoável, você tem mais prazer em fazer um benefício para o outro do que pra você mesmo.

 

“O que me impulsiona e me dá uma força muito grande é o outro. É saber que sempre posso fazer alguma coisa útil para alguém. A sociedade está em decomposição por conta do egoísmo”


Agora, passando para uma finitude mais ampla, digamos... Por tudo o que acumulou de conhecimentos, de observação, de vivência, o senhor é otimista em relação ao futuro da humanidade? A gente sai do buraco ou estamos caminhando para o abismo?
Acredito muito na capacidade humana de engenharia, vamos dizer assim. De, através da ciência, conseguirmos sair desta situação em que nós estamos hoje. Muita coisa já está sendo feita, há muita intervenção positiva, mas não ainda com a intensidade devida. Então, eu acredito na humanidade, que temos condição de sair disso, se houver incentivos e apoio àqueles que podem apresentar saídas. Agora, se não fizer isso, nós corremos um risco muito grande de afundar.

Eliezer, o senhor vai fazer 88 anos (o empresário fez aniversário duas semanas após a entrevista)... A festa já está pronta?
Não tem festa. O importante é você estar com a cuca em dia, e eu não tenho vestígios de Alzheimer. E, se tem energia, você vai substituindo peças aqui e ali, igual a automóvel [risos].

Antigamente não conhecíamos ninguém de 90 anos, hoje, tem o Oscar Niemeyer produzindo aos 105... Considerando esse caso, quais são seus planos pros próximos 17 anos?
[Risos] Se fossem nos próximos dez eu diria, mas 17...

Nos próximos dez então, vamos ser mais modestos.
Ah, continuar o que eu faço com minha mulher, nós trabalhamos juntos e meu maior estímulo é trabalhar com ela.

Pra gente finalizar, se o senhor tivesse que escolher uma frase pra resumir sua vida, qual seria?
Resumir a minha vida numa frase... Acho que eu fiz aquilo que estava dentro do meu alcance... E só, né?

Letícia Sabatella

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Há um caminho entre os estúdios do Projac e os assentamentos do MST, entre os tapetes vermelhos dos globais e a tribo Krahô. É neste raro espaço que a mineira Letícia Sabatella pretende conduzir não apenas sua carreira, mas sua vida. Nada foge de seu radar. Do trabalho escravo à agricultura orgânica, a “musa das ongs virtuosas” (como definiu Paulo Betti) compartilha com a Trip seus sonhos mais distantes e seus planos mais imediatos, como voltar a ser “mais atriz” e, surpresa, ser cantora

Toca o telefone na redação numa prosaica tarde de terça-feira. No outro lado da linha, uma mulher de voz suave e tranquila começa a falar. “Oi, é a Letícia Sabatella, tudo bem? Sabe o que é, tem um negócio que está me envolvendo bastante agora. É essa ameaça aos índios Guarani-Kaiowá. Você acha que tem espaço na nossa entrevista pra falar desse caso para ajudá-los?” Letícia se referia aos 170 índios que pediram para ser mortos depois que a Justiça Federal de Naviraí ordenou a retirada de todos eles de suas terras no Mato Grosso do Sul. Conforme o caso ia tomando as redes sociais na internet, aumentavam as ligações para o celular da atriz, com pedidos de ajuda para divulgar a história.

Dias antes de ligar pessoalmente para a redação para falar dos Guarani-Kaiowá, ela havia passado uma manhã inteira com a reportagem da revista para a entrevista das páginas a seguir. E deixou claro que, apesar de quase nunca levantar o tom de voz, é ouvida e faz barulho sempre que entende ser necessário.

Assim foi, por exemplo, este ano, quando Letícia esteve diversas vezes na Câmara dos Deputados em Brasília para fazer um corpo a corpo pela aprovação da PEC 438, proposta de emenda constitucional que prevê, entre outras coisas, a expropriação de terras e propriedades onde for encontrado trabalho escravo. “Os artistas foram muito importantes no processo de constrangimento da câmara para que fosse votada a proposta”, diz o deputado Cláudio Puty, presidente da CPI do trabalho escravo. “Nós achávamos que não íamos conseguir aprovar a PEC. Mas a presença deles lá, chamando a atenção da mídia e da opinião pública, virou o jogo, foi impressionante. ”

Letícia sabe que, como artista consagrada que é, pode turbinar a opinião pública em volta de qualquer causa que lhe pareça justa defender. Aliás, já foram muitas as histórias que fizeram Letícia se engajar. Quando tinha apenas 20 anos de idade, ainda iniciante em trabalhos na televisão, ela fez as malas e foi para o sul do Pará acompanhada do padre Ricardo Rezende. Queria chamar a atenção para os constantes assassinatos de pessoas vítimas dos conflitos por terra na região – o próprio padre Ricardo, diga-se, era um dos ameaçados de morte. Detalhe: na época Letícia estava grávida. Carregava na barriga a Clara, hoje com 19 anos, filha do ator e então marido Ângelo Antônio, de quem se separou 12 anos depois – Letícia hoje namora o também ator Fernando Alves Pinto. Mais tarde ela foi para uma aldeia no norte do Tocantins, dos índios Krahô, e ficou 15 dias vivendo por lá. Repetiu a incursão à aldeia outras três vezes até gravar o documentário Hotxuá, sobre um dos personagens da tribo. E, entre uma ida e outra à comunidade indígena, ela participou de uma ocupação do Movimento Sem Terra no interior de São Paulo. “Conversei com pessoas que realmente me emocionaram muito. Vi o MST como uma escola de guerreiros”, ela conta.

 

“O artista pode muito bem viver naquele universo das revistas de celebridade. Mas também pode provocar uma transformação social com seu posicionamento”

 

Aparentemente, não era o suficiente para Letícia ser uma das atrizes mais ativas no Movimento Humanos Direitos, uma organização que reúne vários artistas engajados em causas sociais e ambientais. E não bastavam as temporadas no sul do Pará, a convivência com os índios Krahô, a experiência com o MST. Letícia queria colocar a mão no arado, literalmente. Montou uma fazenda que produzia alimentos orgânicos e chamou as famílias carentes da região para trabalhar em forma de cooperativa. O projeto sobreviveu por três anos. Só acabou porque, como Letícia diz: “Putz, eu preciso ser atriz também”.

Sim, é bom lembrar: antes de ser ativista, Letícia é atriz. Ela assume que já desistiu da carreira algumas vezes, principalmente quando se envolveu na fazenda de orgânicos. Mas, neste preciso momento da vida, aos 40 anos, ela prefere ser reconhecida mais como artista. “Não gosto de ter essa imagem de ser ‘a politizada’. Acho que isso tem que ser mais ordinário na vida de todo mundo. Quero ser mais atriz”, ela fala. “Mas volta e meia essas questões me tomam apaixonadamente.” A frase remete à ligação que ela fez à redação da Trip para falar dos Guarani-Kaiowá.

Letícia já está tomada por mais uma causa.

Você já se engajou em diversas causas ao longo de sua carreira. Você consegue dimensionar o retorno que a sua imagem proporciona aos movimentos sociais?
Assim como o rosto de alguém vende produtos, também divulga uma ideia. Todos temos um poder de imagem pública como cidadãos, e acho que qualquer pessoa, independentemente de ser pública, na sua microssociedade, é uma divulgadora de ideias.

Como acontece no seu caso?
Deixa eu dar um exemplo: eu tinha essa curiosidade e preocupação com o que acontecia no sul do Pará. Me preocupava com a questão agrária porque a terra e os valores ligados a uma produção saudável de alimento e à preservação da natureza são muito naturais pra mim. A primeira vez que fui para aquela região foi em 1992, com o padre Ricardo Rezende. Fui porque sabia da existência de trabalho escravo e que pessoas estavam sendo ameaçadas de morte. O próprio padre Ricardo era uma delas. E, como tenho uma imagem pública, acaba que o que eu acredito é divulgado. Só procurei ser coerente.

Não a incomoda que seja preciso que artistas famosos falem sobre trabalho escravo para finalmente darem atenção a um assunto desses?
Tinha uma época em que não se falava da existência de trabalho escravo. Mas é aquela coisa: existem revistas e revistas, artistas e artistas... Talvez um artista possa viver muito bem aparecendo só num determinado tipo de mídia, uma que fale da carreira dele, das festas, das roupas que ele veste, dos carros que ele dirige... Mas, quando serve a alguma causa, ele traz um pouco do seu olhar para pessoas que eventualmente acreditem que a vida é só aquela da revista de celebridades. Ele provoca uma transformação social. Isso é uma coisa que, por exemplo, acontece na aldeia. O hotxuá, que é o palhaço entre os Krahô [etnia com a qual a atriz teve contato], é fundamental pra saúde emocional e estrutural do local. Com o riso e o entretenimento, ele desconstrói a rigidez e, ao mesmo tempo que melhora o humor da aldeia, promove ações transformadoras, acaba sendo uma liderança natural por causa do carisma. A partir daí fica mais fácil ouvi-lo sobre assuntos sérios.

Ag News

linda aos 40, clicada por paparazzi no Leblon:

linda aos 40, clicada por paparazzi no Leblon: 'A beleza está no gesto, e não nos traços de alguém'

O hotxuá faz mais ou menos o que vocês fazem...
Sim, mas não precisa ser ator pra isso. Na Grécia Antiga – gosto muito de reler coisas que vi na escola, fiz isso mais por causa da minha filha – o cidadão oferecia metade do seu tempo pra sua carreira pessoal e a outra metade ele oferecia para a vida pública. E política não era emprego de ninguém, era a condição de viver na pólis. A condição de você viver na sociedade é participar da construção dela. Quando falam que vivemos em uma democracia eu questiono. Será que é mesmo uma democracia?

Como assim?
Será que estamos mesmo numa democracia? Será que as pessoas estão sendo educadas de fato para ser cidadãs? Escuto muito: “Ah, o ator que começa a se envolver muito com política ou com essas questões pode se esquecer de ser ator”. Por quê?! O ator tem que ser apolítico? Tudo não é postura política? A educação que a gente recebe está mais preocupada em aprovação no vestibular do que na formação de um cidadão. Quando você tem que decorar um monte de coisas que talvez não sirvam pra nada, mas podem fazer você passar no vestibular, você não está se formando como alguém que pode participar da vida em sociedade de fato. Não é só ver campanha política na televisão e votar em um candidato. Não é isso. É pra pensar. Ou então estamos só formando tecnocratas, pessoas para trabalhar na manutenção de um modelo de desenvolvimento que pode se esgotar logo.

Você acha que a sua presença e a de outros artistas em Brasília influenciou na aprovação da PEC 438 (conhecida como PEC do trabalho escravo, que prevê, entre outras coisas, a expropriação de terras e propriedades onde for encontrado trabalho escravo)?
Influenciou, certeza. São palavras de amigos políticos que estavam lá. Representamos o “olhar do Brasil”, um olho de fora lá dentro, dizendo “nós estamos vendo”. Isso com certeza influencia, a pressão popular faz a transformação em todos os lugares. E antes de ir lá telefonamos muito para os políticos, mandamos telegramas, conversamos com todos os líderes de partidos, olho no olho. Fomos no dia que seria votado – e não foi, eles adiaram. Mas a gente continuou, e continuou, e continuou...

Quer dizer, precisa alguém ali para constranger os deputados...
Temos que perceber que na verdade as coisas se fazem com participação, com pressão mesmo. Na vida é assim. Uma pessoa não vai reconhecer seu limite se você não colocar, se você não disser “chega!”. E esse tipo de desequilíbrio é inerente à humanidade, o limite tem que ser lembrado pelo outro. Sou a favor dessa participação mesmo, desse olhar que não deve ser o meu, deve ser o de todos nós. Todo cidadão deve ser educado pra exercer esse direito, quem está lá governando o país é um funcionário público.

Foi numa dessas idas a Brasília que você conheceu a Marina Silva?
Acho que foi quando estive em uma conferência de meio ambiente em Brasília e ela me chamou pra ir ao gabinete dela. Daí a gente conversou, fez uma oração junta. Naquela época eu levei pra ela questões com as quais era envolvida. Ela estava no Ministério do Meio Ambiente e levei a questão da transposição do rio São Francisco. E do manejo da floresta. Depois, volta e meia a gente se encontrou, ela me convidou pra outra conferência e pra participar de campanhas de meio ambiente. Ela é uma pessoa que muitas vezes eu procuro pra me informar. Mesmo que depois eu vá por outro caminho, nunca deixo de escutá-la.

Você segue alguma religião específica?
Não. Já li coisas do budismo, do kardecismo, coisas cristãs, zen-budistas, taoistas... Gosto muito do taoismo. Ele fala desse equilíbrio de opostos complementares. Acho que é uma síntese perfeita do que a gente é, do que a vida é. Tem uma simplicidade boa, não cria muito dogma.

 

“Não posso dizer ‘eu sei como as coisas devem funcionar’. Pelo contrário, eu sei o quanto nós somos cegos, e ao mesmo tempo podemos estar em uma busca constante de aperfeiçoamento e consciência”


Mas seus pais eram católicos?
Minha mãe é de família católica, mas completamente livre de religião. E meu pai é de família kardecista, a mãe dele era espírita, médium. Minhas avós são pessoas muito especiais, muito iluminadas. Uma avó me levava ao centro kardecista e a outra, à igreja. A mãe do meu pai se medicava pela alimentação, usava muito do kardecismo para cuidar da saúde mesmo, da saúde mental, equilibrando o espiritual e o emocional. Era uma pessoa muito lúcida até a morte, aos 100 anos. E minha avó materna é uma raiz mineira, superforte, espiritualmente muito iluminada também.

E como era viver essa mistura de centro kardecista e missa?
Eu gostava. Gosto de rezar junto, de cantar junto, de dançar junto. Essa coisa de eu ir deitar e a avó sentar ao lado para rezar... eu pedia isso pra ela, para me ensinar a rezar. E essa hora da oração era uma hora de muita visualização. Pra mim era como uma reconexão. Passava o dia inteiro, muitas coisas aconteciam, correrias, brigas, desafios, perdas, frustrações e quando chegava a hora de encontrar com a minha avó e fazer uma oração era uma transcendência, uma meditação, algo que decantava a poeira para ir resolvendo essas questões do dia a dia.

O que você acha da ala do feminismo que usa o corpo, a nudez, para protestar, como o Femen ou a Marcha das Vadias?
A princípio, não vejo obscenidade. Vejo como um gesto poético. Não sei exatamente quais as causas que demandam nudez. Mas isso de usar o corpo... Os Guarani-Kaiowá, por exemplo, estão agora usando o corpo sacrificialmente para chamar a atenção para uma coisa que é bem mais ampla, para a preservação de um patrimônio, de uma cultura. Eles estão expondo o corpo deles ali. Já vi monge vietnamita que chamou toda a imprensa e ateou fogo ao corpo para acabar com o bombardeio ao Vietnã. É um gesto violentíssimo, mas por que as pessoas não viam o problema antes de isso acontecer? Chama a atenção, quebra uma lógica viciada.

No seu caso, você acha que a beleza interfere de algum modo em seu lado ativista?
Sinceramente não penso nisso na hora de assumir uma postura, é algo que sai da minha essência. Nessas horas não é o que importa, acho que essa questão da beleza convencional não ajuda nem atrapalha. Acho que a beleza está no gesto poético, não nos traços de alguém. O belo é a busca por uma transformação, é acreditar nisso.

Você passou algumas temporadas com os índios Krahô, no norte do Tocantins. Como foram essas experiências?
Fui quatro vezes. Sempre ficava 15 dias, depois mais 15... Eu tinha uma sede, uma vontade muito grande de ir para uma tribo. Achava o máximo ver aquilo de perto, e tive a chance ao ser convidada pelo [indigenista] Fernando Schiavinni. Foi ele que orientou todo o contato. Foi um encontro, eles têm muito a nos ensinar. Os Krahô têm os mesmos problemas existenciais que há em qualquer lugar. Tem pessoas mais generosas, outras menos, pessoas que passam a perna no outro... Só que tem um sistema que consegue absorver e neutralizar isso para preservar uma igualdade maior. Bem diferente do nosso sistema, que valoriza a desigualdade, valoriza um ser maior que o outro. O ideal Krahô é ser conciliador e preservar a comunidade. Lá, os mais admirados pela sociedade são os mais pacíficos, os mais amorosos. Não o mais forte, o mais competitivo ou o mais rico.

 

“Será que vivemos mesmo numa democracia? Será que as pessoas estão sendo educadas para participar da sociedade ou apenas para passar no vestibular? É para se pensar”


Como era seu cotidiano entre os índios?
Quando chegamos, já éramos esperados. Participamos de vários rituais, do nascimento de uma criança, da morte de um ancião, de reuniões e festas. Dormíamos como todos eles, em redes dentro das casas feitas com folhas de palmeira, ao som das cantigas que continuavam a noite inteira. Também comíamos o mesmo que todos, as suas comidas típicas, como o paparoto, que é mandioca e carne assados debaixo das brasas de uma fogueira. Durante todo o cozimento, que leva um dia inteiro, eles cantam e dançam. A alimentação era à base de carne, legumes, milho, mandioca... Tudo muito saboroso, mas não havia muita comida – essa foi uma das dificuldades, eles enfrentavam problemas de desnutrição. Nós inclusive levamos suprimentos e dois bois, que foram usados para a festa que fazia parte dos rituais.

O que você acha que eles têm a nos ensinar sobre a relação com a natureza?
Equilíbrio. Eles falam muito essa palavra.

Nós perdemos esse equilíbrio?
Muitas vezes, sim. É só olhar. Se você só quiser tirar vantagens sobre a natureza e sobre o outro, vai haver desequilíbrio e acontecer uma reação em algum momento. Eu vejo a vida muito alquímica, sabe? De algum modo, tem uma alquimia regendo tudo isso. E a gente se desequilibra o tempo inteiro, todos nós. E não posso dizer: “Eu sei como as coisas devem funcionar, vocês têm que aprender”. Pelo contrário. Eu sei o quanto somos cegos e ao mesmo tempo podemos estar numa busca constante, num autoconhecimento e num autoaperfeiçoamento, tentando ter mais consciência. Uma hora a natureza fala e chama a nossa atenção.

E sua experiência num acampamento do MST, como foi?
Fui pra gravar um momento de ocupação. O objetivo era conhecer de perto, entender o movimento. Depois fiz um curta documentário com o Ângelo [Antônio, então seu marido], chamado A cerca. Fomos com eles até o prefeito de Paranapanema (SP), onde disseram que fariam a ocupação. Aí vimos o processo todo de escolha da terra, com a orientação de vários advogados. Acompanhamos o comboio de famílias se formando ao longo da estrada, chegamos até a tal terra que estava improdutiva e participamos do rompimento da cerca, que é uma mística deles. Nesse momento tem uma oração e eles rompem a cerca gritando “Por um Brasil sem latifúndio!”. Depois entramos e passamos a madrugada com eles em volta da fogueira. Geralmente essa madrugada é muito sofrida, as pessoas ficam ali no escuro, no meio de um descampado, uma certa tensão no ar... Depois o dia veio amanhecendo, e as lonas de plástico foram subindo. E eu lá entrevistando as pessoas, querendo saber por que elas tinham entrado no movimento, quais seus sonhos, em que elas acreditavam. E é muito emocionante... Conversei com pessoas que realmente me emocionaram muito, gente que poderia estar numa situação degradante de vida, mas conseguiu se encontrar em uma organização social que dá sentido a uma vida solidária. Vi o MST como uma escola de guerreiros, de pessoas que enfrentam juntas uma situação de extrema pobreza e saindo dela por meio de uma organização social. Buscam justiça e querem que o governo faça a parte dele, melhorando a distribuição de terras e de renda.

E essa experiência também transformou você de alguma maneira?
Sim, é uma vida em que tem igualdade de bem-estar, em que não quero estar melhor do que ninguém, mas também não quero estar pior. Eles queriam o direito de pertencer, de ser incluídos dignamente nesse sistema de produção. E pra isso tem que mudar esse sistema. E como você muda isso? Como você dá a educação necessária pra eles pertencerem com dignidade?

Como você acha que é? 
O que eu vi na tribo acho que explica uma parte. A forma como eles se organizam, se unem, trabalham pelo bem comum, seguem bons princípios éticos. Aí a gente transforma. Limites colocados precisam ser respeitados, valores básicos também. É o único jeito.

 

“Vi o Movimento Sem Terra como uma escola de guerreiros, de pessoas que estão enfrentando juntas uma situação de pobreza e saindo dela por meio de uma organização social”


De onde você acha que vem essa sua preocupação social?
Desde criança eu tinha uma coisa de gostar muito da natureza, cuidar dos bichos... Tive uma educação humanista. E, na adolescência, de algum modo tinha essa coisa do movimento estudantil. Não como nos anos 1970, totalmente diferente da minha época, mas também tinha isso. Então já existia essa busca de consciência, de que eu terei uma responsabilidade social por tudo o que eu vier a fazer.

Seus pais tiveram alguma influência?
Meu pai é engenheiro, um grande engenheiro. Uma pessoa com a cabeça voltada para cálculos, projetou usinas hidrelétricas. Hoje em dia trabalha também com energia solar e eólica. É um superconhecedor, fez trabalhos com comunidades de energia renovável, sustentável e ao mesmo tempo projeta usinas hidrelétricas, foi diretor na construção de Itaipu no lado paraguaio. Mas também sempre foi muito zen em relação à natureza, tem muito respeito, muita busca de equilíbrio. Ao mesmo tempo que era um construtor, sabia que as coisas tinham que se equilibrar. Precisamos de energia elétrica e de desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, precisamos de preservação. Então tinha esses dois olhares.

Fernando Young

Letícia Sabatella

Letícia Sabatella

Não era conflitante na sua cabeça pensar em preservação ambiental e ter um pai que projetava usinas gigantescas?
Não. Cresci em Volta Grande, onde meu pai estava fazendo a hidrelétrica de Foz do Areia. Vivi ali dos meus 2 aos 4 anos. E tinha muito bicho. Certo dia, quando brincava em frente às nossas casas na vila de engenheiros, encontrei uma cobrinha viva em meio às flores amarelas de um ipê que estavam caídas no chão. Peguei ela com um punhado de flores e levei de presente pro meu pai. Eu pescava, comia peixe do rio, seriguela do pé, tamarindo. Tive ali uma grande amiga, irmã, que foi a Marcinha. Sete anos mais velha que eu, ela morava com a gente e foi a melhor irmã mais velha que uma menina poderia querer. Era muito aventureira e viva, como as pessoas da família da minha mãe, festeiros e desbravadores. Sempre fazíamos excursões pela floresta, rio acima. Era essa vida. A gente tinha mania lá em casa de cuidar de bichos machucados, tivemos tartaruga, cobra, morcego, gambá, coelho, gato, cachorro, peixe, até aranha. A construção daquela usina teve uma preocupação com a região, com os animais. Isso existia. Mas é lógico que existem situações que... bom, como dizem os Krahôs, o equilíbrio tem que ser buscado. Mas de que maneira? Existem outras saídas? Meu pai é um cara que está sempre buscando alternativas. Mas aí você pensa: “Por que a gente precisa dessa energia?”. Mais tarde fui questionar o modelo de desenvolvimento e pensava: “Pra que serve essa obra, que modelo de desenvolvimento é esse? Pra que serve Belo Monte?”. Será que precisamos pensar em tipos de produção em tão larga escala? Não podemos pensar em outras formas de produção e de economia?

E você chegou a alguma resposta?
Acho que podemos pensar em alternativas além da hidrelétrica, pensar a produção de energia de uma maneira mais sustentável. Uma vez, conversando com a Marina Silva, eu perguntei: “Marina, desenvolvimento é contrário à preservação?”. A pergunta foi assim, bem simples. E ela me deu uma resposta maravilhosa, disse que o Brasil é o lugar no qual temos condições para os dois caminharem juntos, porque tem matriz energética para criar um desenvolvimento sustentável, num mundo que está pedindo soluções para isso. Esse protagonismo a gente pode buscar, pode exercer, e não repetir o mesmo velho sistema, servindo a um modelo de desenvolvimento que já faliu ambientalmente em muitos outros lugares.

Você teve um sítio em que plantava alimentos orgânicos em sistema de cooperativa. Como foi essa experiência?
Me liguei ao MST, vi áreas de conflito de terra, me envolvi com tantas questões sociais... eu precisava materializar tudo isso de alguma forma. Então passei um período morando no sítio que tenho em Nova Friburgo (RJ), e ali oferecemos aulas de agricultura orgânica para a comunidade local e chegamos a formar uma associação de agricultores orgânicos. Pra mim era uma coerência com minha história de vida. As famílias nos arredores do sítio estavam semiabandonadas, os pais bebendo muito, sem emprego, vivendo de bicos. Eles achavam difícil vender a produção, achavam tudo longe... Então falei: “Vamos fazer uma
cooperativa. Somos poucos, mas juntos vai dar certo”. Eu tinha o sonho de criar uma cadeia sustentável completa. De sair do produtor, passar pelo cara que transportava, até o consumidor, todo mundo fazer parte, não ter patrão lucrando mais. Só que, putz, preciso ser atriz também, né? [risos]

Você sente que às vezes se engaja tanto que o trabalho de atuar acaba ficando em segundo plano?
Nessa época da cooperativa eu estava pensando assim: “Não quero mais ser atriz. É muita vaidade”. Aí o Luiz Fernando [Carvalho] foi me chamar pra fazer Hoje é dia de Maria [minissérie de 2005 da TV Globo] e eu falei pra ele: “Luiz, acho que eu não sou mais atriz!”. Mas mudei de ideia, claro... Trabalhar com ele sempre dá vontade de ser atriz de novo! É uma das pessoas que me fazem ter vontade de ser atriz todas as vezes que eu desisto.

 

"Eu tinha o sonho de criar uma cadeia sustentável completa. De sair do produtor, passar pelo cara que transportava, até o consumidor, todo mundo fazer parte, não ter patrão lucrando mais. Só que, putz, preciso ser atriz também, né?


Você já desistiu outras vezes, então?
Algumas vezes, já... Por estresse, por estar fazendo alguma coisa que estava me desvirtuando, por achar que tinha que pesquisar mais... Acho que até por uma necessidade de reciclagem, de descobrir outros caminhos, me desconstruir e construir outras coisas, me reafirmar, sabe? Preciso trocar. Quando sinto que estou ficando viciada em alguma coisa penso: “Preciso me limpar disso”. Deve ter sido assim, como naquela época em que nada foi melhor do que plantar e colher. Foi uma preparação incrível de corpo e mente.

Quanto tempo durou essa história dos orgânicos?
Três anos. Eu ficava muito lá, também trabalhei. Mas não consegui ficar mais de um ano sem ser atriz. Chegamos a ter 20 pessoas trabalhando no sítio, mas não consegui plenamente fazer daquilo um negócio sustentável. Não consegui me dedicar mais, o documentário que eu estava fazendo ao mesmo tempo me exigiu muito. Mas as famílias tiveram uma boa formação em produção de orgânicos. Atualmente seguem utilizando esse conhecimento, mas do seu modo pessoal, e acredito que hoje estejam mais aptas para exercer sua cidadania, têm mais ferramentas pra discutir demandas com a prefeitura e tiveram a oportunidade de se conhecer como uma comunidade que se organiza e consegue resolver seus problemas.

E você pretende resgatar esse projeto em algum momento?
Não sei... Agora preciso ser atriz. Estou com muita vontade de ser atriz do melhor jeito, fazer mais cinema, música. A música é um negócio que está me despertando muito interesse.

Música?
Sim, sempre cantei e a música foi muito presente na minha formação. Agora tenho brincado de compor e tem sido muito bom. Estou trabalhando em um projeto autoral, teatral e musical com o título provisório de Volta ao centro, que tem a parceria do Fernando Alves Pinto, ator, multi-instrumentista, meu amigo e colega há alguns anos. Estou bem feliz com esse novo espaço criativo. Mas tenho uma ligação muito forte com a terra, e tenho que resolver isso. Acho que pode ser um futuro pra mim, mas tenho que ver como vai ser.^^~-_- Gosto de viver perto da natureza e, quando eu projeto a velhice, penso em viver perto do mato.

Como você define essa sua ligação com a terra?
Quando você fica no meio da mata o dia inteiro – e isso eu sempre faço –, você sai transmutado, sua energia transmuta. É bem pragmático. Os bichos se aproximam de você, tudo muda mesmo. A natureza é muito generosa, ela está o tempo inteiro doando.

Além do contato com a natureza, sua busca do autoconhecimento envolve fazer análise?
Sim, faço análise há uns dois anos, e isso me ajudou mais claramente a reconhecer o meu limite. E também a saber colocá-lo antes de explodir. A análise me deu força emocional. Tem algumas mudanças que são meio crises, e a análise ajudou a me segurar, a entender, a ter mais compreensão de mim mesma. Sempre ajuda estar mais equilibrada, ser melhor com o mundo. Não dá pra falar das questões de fora, sociais, e estar totalmente desorientada, emocionalmente sobrecarregada.

 

“Não dá para eu fazer propaganda de uma loja e depois descobrir que ela faz uso de trabalho escravo. Eu me preocupava tanto com isso que preferi abrir mão da publicidade”


Li que você não faz comerciais. É isso mesmo?
Não fico divulgando isso, embora muita gente me pergunte. Acho que é tão pessoal... foi uma escolha que eu fiz em determinado período. Mas, por exemplo, se eu vou fazer um trabalho no teatro e uma empresa apoiar, terei o maior prazer em divulgar o apoio dessa empresa. Acho que essas parcerias existem, vivemos num mundo que tem essas trocas. Mas eu evito mesmo, realmente não fiz mais. Acho que eu precisava de credibilidade para dar mais confiabilidade às causas. Mas não cheguei a dizer “nunca mais vou fazer”. Sempre reavalio essa posição, mas eu gosto dessa preservação da palavra e da imagem, principalmente quando tenho uma responsabilidade assim. Não dá pra eu fazer propaganda de uma loja e mais tarde descobrir que ela tem trabalho escravo na sua cadeia produtiva. Seria uma incoerência. Me tornar independente dessa coisa de vender produtos me dá mais possibilidade de escolher a que vou associar a minha imagem. Fiquei muito tempo associada a causas em que acredito, e pretendo continuar assim. Quando vinha uma proposta de propaganda eu tentava me cercar de tantas informações, ficava tão preocupada de saber sobre aquilo que eu estava vendendo que preferi abrir mão. Não posso perder tempo com isso, sou uma atriz! E foi muito coerente, muito legal. Foi uma decisão meio como “agora parei de comer carne!”.

Você também é vegetariana?
Fiquei 14 anos sem comer carne. Agora eu como. Convivendo com os índios e vendo essa coisa do equilíbrio, vendo plantações de soja destruindo o cerrado, percebi que uma maneira até mais ecológica é equilibrar o que você come.

Passa pela sua cabeça entrar na política partidária?
Não. Eu quero ser atriz, cada vez mais atriz. Acho que não preciso também, já é político o suficiente ser uma pessoa conhecida. Posso apoiar uma posição e as pessoas vão ver isso, a política como carreira não me interessa. Como atriz e como cantora eu posso fazer mais, de uma forma poética, sem discurso, sem panfletagem. Tenho vontade de falar através da arte, não através de discursos políticos.

Você teme ser encarada como a ativista, e não como a artista?
É isso também... Quero ser mais atriz. Mas volta e meia algumas questões me tomam apaixonadamente. E são questões presentes de qualquer maneira na vida de todos nós.

Não a agrada falar tanto de política e questões sociais como fizemos agora?
Não [risos]. Eu começo a me construir demais como essa persona. Não gosto de ter essa imagem, de ser “a politizada”. Acho que isso tem que ser mais ordinário na vida de todo mundo. Isso é o mínimo que todo mundo deveria ser.

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